Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

O DOUTOR SUIÇA

melgaçodomonteàribeira, 05.01.19

2 cx - casa da dona marieta - nº 60.JPG

nº 60, casa da dona marieta

 

UM LUGAR ONDE NADA ACONTECIA…

II

Espalhou-se rápida nas tabernas e no café a notícia do internamento no hospital, do Amílcar da Lucrécia. O grupo de rapazes reunido numa mesa do café do Zé Félix, comentava o caso:

- Realmente fazia alguns dias, talvez mais de uma semana, que não aparecia no bilhar.

- A Maria da Rosa Pires que ultimamente cuidava dele, é que o levou ao hospital.

- Disseram que estava irreconhecível. Um rapagão que ele era, consumido pela febre.

- Tudo começou por uma dor de cabeça.

- Está com meningite e talvez não escape.

Quem afirmava isto era o Neca Pires, sempre bem informado e que acabara de se juntar ao grupo.

O Dr. Esteves, mais conhecido como Dr. Suíça pela marca de nascença que tinha no rosto, encostada à orelha esquerda, médico clínico do hospital, sentenciara:

- Meningite em estado adiantado, não tem jeito!

O Zeca da Cabana, funcionário municipal, de família influente e amigo do médico, presente na hora do diagnóstico interveio:

- Ó Esteves, vê o que podes fazer pelo rapaz, ele é um desocupado, mas é um ser humano.

- É um pária, imprestável, não merece qualquer tentativa…

Era o doutor António Cândido Esteves, radical em suas opiniões e aparentemente desprovido de sentimentos piedosos. Não acreditava em Deus nem em qualquer manifestação espiritual. Uma tarde, na alfaiataria do Augusto do Félix, do outro lado da rua, quase em frente à sua casa, onde passava alguns momentos do dia conversando, surgiu o assunto:

- Claro que Deus não existe, donde é que ele veio?

- Mas, senhor doutor, a terra, os planetas, o universo, quem os fez? – perguntava o Gú, filho do alfaiate.

- Apareceram por acaso. A maior parte das coisas aparecem por acaso.

- E Jesus Cristo? – perguntou o Augusto do Félix.

- É isso que é uma boa alma, como vocês dizem. Foi um sujeito bom, como tantos outros e o povo diz que é uma boa alma.

A conversa nesse dia acabara meio sem graça. Não obstante a sua instrução superior, o doutor Esteves não teve argumentos para evitar o sentimento de piedade que naquele momento lhe devotaram. Todavia convivia o doutor Suíça pacificamente com a religião chegando a participar de alguns actos do culto como se fossem eventos sociais, e era amigo de todos os padres da região, a quem respeitava e era respeitado.

As declarações de ateísmo do doutor Esteves eram contrariadas por suas atitudes de vida. Atendia a todos que o procuravam ou mandavam chamar, sem cobrar coisa alguma, mesmo porque a maioria do povo não tinha recursos monetários. Nos seus tempos de estudante na Faculdade em Lisboa, frequentara a Academia de Equitação, e, desde então tinha predilecção por cavalos e era óptimo cavaleiro. Sempre tinha um animal de boa linhagem, geralmente uma égua, que era o seu meio de transporte para atender aos enfermos nas povoações distantes, na montanha, onde o automóvel não ia.

Tinha um Citroen, modelo 1928, em bom estado, pelo pouco uso, não obstante os quase vinte anos. Quando resolvia utilizar o automóvel, para o tirar da garagem valia-se de alguns rapazotes que o empurravam até pegar. Pelo longo tempo de inactividade sempre a bateria estava descarregada. Nos sábados, dia de feira na Vila, à porta do doutor Esteves havia uma romaria de pessoas que vinham agradecer os seus préstimos; um parente que ele salvara, ou o próprio enfermo já recuperado. Como reconhecimento, faziam-se acompanhar de frangos, galinhas, cabritos, peixes do rio, frutas e outros produtos da terra.

- Ó Manel, vem cá! Leva estas trutas à casa da Marieta.

O Manel era o filho mais novo do Augusto do Félix, o vizinho alfaiate. A Marieta era a mulher oficial do doutor Suíça com quem tinha duas filhas. Não moravam juntos, nem eram casados.

Dava toda a assistência mantendo a casa da mulher no maior conforto e abastança. Parte dos pagamentos que os pacientes lhe traziam eram mandados para a casa da Marieta. Na sua casa na rua da Calçada, morava com sua mãe, a D. Teresa Pedreira, e uma criada. Um dos motivos para que a Marieta não morasse na casa do médico era a intransigência da mãe.

Todavia, segundo os mais velhos, ela, Teresa, tinha sido empregada naquela casa.

Tinha o doutor Esteves, e parece que era esse um dos seus pecados, aparte os conceitos filosóficos e teológicos, uma tremenda vaidade da sua colecção de objectos. Algumas pessoas que ele atendia tinham familiares emigrados em outros países a quem comunicavam o acontecido. Quando estas pessoas conseguiam ir de visita a seus familiares ou em regresso definitivo, traziam os mais variados e valiosos presentes para o doutor Suíça. Uma espingarda de caça, cano duplo, toda entalhada, o melhor que existia na época segundo os entendidos, que alguém levara da Bélgica; relógios idos da Suíça, máquina fotográfica de França e outros objectos de alto valor. Nunca, naquela terra, se ouvira falar em tal: um retornado dos Estados Unidos levou-lhe um barbeador eléctrico. Foi uma sensação!

Mas o doutor Esteves não saía de seus hábitos e não usava nenhum daqueles objectos. Eram como troféus dos quais era cioso e só uns poucos amigos podiam apreciar.

Para manter suas necessidades económicas e sua posição social, tinha considerável património de família. Auferia salário simbólico como clínico do hospital, porém tinha bons lucros com a transacção de gado bovino. Era entendido no assunto, frequentava as feiras especializadas, comprando e vendendo bois e vacas. Mantinha os animais ao ganho durante algum tempo, que consistia no seguinte: comprava os animais em época baixa, quando os lavradores precisavam de dinheiro para custear suas lavouras e vendia-os em época em que os mesmos precisavam dos animais para as fainas agrícolas. Nesse meio tempo os animais ficavam à guarda de proprietários rurais conhecidos ou amigos, que passavam a ser parceiros. Cuidavam dos animais utilizando-os em seus serviços de lavoura e quando o convencionassem vender, o lucro era dividido.

(continua)

 

ADEGA REGIONAL

melgaçodomonteàribeira, 20.08.16

61 b2 - melg vila central.jpg

 

 

O ANTIGAMENTE

 

 

Na segunda metade do século passado, já terminada a guerra mundial, a Espanha ainda sofria as consequências da sua guerra civil e da mundial. Havia carência de muitos produtos que fomentavam a prosperidade das povoações portuguesas da fronteira. Melgaço era uma das privilegiadas. O contrabando corria solto, contemplando a todos, directa ou indirectamente. Desde produtos alimentares a utilidades, tudo passava através do rio Minho, do rio Trancoso ou da raia seca, e não era tão escondido assim. Os produtos tiveram a sua fase: os ovos, o sabão, a tripa seca, os cigarros e o café. Café produzido em Melgaço sem ser semeado.

Era frequente até em pleno dia, ouvir-se em determinadas casas um bater ritmado, diziam, quebrando milho e outros grãos. Confesso que nunca vi, mas ouvi. Aos grãos triturados era misturado óleo queimado de automóvel, diziam, para dar a cor desejada. Ao resultado desta alquimia era misturado café em grão, verdadeiro, talvez meio por meio. Ensacado era este produto vendido aos receptadores espanhóis por alto valor. Antes de embarcar para o Brasil, 1952, fui à festa de Orense com o Manuel Macarrão. Ao chegar, entramos num café para tomar alguma coisa e o Manuel advertiu-me: “não tomes café; é feito com as porcarias que mandamos para cá!” O pagamento das mercadorias contrabandeadas era mais em ouro e prata e menos em pesetas desvalorizadas. Os únicos artigos que da Espanha iam para Portugal eram medicamentos e cosméticos. Por alguns anos, foi famoso o fortificante Ceregumil, que todos tomavam como uso de moda. Os cigarros americanos imperaram na contravenção durante anos. Chegavam a Melgaço idos do Porto e Lisboa via correios. Diariamente, dezenas de encomendas, grandes pacotes, chegavam destinados a várias pessoas, maioria de S. Gregório. A guarda-fiscal que na raia não cumpria a sua tarefa ou até participava, desmoralizava o comando que resolveu tomar medida coerciva, plantão na porta do correio para prender as encomendas. Não resolveu. Então impôs medida drástica, mandou trancar portas e janelas da agência dos correios e da habitação contígua, do casal responsável pela agência (os chefes de correio). Funcionavam os correios na metade da mansão da D. Maria Higina, no cimo do terreiro que mais tarde foi consumida por incêndio. Trancadas com grandes sarrafos pregados nas paredes e nas próprias janelas, de modo que nada pudesse passar através delas, nem sequer ser abertas para ventilação. Foi outra medida que não deu certo e até ridicularizou a guarda-fiscal.

O que queremos dizer é que muita gente ganhava dinheiro com o contrabando. Os mais jovens gastavam tudo nas tabernas e nos cafés, os mais ponderados amealhavam. Foi assim que o Vasco da Central, graças ao café, juntou um capital que resolveu investir. Constou em Melgaço que na vila dos Arcos de Valdevez fora inaugurada uma nova taberna tão sofisticada e de grande sucesso intitulada Adega Regional. Associou-se com a Maria Olinda que ficara viúva e regressara a Melgaço com três filhos e a mãe. Esta Maria Olinda era mulher muito dinâmica e trabalhadeira. Instalara taberna na casa das Cortiças, na rua Direita e também negociava cigarros.

Vasco e Maria Olinda, num domingo, no carro de praça do Emiliano, foram aos Arcos conhecer a Adega Regional. Acharam inovadoras as instalações e modo de operar. Alugaram parte do rés-do-chão da casa do Bernardo Cunha, mais tarde do António Chivinho onde em época passada funcionara a pharmácia da Dona Amália, assim conhecida pelo povo, na rua Dr. Afonso Costa. Tenho uma vaga ideia dessa pharmácia onde a minha mãe comprava as pílulas para as bichas, amargas que só elas, mas sempre trazia alguma de açúcar para atenuar.

Contrataram, o Vasco e a Maria Olinda, os serviços do Jacob, grande artista que dominava todas as áreas da construção especializado em pintura decorativa. Dividiram o recinto em espaços apropriados às várias opções degustativas. Sala luxuosa para banquetes, balcão para taberna, saleta para chá e outra para café e confeitaria, tudo finamente ornamentado. Não tiveram o retorno esperado, o investimento fora muito grande, daí que trespassaram o estabelecimento para a Maria Cascalheira e esta para o Henrique do Geraldo. Andou de mão em mão sempre dando prejuízo. Quem melhor conta a odisseia desta Adega Regional é o Dr. Joaquim da Rocha no seu Dicionário Enciclopédico de Melgaço.

A Maria Olinda, com o filho e a mãe, emigraram para a Argentina, o Vasco continuou na Central.

 

 

   Rio, Abril de 2012

                                                                          M. Igrejas 

 

Publicado em: A Voz de Melgaço

 

POMAR DAS ADEGAS

melgaçodomonteàribeira, 23.07.16

61 a2 - terreiro card.jpg                                                                       

O ANTIGAMENTE

 

A Maria Florinda, filha do saudoso Francisco de Sousa Cardoso, querida contemporânea, esclareceu a oleogravura “Frades Barbeiros” que mencionei num dos meus “Antigamente”. Obrigado pelo esclarecimento que me despertou mais esta crónica.

Nos meados dos anos quarenta, no jornal “Notícias de Melgaço”, do também saudoso Adriano Costa, apareceu um artigo assinada por M, referindo-se a um garoto modesto e educado, que pela vila circulava assobiando despreocupadamente. Que tal rapazinho tinha pendores para desenho e pintura, fazendo um repto às autoridades camarárias para que fosse mandado a Lisboa a fim de ser submetida a análise a sua capacidade artística em laboratório estatal que existia e não me lembro o nome. Ora, esse garoto era eu. Fiquei atarantado e envaidecido ao mesmo tempo. Alguém reparara em mim e na habilidade que eu não tinha a certeza que tinha. Pelo Fabiano soube que o autor era o Sr. Cardoso. Como retribuição ofereci-lhe uma pintura feita a pastel que pelo visto ainda existe pois foi referida há pouco tempo pela mesma Maria Florinda.

O Sr. Cardoso era figura destacada na vida social de Melgaço. Acho que fora comerciante e chegara a ser Presidente da Câmara, quando mandou fazer, se não o primeiro, um dos primeiros jardins da Vila, ali naquele espaço onde actualmente está o chafariz de São João. Era o local, até aos anos cinquenta, conhecido como Jardim do Cardoso, onde jogávamos bola de pano. Nunca vi o jardim, apenas nomeá-lo. Foi o Sr. Cardoso, o primeiro melgacense que viu em mim alguma habilidade e me dava atenção. Era o mentor da sociedade recreativa que se denominava Assembleia. Esse clube organizava metodicamente bailes. Como era destinado ao que na época chamávamos “alta sociedade”, esses bailes revestiam-se de grande gala. Nas noites das realizações, as mulheres do povo (plebeias), inclusive as minhas irmãs, aglomeravam-se na porta da Assembleia para apreciarem as senhoras entrando para o baile e comentarem suas indumentárias, por dias a fio. Situava-se este clube no sobrado por cima da loja do Sr. Aurélio, na confluência da rua Velha e rua do Rio do Porto. Das frequentadoras ilustres lembro as meninas Durães, as meninas da Fonte da Vila, as meninas da Calçada, as meninas do Sr. Cardoso, as do Antonino Barros, das Cerdeiras, das Teixeiras, e outras famílias afidalgadas. Foram acontecimentos de destaque social, bailes que feneceram a partir dos anos quarenta. Querendo soerguer o clube o Sr. Cardoso convocou uma reunião de associados e para tal fez uma lista com os nomes, cerca de cinquenta e contratou-me para procurá-los e pegar a assinatura de todos como cientes da reunião. Pagou-me cinco escudos por tal. Nas casas ou no trabalho visitei a todos, apenas o Manéco do Simão encontrei na rua, e como era um gozador, além de assinar escreveu isto: “visto em trânsito”.

Pouco tempo durou essa reanimação, os tempos do após guerra já eram outros.

Nessa altura, o Sr. Cardoso, que era dinâmico e empreendedor, incrementou a sua propriedade agrícola que tinha no lugar das Adegas. Comercializou o vinho das uvas produzidas nessa propriedade, que baptizou de Pomar das Adegas. Para tornar conhecido encomendou-me uns cartazes promocionais. Feito o esboço aprovou e ajustamos dez cartazes a cinco escudos cada um. Feitos à mão em meia folha de cartolina, tornou-se tedioso repetir dez vezes o mesmo desenho colorido. Representava uma espécie de pomar com o castelo ao fundo, e em primeiro plano dois homens na mesa de um bar, com as legendas em balões. Dizia um: “Estou mal!” (com cara de enjoado), respondia o outro: “Faz como eu que só bebo Pomar das Adegas”. Esses cartazes foram afixados em cafés e tabernas.

Pouco depois aconteceu mais um cortejo de oferendas para o hospital e o Sr. Cardoso resolveu participar do desfile. Encomendou-me duas grandes garrafas de vinho, branco e tinto, feitas chapéus, para dois homens usarem no cortejo. A minha experiência limitava-se a montar as construções de armar que vinham no “Mosquito” e outras revistas infantis. Aceitei o desafio que a custo consegui desenvolver. Com papelão, cola e mais papelão pintadas a carácter, ficaram bonitas mas impossíveis de segurar na cabeça de tão pesadas e grandes, de modo que os rapazes carregaram-nas nas mãos. Não me lembro quanto pagou, sempre foi correctíssimo.

Voltou a escrever no jornal sobre a minha pessoa, a que tardiamente, agora, apresento a minha gratidão. Obrigado Sr. Cardoso!

 

   Rio de Janeiro, Fevereiro de 2013

                                                                       M. Igrejas

 

Publicado em: A Voz de Melgaço