UMA IDA À VILA I
O PRIMEIRO RETRATO
Um dia o pai escreveu a dizer que não viria a casa tão cedo. Embora já tivesse os documentos em ordem era necessário aproveitar o tempo, porque as coisas estavam a correr bem. Por isso gostaria de ter uma fotografia do filho, para andar com ela na carteira.
O Manuel perguntou à mãe aonde se tirava o retrato.
- Em Melgaço – respondeu. Nos dias de feira aparece na Vila um que tira retratos à “la minuta”, mas ao fim de pouco tempo ficam apagados. Por isso, só o Pires em Melgaço é de confiança.
- E quando podemos ir? – perguntou.
- Talvez no mês de Maio, porque os dias são grandes e dão para ir e voltar com sol.
- E por onde vamos?
- Alguns vão a pé, pela estrada em construção, até Lamas e depois apanham uma camioneta, mas às vezes é preciso esperar muito tempo antes de aparecer alguma. Outros, ao chegarem ao fundo das Lobagueiras, viram para a Alcobaça e seguem o caminho antigo, pelo Outeiro da Loba. Embora ruim, é quase metade da distância e há muitas sombras. Vou falar com a filha do tio Albano e se nos juntarmos três ou quatro ela pode levar a mula, aproveitando para trazer coisas necessárias à loja do pai. Quando te sentires cansado podes montar a cavalo.
- Está bem, mai. Antes quero ir pelo caminho porque não gosto de me encafuar na caixa da camioneta, debaixo do toldo, no meio dos pipotes e dos animais, cheio de calor e sem ver nada.
- Então vou combinar com ela o dia e falar com as irmãs Pinheiro, porque há tempo falaram em irmos todas. Depois trata-se do problema dos animais.
A viagem tinha de ser cuidadosamente preparada, porque estando um dia inteiro fora de casa era necessário informar a pegureira para abrir a porta da côrte e juntar a rez ao rebanho colectivo que iria pastorear. Ao fim da tarde, no regresso, teria de recolher os animais e fechar a porta.
Por outro lado, as vacas não podiam ficar encerradas todo o dia. Falaria com a tia Calças para as levar a pastar com as dela. Quanto aos restantes animais deixava-lhes comida para o dia todo.
Entretanto as duas irmãs confirmaram a ida e em conjunto acordaram o dia, combinando a saída para muito cedo, a fim de evitar a força do calor, sobretudo por causa das crianças.
Na véspera, à noite, a mãe preparou a merenda com presunto, peixe frito, chouriço e pão centeio, juntando uma bota com água, colocando tudo numa cestinha de vime.
Ainda de noite, a mãe acordou-o porque tinha de se vestir. A muito custo conseguiu levantar-se, lavou-se e, ajudado pela mãe, vestiu a roupa nova. Em seguida comeram o almorço, feito de papas de pão e batatas cozidas no molho dos torresmos fritos e bem tostados, espalhando um cheiro apetitoso. Apesar da hora madrugadora, a mãe recomendou-lhe para comer também o caldo de leite, pois só deveriam voltar a comer cerca das 9 horas, quando já tivessem percorrido grande parte do caminho.
Muito antes do romper do dia as quatro mulheres e as duas crianças estavam a caminho de Picotim, em direcção a Portelinha e daí rumo a Alcobaça seguindo o leito da estrada em fase adiantada da construção. Já tinham ultrapassado aquele lugar quando o sol nasceu.
Olhava com alguma curiosidade para o vale do rio Trancoso que nascia em Portelinha e, demarcando a fronteira com a Galiza, corria encosta abaixo até lançar-se no Rio Minho. Uma névoa azulada deixava ver algumas povoações espalhadas ao longo das encostas. Do lado português a configuração do terreno limitava o campo de visão, só deixando aperceber as aldeias quando já estavam muito próximos, enquanto na encosta espanhola o declive era menos acentuado e permitia alcanças as povoações distribuídas ao longo da mesma, com telhados e paredes de tijolo de cores desbotadas.
Iam descendo e reparava nas mudanças da vegetação. Além das giestas e silvas, começaram a aparecer muitos pinheiros e castanheiros, em vez dos carvalhos e vidos, únicas árvores grandes abundantes em Castro.
A determinada altura do trajecto, depois de abandonarem o vale do rio fronteiriço, surgiu à sua frente uma paisagem diferente. A encosta apresentava-se escalonada em patamares de verdura. O primeiro, formado pelas latadas das videiras, continuava a um nível mais baixo, pelos campos de milho, hoetas e batatais, ladesdos por tufos de pinheiros e várias árvores de fruto, que formavam o terceiro nível. De vez em quando o relógio de uma torre batia as horas. Mais abaixo avistava-se um conjunto grande de casas à volta do castelo, com uma torre, e cercado por um cordão espesso de nevoeiro. Era Melgaço! Por cima daquele rolo, aparecia outra encosta verdejante e também pejada de casas. Escondido pelo nevoeiro cerrado corria o Rio Minho, marcando a fronteira e por isso a encosta em frente era galega, explicou a mãe.
A curta distância até Melgaço, sempre a descer, foi percorrida em pouco tempo por caminhos atravessados de cobertos de videiras amarradas a postes de pedra e arames, formando as latadas. Finalmente, entraram em Melgaço! O caminho com mais de três léguas fora percorrido em menos de quatro horas.
Dirigiram-se a uma conhecida onde iriam comer porque dispunha de um quintal para guardar a mula enquanto tratavam dos assuntos objecto da sua deslocação à Vila. Aproveitaram para descansar um pouco e compor as roupas das crianças em total desalinho devido à longa viagem. O Manuel transpirava por todos os lados, trazia a camisa branca encharcada.
A mãe ajudou-o a lavar-se e penteou-lhe o cabelo rebelde, amaciando-o com um pouco de água com açúcar. Já com melhor aspecto dirigiram-se ao atelier do Pires onde teve de submeter-se a novos retoques, determinados pelo fotógrafo.
- Ó senhor Pires, este é o primeiro retrato do rapaz, para mandar para França. Veja se fica em condições! – recomendou a mãe.
- Muito bem. Vamos então tratar disso. Bom…Bom…Chegate aqui. Começamos por colocar esta gravata. Fica melhor, não? Perguntou à mãe. Agora vais subir para aquele banquinho O Pires olhou através da máquina e concluiu faltar mais um acerto.
- Segura neste ramo – disse, entregando-lhe um galho de cameleira. Endireita as costas e olha para aquele canto por cima da máquina. Quando eu disser fazes um sorriso.
Apesar do esforço o artista não conseguiu fazè-lo sorrir. O cansaço da viagem e o pouco à vontade, juntamente com o calor, não ajudavam a aparência de uma satisfação não sentida. Ao fim de várias tentativas o Pires disparou a máquina.
Seguiram-se outras fotografias e ainda uma de conjunto entre os companheiros de viagem. As fotografias estariam prontas por volta das duas da tarde. Saíram para fazer as compras e depois almoçarem. Na rua, afrontado pelo calor, admitiu nunca ter imaginado que tirar um retrato fosse tão complicado!
(continua)