XXII
O Armindo entrou no quinteiro com o gado quando já o sol salpicava o horizonte de línguas de fogo alaranjadas. A noite, que no outono parece cair do céu de tal modo cai depressa, não tardaria em instalar-se. Nestes lugares isolados com hábitos regulados e simples, as pessoas reganham as casas a esta hora precoce pois as noites, cada vez mais longas, são feitas para dormir.
Fechou os animais e, satisfeito, subiu para a cozinha. O Fedelho não se mostrou, sinal de que a mãe não estava. Com efeito, a avó estava só, no seu singelo lugar. Conseguia fazer três coisa simultaneamente: rezar, tricotar e viajar nos seus pensamentos de então. Sorriu-lhe, dependurou o velho casaco e foi dar-lhe um beijo na testa, antes de pousar o saco com a garrafa de vinho, à qual não tocara, por cima do móvel. Ficou encantado por sentir no corpo o calor aconchegante da lareira.
Estava esfomeado. Encheu uma malga de caldo, bem grosso, que pôs por cima da mesa, assim como meia peça de pão, a garrafa de vinho e uma tigela.
— Esta manham estubo aqui o Irineu – disse-lhe a avó.
O rapaz sobressaltou levemente.
— Si ? – perguntou, descuidadamente.
— Si, é tua mai deu-lh’uma peça de pam. Por isso hai pouco. Mas tu côme, meu filho, côme que te faz falta ! – disse-lhe a velhota.
Não perguntou mais nada. Comeu com saborosa voracidade. Esvaziou a tigela e deu um arroto. Arrastou a cadeira e colocou-se ao lado da avó, diante da lareira em brasa. A mulherzinha pousou o tricô no regaço e pegou-lhe na mão com a qual brincou entrelaçando os seus dedos nos dele. Faziam-lhe tão bem aqueles carinhos simplistas e inocentes ! Que seríamos nós sem os afagos, sem o amor de alguém ? O bem-estar, a ventura dos outros foi sempre uma necessidade para ela. Para a filha, ao contrário dela, os outros eram, ao mesmo tempo, uma abulia física e mental, o sentimento obscuro e profundo de que nada tinha importância, de que tudo se transformava num cansaço inútil. Eram tão diferentes !
— Tua mai parêce-me qu’está melhôr, que lhe fijo bem desabafar. Sabes bem qu’ela habituou-s’a nunca falar do qu’a preocupaba cos outros. Q’antas vezes sim fim tentei dizer-lhe que, da maneira qu’encarab à bida, só s’estaba a fazer-se mal! Nom m’oubia, inda me mandaba calar, como se nom soubera o que dezia!
E olhou fixamente para o neto. Leu nos seus olhos o que, certamente, ele devia ler nos dela : a incompreensão.
— Q’ando se começa a mentir, ê fácil imbentar, esconder as coisas é, pouco a pouco, ô mentiroso bai-se desajeitando é, despois, ê mais fácil apanhá-lo porque já ê um hábito é nom sabe ô que dicho no dia antes. Assi lh’aconteceu à tua mai, meu filho. É, q’ando se cheg’á um ponto destes, qu’a mentira, de calbário em calbário, cheg’á um aborrecimento assi, entom começa ô inferno. À noite, na cama, chorava é rezava, mas hai lágrimas que nim as rezas conseguem secar. Sabia qu’as cousas, só despois de rebentar o abcesso, ê que seriam como dantes. Creio que foi ô que passou. Mas, ôlha meu home, nom ê porque alguém qu’ê infeliz é que fijo uma escolha indigna, que nom tem mais direito ô amor dos outros. Ô rancor nom te deixa vivir. Ê ô perdom que te dá a tranq’ilidade, a paz.
O moço ouvia com grande atenção o que a avó lhe dizia sem compreender totalmente o que lhe queria significar. Tinha vontade de lhe dizer que, nesse dia, percebera o que era aquela coisa incoercível, provocante, perniciosa e, ao mesmo tempo, tão fascinante, tão libertadora, tão jubilatória, que era o cio. Ao que o padre, na missa, chamou pecado. Porque será um acto destes, próprio dos seres humanos, considerado um pecado mortal ? E que este acto não passa de uma reciprocidade de aprazíveis e repousantes momentos, indispensáveis ao bom zelo, ao desenvolvimento genuíno de um ser normalmente constituído ? Esses ímpios, dadores de moralidade, de virtuosidade, que se declaram transitários da verdadeira e sincera palavra divina, não são mais do que contrafactores, maquiadores, polícias da alma, cuja finalidade é cultivar um sentimento de apreensão, de receio nas populações para, deste modo, poderem dominá-las. Esta instituição, ao longo dos séculos, foi bem mais nefasta do que benéfica para os homens. O tempo, excelente ponderador, já iniciou o seu trabalho de regulador; a instituição vai perdendo cada vez mais a credibilidade, continuamente maculada por escândalos de várias ordens. O desenvolvimento do nível de instrução e do nível de vida da classe popular também contribui para o seu declínio.
Tinha-se instalado um silêncio embaraçante na cozinha. A Delfina conservava a mão do neto entre as suas, por cima do seu regaço. Pensativa, com os pequenos e afundados olhos, perscrutava o braseiro como se tentasse ver algo nas cores vivas e ardentes. O rapaz parecia entorpecido, ausente.
— Que se queir’ou nom, as cousas hai qu’aceitá-las como som, sabes ? – perguntou sem olhar para ele – É sô elas podem fazer a difrença da alegria ou da desgraça. Nimguém pode cambiar ô rumo do destino, meu home.
A mulher tinha o mérito, cada vez mais raro nos nossos dias, de só deixar saír da boca palavras que o seu pensamento concebia, fecundava. Realizara que era impossível uma pessoa em contradição contínua com a vida, em guerra com ela própria ou com os outros, pudesse viver em paz e não invejasse a pouca felicidade que os outros pudessem ter. Mesmo os que ofendemos involuntariamente fazem pouco caso da nossa inocência, da nossa boa vontade e apenas procuram o meio de vingar-se. Para evitar as hostilidades, a única solução era a reconciliação.
A porta chiou e a Palmira entrou sem uma palavra.
XXIII
Os dias foram passando. Na casa, a Palmira recobrara um pouco de ânimo, de ardor, no dia a dia mas, sobretudo, uma permissividade há muito esquecida para com a mãe. De manhã, perguntava-lhe se tinha passado uma noite boa, se as sopas tinham açúcar suficiente, se lhe apetecia algo de especial para o almoço, falava-lhe do tempo que estava, dos animais, do que ouvira na loja... Ela que nunca pudera suportar as queixas, os sofrimentos da mãe, que virava a cara para que ela não visse no seu rosto a indiferença que isso lhe causava, perguntava-lhe, quando passeavam no quinteiro, se as pernas não lhe doíam, se queria subir.
Para a Delfina, foi uma prenda divina, inesperada. Havia tantos anos que pedia a Deus que assim fosse, que a filha se corrigisse, se humanizasse ! Sentia-se tão contente que preferia morrer antes que a filha voltasse a degenerar.
O Armindo vivia uns tempos de grande agitação, impensáveis uma semana antes. A Rosa ficara fascinada com a sua constância genital que lhe permitira gozar uns desvairados e lascivos momentos de prazer. Ficou de vir fazer-lhe uma visita prazerosa de vez em quando.
O caso é que o rapaz sentia-se outro, alguém que tinha coisas para partilhar. Era a primeira vez que alguém via nele sentimentos salutares, qualidades naturais que, finalmente, fazem o homem ordinário. Não pedia nada, somente que o considerassem como os outros, alguém que, apesar da sua desvantagem evidente, tinha valorosos recursos para fazer prevalecer.
A Lídia, cada vez que ia e vinha do moinho, não deixava de fazer uma alta e de namoriscar com o Armindo. Sentavam-se no muro, por debaixo do velho carvalho. As relações entre os dois iam-se estreitando e tornando cada vez mais naturais. Nunca pensara que a moça mais bonita e mais cobiçada do lugar, que agora encontrava periodicamente, se interessasse por ele. A força e a solenidade das suas aparições faziam-no sucumbir cada vez mais. Havia alturas que se instalavam entre eles curtos silêncios, no meio do grande silêncio da floresta, e, então, sabiam que entre eles havia alguma coisa. A sua beleza genuína dava-lhe emoções que a sua natureza e o seu desejo secreto lhe exigiam cada vez mais. Olhava para ela, de olhos brilhantes, admirativo e só ouvia bater o seu coração. Batia no meio das pedras do muro, na floresta, nas montanhas, com as cabras. À medida que o seu amor foi crescendo, deixou de pensar com a razão. Sentia-se confiante, mimado e pedia ao céu que lhe fosse dando dias como os que ia passando.
(continua)