O BASTARDO V
Félix continuava a viver do trabalho que aparecia e que dava para se manter, mas também a explorar a terra. Tendo ele o ofício de alfaiate, começou a procurar lugar onde instalar habitação e oficina. Aquando da sua partida de Ourense, Félix foi chamado à madre abadessa que, depois de advertências e recomendações, lhe entregou um pequeno pacote.
Ajoelhando aos pés da madre, pediu-lhe a bênção:
— A sua bênção madre.
— Que Deus te abençoe, meu filho. E agora vai, vai com Deus, meu filho – respondeu a abadessa.
Félix recuou, fechou a porta e suspirou. O pacote era pesado e algo tilintava lá dentro. Começou a suar quando lhe veio à ideia que ali poderia estar a sua vida. Sentou-se num banco do jardim dos claustros a pensar no que fazer e depois de algum tempo disse para si próprio: - Só és aberto quando Deus Nosso Senhor quiser! Agora sabia o que continha: uma carta de arrependimento – p*ta de m*rda, pensou - que devia ter sido escrita com vinagre tinto, e uma bolsa com umas moedas de ouro. O ofício na palma da mão.
Fifi foi recebido por D. Zinaido no escritório – Dona Beatriz já há anos que se passara – e deu-lhe conta da sua preocupação:
— D. Zinaido, o moço é a cara do dr. João, e pela idade que aparenta …
— Falas-te com ele? – perguntou o senhor.
— Ouvi mais do que falei, e se quer que lhe diga, tirando a cara, é mais um jovem galego a tentar a sorte por cá – responde Fifi com um sorriso.
— Olho e ouvido aberto, que eu falo com a Mia e a Antónia e vamos esquecer o assunto. Mais alguma coisa Fifi? – sorriu com escárnio D. Zinaido que já sabia o que vinha a seguir.
— D. Zinaido, se eu pudesse passar...
— Na adega? Leva lá um cabaço e poupa-o.
— Obrigado, D. Zinaido, vossa senhoria é como um pai – fazia vénias o Fifi.
— Vai, vai e não te esqueças. Olho e ouvido aberto – recomendou o fidalgo.
Foi a ultima vez que se falou de um assunto que tinha teias de aranha na história da família e preocupava menos que o atraso na floração das cerejeiras.
A casa foi encontrada; com boa sala que dava para mesa de corte e máquina de costura, quarto e cozinha acanhados. Uma saltada a Ourense e no regresso, bem atada num carro de bois, uma máquina de costura como nunca se vira por aquelas bandas e abertura ao povo de uma alfaiataria., benzida pelo abade com o Cintran a acolitar. E era ver os dois amigos nos dias de romaria a deslumbrar as moças com seu ar e vestimenta; vestir assim, só os ricos. Era vê-los bem perto do altar na missa de domingo ou a pegar o andor de Santa Maria em noite de procissão. Naqueles seis meses na vila estavam a lançar os caboucos duma nova vida.
Álvaro, pousou o sacho que trazia ao ombro, passou um trapo pelo rosto suado, encarou o patrão e disse:
— Patrão, tenho que ir à minha casa.
— E o trabalho, Álvaro, quem o faz? – retorquiu o patrão de má catadura.
— Patrão Gabriel, o senhor me desculpe, mas eu vou ainda hoje à minha casa e daqui a dois dias estou de volta. Perdoe, patrão, mas tem que ser – os olhos do homem brilhavam.
O fidalgo Gabriel, que conhecia como ninguém os seus trabalhadores, sabia que o galego Álvaro estava numa aflição e merecia ser ajudado.
— Daqui a dois dias aqui – disse o fidalgo virando-lhe as costas.
Álvaro, galego de Santa Cristina de Valeixo, há anos a trabalhar para a família de D. Zinaido, dirigiu-se para o tanque para se lavar que ao romper do dia tinha que pôr pés ao caminho. Tinha tudo acertado com o irmão, de nome Albano e nomeada Silvano, negociante de peixe que duas vezes por semana carregava o burro em Vigo para alimentar a vila e arredores. Atravessou o Minho de batela, cortou por campos e pinhais e à hora do jantar estava sentado à lareira, a comer um caldo de couves e um naco de pão, a contar à família quem vivia em Melgaço.
— E todos janotas! – diz Álvaro levantando-se para dar dois passos de dança.
— Ai é? Amanhã vamos ver como é – gritou como pocessa a irmã Concepção, secundada pela irmã Filomena.
Estas apresentavam barrigas proeminentes e não paravam de gritar, apontando o dedo ao irmão com ameaças e pragas pelo meio. Galegas de pelo na venta não demoraram a atravessar o rio de batela no Louridal e foram-se instalar na quinta onde trabalhava seu irmão. Quase clandestinas, as irmãs Costas, que sabiam muito bem não serem as únicas que em Santa Cristina se divertiram nas medas de feno ou atrás do canastro com os dois manganas, trataram de lhes deitar a mão. Álvaro passava o tempo de descanso em correria para a alfaiataria e daí para o Regueiro levando novas das irmãs que se resumiam a: - Estou prenha, vem ter comigo.
Os apelos não tinham resposta e as irmãs não tinham paciência, já que viam a barriga crescer todos os dias.
Ficar escondidas não era solução, tinham que aparecer.
No domingo ao fim da missa - na Igreja de Santa Maria do Campo, para os lados da Feira Nova -, quando Félix, já Igrejas, se dirigia com o amigo Cintrão
que não Cintran para o almoço dominical, viram o caminho barrado pelas barrigas da Concepção, depois Conceição, e Filomena Costas.
— Álvaro, temos cozido para o jantar, somos muitos, mas dá para mais um – disse a sorrir o Félix, enlaçando a cintura prenhe de Conceição.
Era o primeiro de muitos, dezoito paridos e dez sobreviventes.
O Félix Igrejas, mais tarde, optou pela nacionalidade portuguesa. Recebeu um dia a visita dum cidadão que o convidava a visitar Barcelos, onde alguém desejava conhecê-lo. A mulher dele, Conceição, não deixou ele ir, alegando que talvez quisessem eliminá-lo.
Para a história ficou a alcunha daqueles bons moços:
Os Pinantes de Santa Cristina.
PARA OS MEUS BISAVÓS FÉLIX E CONCEIÇÃO