Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

CINCO ANOS NA REDE

melgaçodomonteàribeira, 08.03.13

 

 

O TIO EMILIANO

 

  

Emiliano Augusto Igrejas, filho de Félix Igrejas e de Conceição Costa, nasceu e morreu em Melgaço.

 

   Em Melgaço, e creio que noutros concelhos, acontecia o seguinte: a Câmara Municipal tinha o direito de cobrar uma taxa sobre todas as mercadorias que entravam em seu território para comercializar. Um percentual sobre o valor atribuído aos artigos. Por não ter estrutura organizada para cobrar tal imposto, ou porque não lhe interessava, deixava-o a cargo de terceiros. É o que hoje se chama privatização. A iniciativa privada cuida melhor que a oficial até dos assuntos da colectividade.

   Acontecia então que todo o ano (aqui não tenho conhecimento do espaço tempo que envolvia a questão), de tanto em tanto tempo, a Municipalidade leiloava em hasta pública o direito de cobrar o imposto. Os interessados, após apresentarem referências de idoneidade, davam seus lances a partir dum mínimo estipulado. Ou seja: a Câmara calculava em suas receitas uma determinada importância proveniente da comercialização das mercadorias e incluía-a no seu orçamento. Os interessados disputavam entre si o direito de cobrança. Logicamente ganhava o que dava o lance maior e este, tinha que se estruturar e contar com a sorte para não ter prejuízo. Podia acontecer uma fase de decadência e o apurado ser menor que o compromisso com a Câmara. Aquela importância paga à municipalidade não sei se era feita de uma vez (creio que não) ou em prazos determinados.

   Quando eu dei conta do mundo, ou seja, daquilo que me cercava, o tio Emiliano era o arrematante do imposto. Assim o povo o designava. Durante alguns anos manteve essa actividade que lhe garantiu alguns bens com aspecto de fortuna. Eu me lembro, ao ir deitar a tia Ana recomendava: reza para que o teu tio continue a ser o arrematante. Lógico que aquilo era algo fabuloso na minha cabeça, garoto de sete ou oito anos e, por conta própria, na oração eu incluía o meu pai pedindo: « Senhor deixai que o meu pai seja uma vez arrematante do imposto e depois sempre o tio Emiliano ».

   Nos anos trinta, com a convulsão espanhola, Melgaço transformou-se num grande entreposto. Ovos e galinhas, principalmente, e todos os géneros alimentícios passavam em caminhões. Tudo isso pagava imposto, além das mercadorias para o comércio local. O tio Emiliano tinha contratado, como ajudantes permanentes, o António Araújo, de Galvão, conhecido como o Toca ou o Nossa Senhora, e o sobrinho, Artur Garcia, o Pianho. Este, o Pianho, acabou por se aborrecer com o tio, ou vice-versa, e foi trabalhar para o arrematante do concelho dos Arcos. Aqui cabe um facto pitoresco que escutei da boca do velho Pires, o Papá Pires, que na altura era amigo e sócio do tio Emiliano em empreendimentos outros; contava que o Toca enchia os ouvidos do tio Emiliano contra o Pianho. Que este fazia, desfazia, acontecia, negligenciava e até roubava. O Emiliano comentava com o Pires: – O Pianho pode ser tudo isso mas apresenta sempre maior receita que o Toca…

   No lugar do Pianho entrou outro sobrinho: o teu tio Tostas. Em Penso, entrada do concelho, mantinha o Emiliano um posto permanente, 24 horas por dia, onde os ajudantes se revesavam. Camião ou camioneta, carroça, carro de bois, era vistoriado e as mercadorias transportadas sujeitas a taxação eram anotadas e posteriormente cobrado o imposto do destinatário.

   Ainda me lembro, às noites, os ajudantes prestavam contas do movimento do dia. Do seu rascunho mal amanhado ditavam ao tio Emiliano que passava a limpo num caderno especial: um saco de arroz e um fardo de bacalhau para o Hilário; um saco de café cru para o Pereira; uma seira de figos para o Antenor; três esteiras de pregos para o Manuel Castro; duas peças de pano para a Carneira… 

    O imposto das mercadorias destinadas a comerciantes não estabelecidos era pago na portagem. Os sobrinhos, todos, que frequentavam a casa do tio Emiliano apreciavam estas coisas e aproveitavam para fazer chacota. O Tostas tinha uma letra horrível, indecifrável. Às vezes, em vez de ditar deixava a lista para o tio transcrever. Quem era capaz de entender o que estava escrito? O meu irmão Augusto, humorista que só ele, aproveitava para fazer pilhéria com o Tostas, lendo à sua maneira os rabiscos.

   Nessa fase de vacas gordas em Melgaço, as feiras semanais, aos sábados, as Festas e Romarias, regurgitavam de gente. Para cobrar o imposto de tendeiros, vendedores avulsos dos artigos de suas colheitas (lavradores), galinhas, legumes, hortaliças, peixes e doces, valia-se o Emiliano de ajudantes ad-hoc, escalados entre os sobrinhos e vizinhos. Dando uns talõezinhos, rosa, amarelo, azul, conforme o valor, os cobradores recebiam das doceiras, dois tostões por cada cesto de roscas; cinco tostões por cada cabaz de sardinhas, chirelos, carapaus (legionários), etc.; dez tostões por cada pipote de vinho vendido a retalho. (Estes valores são arbitrários, não tenho as importâncias certas, só sei que era na base de tostões.) Nessa época havia fartura. O « Bota p’ra Mula »  teve dias de vender cinquenta sardinhas por uma coroa (cinco tostões). « Bota p’ra Mula » era o nome por que se popularizou um cidadão que na Povoa do Varzim, Viana e outros portos pesqueiros, enchia um camião de sardinhas e ia vendendo pelo trajecto ou ia directo a Melgaço. As ajudantes que iam na carroceria juntas com o peixe, gritavam, anunciando a mercadoria: « Olha a sardinha fresquinha, freguesa, vinte e cinco à coroa. Aproveita! Bota p’ra mula! » Botar para a mula era encher a barriga. No final dos anos quarenta uma sardinha custava um escudo, e o povo continuava a ganhar a mesma coisa.

   Voltando ao imposto: após aquele acontecimento que narro em « Os Pintarroxos » –  publicado aqui no blog em 27/06/2009 tags igrejas, a Voz de Melgaço –, a Câmara não mais leiloou o imposto. Passou a administrá-lo directamente ficando como cobradores os mesmos, Toca e Tostas, agora como funcionários municipais.

   Voltando ao tio Emiliano, eu disse que estava tudo dito mas esqueci este detalhe: após aquele baque que narro em « Os Pintarroxos », a rasteira que a Câmara na pessoa do dr. João Durães lhe passou, ficou perturbado mentalmente. Desde então passou a ter atitudes desconexas. Aquele bilhete ao teu pai, de que me enviaste fotocópia, é bem a prova disso. Eu me lembro de outras atitudes parecidas, sem lógica. Ora, sendo tio com ascendência e autoridade desde criança, aquele tratamento não tem explicação a não ser a dita perturbação.

 

Rio, 31 de Março de 1996

 

Correspondência entre Manuel e Ilídio