UM LUGAR ONDE NADA ACONTECIA
XVI
Outra testemunha prestou depoimento sobre a conduta do Lili. Contou ao Juiz que o rapaz havia comprado um Cocciolo, bicicleta motorizada, mas usava-a pedalando.
Na saída da sala do tribunal, aquele grupo de rapazes ia discutindo as iluminação pública, no cruzamento da igreja, da avenida e da rua Direita, bem no meio da rua, como sempre acontecia quando o tempo permitia, aí ficaram longo tempo.
O Zé Nabeiro, o Zeca Chatice, o João Castro, o Norberto, o Zeca, o João Pires, o Manel Félix e o Neca Pires.
- Mas que raio, afinal, julgamento é isso? Dizer o que todo o mundo sabe do Lili? O Juiz só não sabe se não quiser! Quem assim falava era o Zeca Chatice que se mostrava confuso.
- O Lili nunca fez mal a ninguém. É meio esquisito, sim, mas que crime ele cometeu?
E dizendo isto, o Zé Nabeiro demonstrava uma certa simpatia que no fundo todos nutriam pelo Teodorico.
O barulho acontecido no final do desafio de futebol no domingo passado tomou conta da conversa dos rapazes.
- O Gorines ameaçou vingar-se de cada um. Ele é vingativo!
- Coitado do Miro, vai amanhã para Coimbra! Só lá vão conseguir concertar-lhe a cara. A pedrada abriu-lhe todo o lado do rosto.
- Foi o Ranilha no desespero do abafamento. Rolaram no chão, o Miro apertava-lhe o pescoço, ia-o esganar, estendeu o braço achando aquele pedregulho…
- Estavam todos bebendo na barraca da Isolina quando surgiu o assunto do contrabando.
- São todos frotistas, às vezes negoceiam juntos.
- Por isso mesmo é que o Zé Corujo deu o murro na cara do Gorines acusando-o de roubo.
- Sem mais nem menos todos se agrediram. Foi soco e pontapé para todo o lado.
- A gritaria das mulheres parecia o fim do mundo.
- Eram uma dez as que cuidavam das três barracas.
- O Ná não apanhou porque a mulher, a Violeta, mais a Peta, o seguraram, arrastando-o para longe do barulho.
- Nós não vimos tudo. Depois do jogo do Rápido contra o Monçanense ficamos no campo treinando e só depois demos pela coisa com os gritos das mulheres.
- Eu vi bem quando o Ranilha apanhou a pedra já estava sufocado.
- Todos bateram e apanharam.
- Homens maduros, chefes de família, colegas e amigos de todos os dias, como se meteram numa confusão daquelas?
- Devem ter bebido demais…
- Bebem bastante todos os dias e nunca aconteceu daquilo.
- Tu é que não sabes! Nunca chegaram àquilo mas em todas as festas tem zaragata. Na festa de Santa Rita andaram aos empurrões.
- Vós soubestes que o Manel da Mena viu na Central a Biti beijando o Vasco?
- Aquele namoro está adiantado.
- Outro dia a Toupeira disse-lhe que não ia conseguir desflorar a Biti, virgem com mais de trinta anos…
- Engraçado foi o Tostas: disse que o Vasco ia ter de escachar uma acha.
- É mesmo! A Biti é tão magra que parece uma acha de lenha.
- O Fernando do Ferreirinho emprenhou a Maria do Manel da Chica. Soube-se esta semana. A rapariga não teve mais como esconder a barriga.
- Eram namorados há mais dum ano, isso ia acontecer.
- Só têm que casar!
- Pois sim! Dizem que desde que ela lhe falou na prenhez ele afastou-se. Não os viram mais namorando.
- Ele tinha outra namorada em S. Martinho, filha de uns lavradores ricos e agora só se vê com essa.
- O Manel da Chica e a mulher são humildes jornaleiros… o Fernando é empregado do primo e não ganha para manter uma casa.
- No domingo vai passar um filme de cow-bois sensacional, vou ver se consigo os cinco escudos para o bilhete.
- Eu também! Este aqui é que vê tudo o que é fita, de graça.
- Que grande favor… também pinto de graça os cartazes para o senhor Hilário. O do filme “Deus lhe Pague” levou-me o dia inteiro.
A conversa daquele grupo de rapazes, colegas da mesma idade, abordava todos os assuntos. Quando estes escasseavam os diálogos iam arrefecendo e sempre um deles arrematava com a “filosófica” sentença reclamatória:
- Que raio de terra onde nunca acontece nada!
O Manel Carrapito, metido a sabido, aproveitava para encaixar uma frase que julgava erudita e tinha lido em algum lado:
- Aqui não se vive, vegeta-se!
Coitada daquela rapaziada que se deixava influenciar pelo cinema americano que lhe impingia nos filmes de aventura, nas comédias musicais e até nos romances melodramáticos, um estilo de vida requintado, cheio de felicidades, com acontecimentos de prazer, alegres, coloridos, recheados de abastança. Aquilo sim, é que era estilo de vida!...
O cinema, um dos poucos passatempos da terra e fonte de cultura alienígena, acontecia uma vez por semana, aos domingos.
Nesta altura a energia eléctrica, que continuava a vir de Espanha, era mais constante; não se verificavam tantas interrupções como no tempo de cinema do Pires. O senhor Hilário reformara o salão Pelicano, dotara-o de moderna aparelhagem e assumira a exibição dos filmes. Estes, os filmes, eram noventa por cento americanos. Em Portugal já se faziam filmes de total agrado da população, porém, as empresas distribuidoras só alugavam filmes nacionais para cada dez filmes estrangeiros. As pessoas mais simples não discorriam que o que o cinema mostrava era fictício, mentira.
O que causava reboliço entre a rapaziada eram os filmes históricos e de guerra; pelo jornal da tela ficavam sabendo o que acontecia nos países mais “evoluídos”, coisas fabulosas ou importantes que comparadas com o bucolismo da terra achavam que ali não acontecia nada.
Manuel Igrejas
Publicado em: A Voz de Melgaço