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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

NUMA FRAGA, O COTINHO III

melgaçodomonteàribeira, 08.07.23

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(continuação)

 

O tempo foi mais amigo no regresso, algumas nuvens juntaram-se para acompanhar a descida, ameaçando borrasca para o fim do dia. Os mais velhos discutiam se choveria ou não, a jovem atreveu-se a aventar a hipótese de a chuva fazer nascer a água no coto e viu o olhar fulminante do guardião do grupo a mandá-la estar caladinha, não disse mas poderia ter-se ouvido que com coisas sérias não se brinca, ela não era nenhuma criancinha já mas também não tinha ainda idade para ter voz.

Parece que a desilusão de quem estava à espera de garrafas e garrafão de água santa foi maior do que a dos corajosos que tinham feito a subida ao monte para a ver com os próprios olhos e colhê-la com as próprias mãos. A notícia da falta de água correu pelo lugar inteiro e não faltou quem lembrasse a história de uma moça do Ribeiro, ou da Peneda, vá-se lá saber agora de onde seria. Estava a dita sentada no coto, à beira do pocinho e resolveu pentear-se. Naqueles tempos em que o tempo dedicado à higiene e embelezamento do corpo era escasso, pois a vida era só trabalho de sol a sol, da segunda a sábado, e o domingo era para ir à missa e lavar a roupa, mais trabalho portanto, as raparigas que sabiam que a aparência contava, aproveitavam muitas vezes parte do tempo em que vigiavam os animais no monte para se pentearem. Reza a lenda que a tal moçoila tirou os pentes da algibeira, desfez as tranças (naquele tempo toda a mulher honesta usava o cabelo entrançado e preso numa rosca na nuca) e começou a pentear-se. Todos sabem que para pentear uma cabeleira que raras vezes é lavada, são necessários dois pentes e água. Primeiro usa-se um pente com os dentes grossos e espaçados, um pente normal, por assim dizer. Depois, quando o cabelo já está todo desenleado, com o pente a deslizar sem resistência, utiliza-se o segundo, de dentes finos e muito próximos, havendo quem lhe chame um pente de chispar, talvez porque afugenta os piolhos, estes caem que nem chispas. Com este, para um pentear mais perfeito, convém usar água, que se espalha com a concha da mão sobre a cabeça ou se molha o pente dentro de um recipiente. Ora está-se mesmo a ver que a pastora que penteava os seus longos, muito provavelmente negros cabelos, à beira do pocinho da água santa, para não se molhar, mergulhou o pente na cova natural, deixando cair alguns cabelos. Vendo-os sobre a água e consciente de que estava a conspurcar um lugar e líquidos sagrados, depois de atar o cabelo, a rapariga afadigou-se a retirar toda a água da cova para a limpar. Para sua enorme surpresa, aquilo que ela esperava e que tantas vezes ouvira contar desde a sua meninice, não aconteceu. Em vez de o pocinho se encher de novo com a água pura e transparente que lá estava desde tempos imemoriais, começaram a saltar sapos e saramelas e ela fugiu, apavorada. Não sabiam contar como é que a água voltara depois ao local. Sabia-se, nisso ninguém de boa-fé duvidava, que por mais água que se retirasse, voltava a nascer mais e o poço estava sempre cheio e nunca secava. A convicção dos poderes daquela água fazia com que muita gente fizesse o difícil e demorado percurso para a ter em casa e dela se servir para usos mais ou menos confessáveis. Os desiludidos desta história é que não se converteram à lenda.

 

                                                                            Olinda Carvalho

 

Publicado em A Voz de Melgaço

Setembro 2014

 

NUMA FRAGA O COTINHO II

melgaçodomonteàribeira, 01.07.23

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(continuação)

O caminho para as águas santas coincide durante um bom bocado com uma calçada romana, pelo menos é o que o povo diz, custando a crer, porém, que os milicianos de César se dessem a tanto trabalho para abrir e manter vias por encostas tão árduas e que aparentemente não conduziam a lado algum. Sempre a subir, curvando ora à direita ora à esquerda, são vários quilómetros que fizeram suar as estopinhas a muito pastor, a muito roçador de tojos, a muito animal de carga obrigado a transportar sustento e material para lhe fazerem a cama que, depois de transformada em estrume, voltaria a carregar talvez de novo encosta acima.

A vista é quase sempre deslumbrante, ampla, alguns lugarejos distantes a lembrarem que afinal há gente por aquelas bandas, para usufruir de ares tão puros, do azul de um céu tão luminoso que, à hora de mais calor, até fere a vista, obrigando a olhar para o chão e sempre a voltar as costas ao astro rei. As peregrinas mais velhas paravam, de vez em quando, para um curto repouso mas também para relembrar peripécias juvenis que associavam ao evento. A tia Palmira pediu uma pausa maior, o seu coração não gostava de subidas, e sentaram-se. Entretanto, Justino, que se limitava a subir, um pé atrás do outro, passo a passo, sem entrar no tagarelar das mulheres, continuou com as crianças, não sem antes explicar que era só seguir a calçada e quando a mesma acabasse estaria ele à espera num altinho, não havia nada que enganar.

Durante todo o percurso não se encontra água, nem de nascente nem de corga ou poça nalgum campo de feno mais afastado das casas. O calor não apoquentava por demasia mas a dureza da caminhada convidava a beber e, golinho agora, golinho logo, a água ia descendo nas garrafas. A mãe da pequenada alertava para não beberem tudo antes de chegar, era preciso deixar alguma para o piquenique, no final da subida ia saber melhor água do que Coca-Cola, esperassem para ver.

Juntou-se o grupo todo num planalto inesperado. Quem diria que após tanto subir se iria dar a um espaço tão amplo? Havia vacas a pastar e muitos cavalos, os afamados garranos que os proprietários das aldeias vizinhas largam no monte e vivem à solta, sem lei nem dono a domá-los. Dizem que são selvagens mas pouco, não fogem quando veem humanos, limitam-se a olhar altivamente e a manter alguma distância. Às vezes, um macho, com fêmeas ou crias por perto, pode oferecer algum perigo, mas aí cumpre ao homem respeitar o animal e não invadir o seu espaço. Não há notícias significativas de ter havido ataques por parte destes animais livres e belos no seu espaço natural, embora haja sempre medos ancestrais que afastam naturalmente os menos audazes. Naquele contexto, respeitando os conselhos do homem do grupo e também das mulheres mais experientes, as crianças mantiveram-se afastadas e sossegadas, olhando de longe, admirando sobretudo as mães e os potros, que havia de vários tamanhos e cores, um bem negro, dois ou três quase brancos, vários em tom de castanho. E a caminhada prosseguiu, com algum cansaço a dar sinal, dando-se por terminada três boas horas depois de iniciada.

Subiram ao coto. Água, nem sinal dela. Se calhar não era ali, alvitravam todos os que nunca lá tinham estado. As crianças corriam, procurando a fonte encantada. Justino e Maria garantiam que o local era aquele, não havia água, tinham-se dado ao trabalho de fazer pouco dos poderes de quem podia mais do que a gente, tinham o resultado à vista: a santa secara a fonte. E mais não disse. Sentou-se e preparou-se para comer a merenda. O mesmo fizeram os outros todos. Como se de uma festa se tratasse, partilharam-se petiscos, apesar da abundância não ter nada a ver com a de uma merenda festiva. Tostadas ninguém levara mas as velhotas rememoraram tempos idos e farnéis fartos, com uma enumeração detalhada de tudo a que tinham direito numa festa como a de São Bento ou a da Senhora da Boa Vista, no tempo em que se ia comer à sombra dos carvalhos e se convidavam os passantes para partilhar um naco de carne ou um prato de aletria ou arroz doce e beber uma pinga.

A deceção foi grande mas durou pouco tempo, se calhar porque a expetativa era pequena. Surgiu do nada, logo de foi, com as lembranças de antigamente, a algazarra da pequenada e a pose diante da máquina fotográfica, que alguém levara para assinalar o momento. Algumas das fotografias do grupo que todos os participantes receberam teriam direito a moldura e a figurar em sala de visitas. Foi um dia de convívio entre pessoas reunidas com um objetivo inalcançável à partida para alguns, que a falta de fé dos mesmos fez gorar para outros. Vá-se lá saber se alguém tinha razão e quem! Mais tarde viria a constar que o guia da expedição ficou agastado, sentira-se de certo modo humilhado, daí não ter dado um pio desde que foram confrontados com a ausência de água.

 

(continua)

 

NUMA FRAGA, O COTINHO I

melgaçodomonteàribeira, 24.06.23

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UM PASSEIO À INFÂNCIA

O COTINHO DAS ÁGUAS SANTAS

(À TIA PALMIRA)

 

Desde sempre que se comentava que fulana e sicrana usavam a água do cotinho das águas santas para os seus “trabalhos”, sobretudo depois de uma ida à bruxa. Ninguém sabia ao certo o que faziam, quando o faziam e o fito com que se davam ao trabalho de deixar certas marcas pelas encruzilhadas do lugar, em certas noites de lua cheia. Mas que apareciam, apareciam e ninguém ficava muito à vontade quando encontrava sangue, borralha, penas de galo, pelos de gato e sabe-se lá que mais que o comum dos mortais desconhece, sobretudo quando há uma grande dose de ceticismo à mistura.

A certeza, dita e redita pelos próximos da tia Maria Santiago, de que nascia água no alto de uma fraga e que, depois de retirar todo o líquido do pocinho que se formara no cimo do penhasco, a cova volta a encher-se, passou para o imaginário de todas as crianças que o foram nos anos cinquenta e sessenta do século XX. A fraga onde tal mistério, vulgo milagre, se podia comprovar ficava ali ao lado, acessível a qualquer mortal com pernas para uma boa caminhada, quase sempre a subir, duas horas bem andadas, três no máximo, havendo crianças ou cansados, quiçá doentes do coração, a retardar o passo.

Sabendo que havia interessados em fazer uma excursão até ao cotinho, o Justino, do alto do seu saber de experiência feito, pois já lá tinha ido mais do que uma vez, prontificou-se a mostrar o caminho. Algo surpreendente esta disponibilidade vinda de alguém tido por pouco amante de conviver, cioso da sua distância, com um espaço vital bem mais amplo do que o da maioria dos vizinhos. Era de aproveitar, pois se Justino se prestava a tal prova era porque o assunto era sério. Combinou-se dia e hora, acertaram-se pormenores, como o piquenique a fazer no local, a distribuição dos participantes pelos carros que os levariam até ao ponto de partida, a fora de saída, que seria bem cedinho para evitar subir pelo calor que ainda se fazia sentir bem forte naquele início de setembro.

O grupo era seleto, escolhido entre próximos, a bem dizer íntimos, tudo família, à exceção do guia e de uma amiga. Três mulheres mais velhas, uma de meia idade mais os seus rebentos e uma primita, jovem na casa dos vinte e tais, todos levados pelo sentido de orientação do Justino e da Maria. Numa terra onde a água pelos montes só se faz sentir com as chuvas de setembro, acautelaram-se vários caminhantes de que não faltasse o precioso líquido nos farnéis. Que não seria preciso, ia-se ao encontro da água, para quê levá-la? Levasse-se antes vinho ou coca-cola para a merenda, que água não haveria de faltar no cimo da fraga. Pelo sim, pelo não, várias garrafas de vários tamanhos foram cheias na fonte, com crianças no grupo, mais valia prevenir. O Justino não pareceu gostar muito da falta de fé de quem assim ousava contrariar o seu bom senso mas nada disse, decidido a gozar o proveito de homem de poucas falas como era tido. Guardava-se para a chegada à fraga e fazer ver que os tolos é que desconfiam, mulheres inteligentes deviam ser menos dadas a essas fantasias de ver para crer, se um homem diz que é verdade é porque é, ele sabia do que falava. Certezas destas eram difíceis de rebater, mas pelo sim pelo não as garrafinhas de água seguiram em várias mochilas de grandes e pequenos.

A partida foi acompanhada por alguns curiosos, melhor dizendo, curiosas, que não se atreviam a participar na aventura, uma subida tão custosa não era para joelhos que rangiam e já habilitados a infiltrações para combate às dores nem para noventa ou cem quilos em cima de um metro e cinquenta e umas perninhas de macieira, que é o mesmo que dizer uns canivetes ou uns paus de virar tripas, dependendo da região onde se faz jus à comparação. Como não podiam ir mas ambicionavam a aguinha santa, só lhes restava pedir que lhes trouxessem uma garrafinha, ou um garrafão de dois litros, como queria a Alzira, que essa nunca foi avara a pedir. Dizem que hoje também não é pobre a dar e até se comenta, com alguma surpresa, que dá mais do que alguma vez se esperou dela, fazendo jus ao dito o liberal busca a ocasião para dar. Mudam-se os tempos, mudam-se as condições, mudam-se os hábitos.

 

(continua)

AO NELO, IN MEMORIAM III

melgaçodomonteàribeira, 31.10.20

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Chegaram a França de noite, seguindo a linha de comboio de longe, por sorte ainda tinham as lanternas. Pararam debaixo de um viaduto para passarem a noite, aconchegaram-se uns nos outros. Antes de adormecerem, a conversa girou entre as saudades de casa, maldições aos passadores gatunos, a bela panela de sopa com que o senhor Xosé lhes aquecera o corpo e a alma antes de correr com eles, o que fazer nos dias seguintes, como chegar a Paris. Já era dia alto quando se fizeram ao caminho, esperando encontrar indicações na estrada, uma venda para comprar pão. O mais afoito era o Alberto e foi ele que se aventurou a ir às compras. Voltou com uma peça para cada um, era a ração do dia. Caminhavam depressa, sempre em direção a Bordeaux. Estavam exaustos e deram com uma estação de comboio. Tentavam apanhá-lo? Era um risco, mas se tivessem sorte… valia a pena esperar pela noite e entretanto dois deles podiam ir ver se arranjavam comida. O Zé e o Nelo ofereceram-se. Fartaram-se de andar e não lhes ocorria nenhuma ideia. Sentaram-se à entrada de um portão, desanimados, passado pouco tempo surgiu um homem e um cão, que começou a rosnar-lhes. Não entendiam o que o homem lhes dizia, mas entenderam que deviam sair dali. O Nelo falou com o cão, os animais eram todos seus amigos, aquele começou a ladrar-lhe, parecia que os estava a expulsar. E eles obedeceram. Pararam num estaminé, vários camiões à porta. Entraram e vinte olhos em cima deles. Entender o que lhes diziam, nem patavina. Queriam comer e disseram com gestos o que a língua não conseguia, apontando para as sandes que estavam à vista, pediram cinco, os dedos de uma mão. As pesetas que puseram em cima do balcão não pareciam interessar ao dono do café, acabando por retirar as que quis, os rapazes não controlavam nada. A cena continuou, cada vez mais insólita, com um homenzarrão a dirigir-se-lhes, só entendiam Paris, saiu com eles, mostrou-lhes um camião, Paris, Paris e mais nada. Largaram-no e desataram a fugir, de volta para os companheiros. O Nelo e o Zé atropelavam-se a contar o episódio, se calhar estava a oferecer-se para os levar, intuía o Alberto. Voltaram ao café, o camião tinha partido.

Andaram nestas andanças por mais uns dias, a dormir onde calhava, alimentados a pão e água e umas maças que tinham ficado como refugo nas árvores, a fugir de cães que lhes ladravam como se fossem salteadores, a ver portas que se lhes fechavam na cara. Pareciam maltrapilhos quando se abeiraram da grande cidade. Para se protegerem da chuva que os trespassava até aos ossos escolheram um abrigo de autocarros e aí se deixaram ficar, famintos, sem dinheiro, sujos e rotos, metiam nojo aos cães, na expressão do Nelo. Foi aí que até a comida que a mãe dava aos porcos lhe acudiu à ideia para matar a fome. Já nem falavam uns com os outros, todo o diálogo era interior, solitário, repleto de saudades e lágrimas escondidas, todos se sentiam no maior desamparo, nenhum queria ser o primeiro a dar parte de fraco.

Durante a noite, o Tono começou a tossir sem parar, a dizer coisas estranhas. O Berto pôs-lhe a mão na testa, ardia em febre. Tremia como varas verdes, doía-lhe muito o peito, tinha dificuldade em respirar. Tinham de fazer algo. Até ali, tinham procurado afastar-se da polícia, mas, no estado a que tinham chegado, mais pobres do que os pobres que andavam a pedir de porta em porta na terra deles, com o Tono incapaz de se mexer, a delirar, parecia que tinha gatos no peito, deviam entregar-se, que fosse o que Deus quisesse.

Na esquadra da polícia, tomaram banho, vestiram roupas lavadas, comeram até querer. Menos o Tono, que levaram de imediato para o hospital. Pareciam animais assustados, encolhidos, encostados uns aos outros, buscando algum conforto na proximidade física. Chegou um intérprete, explicaram que iam ter com familiares a Paris, tinham sido roubados, o Nelo desatou a chorar, incapaz de continuar. Tomaram-lhe o papel quase desfeito da mão, iam verificar, não se preocupassem, nada de mal lhes iria acontecer. Levaram-nos para uma camarata, deram-lhes cama para descansar, quando acordassem veriam tudo menos negro.

O tio Jaime confirmou que esperava os rapazes, partiria para Bordeaux tomar conta do caso na mesma tarde. No dia seguinte, apresentou-se na esquadra, identificou o sobrinho e os outros, responsabilizava-se por todos, pelo que estava no hospital também. Antes de partir, foram visitá-lo, o tio Jaime e o companheiro deram a morada, o nome do chefe, a empresa onde trabalhavam, quando o rapaz estivesse bem da pneumonia iriam busca-lo.

Três semanas de pesadelo, praticamente desde que saíram de casa até ao encontro com o tio Jaime, numa esquadra de polícia às portas de Bordeus, foi quanto durou a viagem dos jovens para a terra da promissão. Ainda não tinham entrado na idade adulta e já tinham provado até ao âmago a fome, o frio, o medo, a desconfiança. Ficavam vacinados contra a maldade dos homens, mas ganharam confiança na polícia e na bondade das instituições do país que os acolhia para lhes proporcionar uma vida melhor.

 

                                                                        Olinda Carvalho

 

Publicado em A Voz de Melgaço

1 de Novembro de 2014

 

 

 

 

 

 

 

AO NELO, IN MEMORIAM II

melgaçodomonteàribeira, 17.10.20

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Estava um frio de rachar, que nem sentiam devido ao ritmo acelerado da marcha. O dia avançava, as nuvens prometiam borrasca e o caminho de ferro nem vê-lo. Deixaram os caminhos batidos, meteram por atalhos, saltaram muros, afastando-se das aldeias e das casas isoladas que iam aparecendo com regularidade. O Paco sempre à frente, os rapazes seguindo-o e sentindo que não era por ali, que algo não estava a correr como devia, demoraram a interroga-lo. Já faltava pouco, era só mais uma carvalheira, depois de um ribeiro onde havia um moinho. Este veio ao encontro deles, mesmo a tempo de os abrigar de um temporal medonho. Ficariam ali, não poderiam continuar debaixo de tanta chuva, não conseguiriam apanhar o comboio, ele ia procurar comida, voltava logo. Cansados, estendidos como puderam na exiguidade do espaço, caíram nos braços de Morfeu. O primeiro a acordar foi o Nelo. Estava tão escuro que não enxergava nada, abriu a porta para confirmar que era noite cerrada e continuava a chover. Acordou os outros, perguntou as horas ao Berto, o único que tinha relógio, herdado do avô paterno. Era quase meia noite. O filho da mãe do Paco não tinha voltado, tê-los-ia abandonado? Cheios de fome, partilharam os restos que encontraram no fundo dos sacos, as castanhas, nada de substancial. O medo tomava conta de todos, primeiro e durante um certo tempo em silêncio, depois à mistura com pragas e pedidos de ajuda a Deus, Nosso Senhor, à Senhora de Fátima. Tinham de esperar pela manhã, o melhor era continuarem a dormir, pelo menos descansavam e enganavam a fome. O Nelo não conseguia, só pensava em ser apanhado pela guarda, recambiado para Portugal e acabar por ir parar à Angola.

Raiava o dia quando ouviram passos. Devia ser o Paco, o magano tinha passado a noite no bem bom. Abriram a porta de rompante e deram de caras com um estranho, velhote, magricelas, um bigode que lhe tapava metade da cara, carregando um saco. O espanto foi de parte a parte, mas foi o idoso que falou, queria saber quem eram, o que faziam no seu moinho. Incrédulos, os rapazes ficaram sem voz. À insistência do mais velho respondeu o Alberto, que se tinham abrigado da chuva, esperavam um companheiro para partir, para lhes ensinar o caminho, era o Paco, tê-lo-ia visto? Pacos havia muitos na Galiza, era o nome do caudilho. Eram portugueses, a caminho de França? Não havia nenhum lugar ali perto, só duas casas, a dele e a da sua mãe, o tal Paco, se é que existia, abandonara-os. Havia muitos Pacos a enganar pobres como eles. Depois de pôr o milho a moer, punha-os no caminho para o comboio. Contaram-lhe do assalto, estavam sem dinheiro para comprar comida, tinham fome, mas não podiam voltar para trás. Por mais fortes que quisessem parecer, não podiam evitar as lágrimas.

O velho, de seu nome Antenor Cardeu, podiam tratá-lo por Cardeu, condoeu-se dos rapazes. Não havia perigo de serem apanhados por aquelas bandas, mas sem bilhetes nem dinheiro para o comboio não via como seguiriam viagem. Serviu-os de pão à descrição e preparou-lhes água de unto com ovos, até parecia que estavam em casa. Podiam aceitar ou não, era com eles, mas perto havia uma serração, seguramente arranjariam lá trabalho. Não sabiam como agradecer, seguiram para o “pueblo”. O Alberto não se queria expor, tinha algum dinheiro escondido, mas não dava para todos, queria seguir, mas não se queria sozinho. Ficava escondido, à espera de informações, se arranjassem uns dias de trabalho para ganharem para a passagem, ele juntava-se a eles depois, mas que estivessem atentos a ver se havia guardas por perto, e queriam ser pagos no fim de cada dia, era melhor não confiar nos galegos.

Trabalho para quatro ou cinco? Claro que sim, sobretudo se de braços fortes para arrastar os toros de árvore, para os descascar, para empilhar as achas. Acertaram-se, não queriam saber de horários, quanto mais trabalhassem, melhor. A madeireira ficava junto da linha do comboio, muita da madeira saía dali pelos carris. Os rapazes concertaram-se para se esconderem no meio da lenha e viajarem escondidos, era só estudarem os horários e o destino dos comboios. Quase não comiam para poupar dinheiro, dormiam nos fundos da serração, o capataz tinha bom coração, não fez perguntas quando apareceu o quinto elemento, deu-lhes uns cobertores velhos para se taparem. Uma noite apareceu lá, com um caldeirão de caldo, para aquecerem o bandulho. O Nelo ainda se lembra de tudo o que tinha aquela sopa, que lhe soube pela vida, melhor do que o que a sua mãe fazia e com que os tinha criado a ele e aos irmãos. O senhor Xosé disse-lhes que tinham de partir logo, havia uns bufos por ali, ouvira uns zunzuns, os passadores estavam de olho aberto, o patrão não queria problemas, se os encontrassem sobrava para todos, incluso para ele. Com o coração nas mãos, agradeceram e despediram-se, os poucos pesos que tinham ganho dariam para comer uns dias.

Arriscaram num comboio de mercadorias, passava devagar, muito lento, não custou nada saltar para cima. Levá-los-ia até à Hendaia, mas tinham de sair antes da fronteira e atravessar a pé. Do lado de lá havia menos perigo de serem presos, os franceses eram menos maus que os castelhanos. Estes conselhos ou instruções, vejam-se como se quiser, saíram da boca de Xosé, desejava-lhes boa sorte, na França talvez encontrassem algum trabalho no campo, deviam sair das grandes estradas, não dar nas vistas. “Adiós, coño”, já estava a ficar sentimental.

 

(continua)

 

 

AO NELO, IN MEMORIAN I

melgaçodomonteàribeira, 03.10.20

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 lançamento do livro de olinda de carvalho - e agora, luisa

A SALTO

Ao Nelo, in memoriam

 

Desde que se meteu ao caminho, naquela noite escura e fria de um outono invernoso, a sua vida tomaria um rumo que faria dele um homem diferente. Os seus companheiros tornar-se-iam irmãos, as vicissitudes por que passaram aproximaram-nos como se tivessem nascido do mesmo ventre, foi como se os filhos de sua mãe passassem de quatro para oito. A salto para França, em mil novecentos e sessenta e seis. Para fugir a uma servidão que podia mais do que a entrega sem restrições de alguns anos de vida, era um risco para a vida. Quando o edital com os nomes dos mancebos para ir à inspeção aparecia afixado na porta da igreja, era o momento de dar o salto. A decisão de deixar a terra e se recusar a cumprir o serviço militar nem foi sua, mas aceitou-a como natural, era comum à esmagadora maioria dos rapazes em idade de servir o país. Portugal do Minho a Timor era fácil de decorar mas difícil de entender por crianças que viviam livres, arriscar a vida por essa Pátria abstrata não estava no seu horizonte. Os que não conseguiam fugir a esse destino por meios legais, que os havia, arriscavam a fuga numa viagem clandestina que, muitas vezes, raiava os limites da sobrevivência. Pelo menos, esta foi a perceção que o Nelo passava, sempre que o assunto vinha à baila.

A despedida foi cheia de muitas lágrimas, muitas recomendações, muitas saudades antecipadas, que seria da sua mãe com mais um filho de abalada, sem mais dois braços fortes para a aliviar? Parecia ao Nelo que mais do que a partida da sua pessoa, era a falta do que ele deixaria de fazer que a mãe lamentava. E não se atrevia a deixar que uma lágrima sequer se soltasse, seria a nascente de um rio caudaloso que era preciso conter, um homem não chora.

Estava escuro como breu, mas não tanto como o seu coração, quando os companheiros passaram a busca-lo e só a fraca luz das lanternas os impedia de andar ao pontapé às pedras, de mergulhar o pé numa das inúmeras poças que havia pelo caminho. O percurso da primeira etapa era bem conhecido, estavam todos habituados a calcorreá-lo nas viagens de contrabando useiras para um e outro lado da fronteira. Não temiam os carabineiros nem a guarda-fiscal, a carga era leve e o tempo frio convidava os homens da lei a ficar no remanso do lar. O passador largou-os à entrada do lugar combinado, outro tomou a sua vez, galego este.

Até à noite do segundo dia foi sempre a andar, já não aguentavam os pés, o Zé da Eira tinha os seus cheios de bolhas, partira com umas botas novas, para aguentar bem o caminho, viravam-se os calcantes contra ele. O primeiro revés deu-se aí: a comida seria por conta deles. Não sabendo onde se aviar e não querendo expor-se para não se denunciarem, aceitaram o que Paco lhes arranjou pelo dinheiro que quis. Dormiram que nem anjinhos até meio da noite, era tempo de “toca a marchar”, até ao povoado onde iam apanhar o comboio eram muitas horas. Ainda o dia não clareava, o Paco a incitá-los a avançar, como se estivesse conduzindo gado, foram surpreendidos por três indivíduos da cara tapada. Queriam o dinheiro. Depressa. Que esperavam? Era um assalto, não queriam ferir ninguém, só os pesos e os francos. O Nelo foi agarrado por um braço, uma garra a convidar à obediência, resistir seria pior. O guia ficou mudo e quedo, não pertencia àquele filme, foi o primeiro a entregar a carteira. Só o Alberto resistiu, levou um murro no nariz, ficou a sangrar e viu os bolsos serem-lhe virados do avesso.

A voz segura do galego fê-los tomar consciência do que se passara, tinham de se apressar, o comboio não esperava. Não tinham sido alertados para possíveis assaltos, como fariam para prosseguir sem dinheiro? Tinha de fazer algo, o trato era conduzi-los a salvo até ao caminho de ferro, entrega-los ao outro passador, já se tinham sentido ludibriados com a comida, agora era o dinheiro, afinal para que é que servia? Eram jovens inexperientes, não eram parvos, queriam comida e era para já, senão… Senão o quê? Ele também perdera o seu dinheiro, estavam todos no mesmo barco, tinham de deixar aquele caminho. Seguiram com esforço, a barriga a dar horas, o farnel preparado pelas mães forneceu as últimas côdeas, nada capaz de matar a fome. À entrada do casario onde o passador resolveu parar para arranjar comida entregaram o corpo ao descanso, encostados a grossos troncos de castanheiros debaixo dos quais se puseram a apanhar castanhas. Eram grandes e boas, mas não aquilo por que a barriga ansiava. Pelo sim, pelo não, algumas foram parar às sacolas, ao fundo dos bolsos. Umas cabras pastavam perto e um teve a ideia de as mungir. Estava habituado a fazê-lo no monte, sempre que o farnel se mostrava insuficiente ou para presentear a tia Isalina com leite para umas sopas. Era com esta estratégia que a velha lhe guardava o gado e ele ia ver a Berta. Não o fez, porque o Paco voltou com pão, chouriço e latas de sardinhas.

 

(continua)