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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

CEM ANOS DE RETALHOS DE UMA FAMÍLIA 1852-1952 IV

melgaçodomonteàribeira, 02.07.22

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CAPÍTULO IV

 

O Ismael embarcara para o Brasil com as despedidas formais e promessa de casamento por procuração logo que a vida lhe sorrisse. As famílias resignaram-se àquele destino comum. A Jelcemina não compareceu à despedida. Desde que a viagem fora anunciada e confirmada ficara arredia e triste. Passou o primeiro, o segundo mês e o Ismael não mandou notícias. Nunca mais deu sinais de vida, pelo menos para a namorada. Para a família, sim. A rapariga, taciturna, pouco comia, emagreceu, perdeu a cor trigueira, perdeu o gosto de tudo. O desgosto da partida do seu derriço tirou-lhe a vontade de viver. Os Violas eximiam-se de qualquer responsabilidade. Amargurada a Jelcemina definhava dia a dia. Fisicamente vulnerável achou de tomar banho na poça do campo do Chãos. O inverno se avizinhava, a água estava excessivamente fria, quase gelada. Naquele organismo enfraquecido sobreveio uma pneumonia. Talvez fosse aquilo que ela buscava. Não resistiu, faleceu. As más línguas insinuavam que havia algo mais de que ela se envergonhasse.

Os momentos finais da moça foram terrívelmente dolorosos. No auge da febre debatia-se e gritava pelo seu Ismael. Uma visão passou pela sua imaginação que em voz sumida transmitia aos que, chorosos, a rodeavam. Dizia ver o Ismael muito pálido mas bonito, vestido de branco, rodeado de flores e velas.

A partir do falecimento da Jelcemina a animosidade entre Félix e Violas cresceu, com acusações de uns e desculpas de outros. Do Ismael nada se soube, apenas que estava lá para o Pará.

O Carlinhos, da ilustre família Barros Ferreira, conceituada e abastada, foi transferido para a sua terra chefiando a secção dos correios. Físicamente era uma figura grotesca. Baixote, cabeça grande, desproporcional, corcunda, usava grandes bigodes retorcidos e calvice acentuada nas têmporas. Contudo, era pessoa educada, afável, tornando-se simpático. Solteirão, já entrado em anos, precisou de alguém que lhe tomasse conta da casa, espécie de governanta. A sua família morava ali na vila, na casa perto da igreja conhecida como o casa da torre, mas ele desejava continuar independente. Foi-lhe indicada, pelos parentes, uma rapariga desembaraçada, capaz de preencher o lugar. Era a Esmeralda, a sexta filha do Félix e Conceição.

Aos filhos homens o Félix ensinou a sua profissão. O mais novo, Eduardo Augusto, aborrecia bastante os pais com seu génio irrequieto e revoltoso. Não aceitava e sempre que podia transgredia as normas estabelecidas pela sociedade do lugar. As pessoas humildes, os plebeus, obrigatoriamente tinham de andar de cabeça coberta em todos os lugares públicos. Boné, gorro, garruço, boina, chapéu os que o herdaram da família, alguma coisa teria de cobrir-lhe a cabeça. Os fidalgos e os burgueses, “pessoas de bem”, tinham o privilégio de andar de cabeça descoberta sempre que isso lhes aprouvesse. A maneira de mostrar respeito aos mais bem situados na vida, ou seja, a forma dos humildes se declararem subservientes era, ao cruzar com aquelas pessoas gradas, tirarem o chapéu ou o que lhes cobrisse a cabeça numa respeitosa e submissa reverência. Quem não cumprisse tal código de ética corria o risco de séria admoestação ou castigo. Foi o que aconteceu ao Eduardo do Félix. Garotão senhor do seu nariz detestava as imposições sociais descabidas. Bonitão achava de poder mostrar-se como muito bem entendesse. Um dia de domingo teve a coragem de andar passeando pela vila com colegas, de cabeça descoberta. Aquilo causou admiração e constrangimento nas pessoas mais velhas e repulsa naqueles que teriam de ser reverenciados. O acontecimento chegou aos ouvidos do Félix Igrejas que mandou chamar o filho por um irmão e chegando em casa ouviu o rapaz um sermão em regra. Ameaças fizeram parte da admoestação caso o facto se repetisse.

O Eduardo ficou furioso, indignado por tão grande preconceito num assunto tão insignicante, enorme injustiça duma sociadade hipócrita. Aos ricos e fidalgos, estes, ainda que falidos, tudo era permitido. Podiam fazer filhos em todas as raparigas solteiras, ter quantas amantes quisessem ou ter quantas famílias pudessem manter. Apropriar-se fraudulentamente das poucas propriedades dos mais pobres, explorar o trabalho quase escravo de seus serviçais, viver à tripa-forra sem qualquer trabalho que não fosse cuidar de seus bigodes e aparência, seus pergaminhos bolorentos conquistados sabe-se lá como.

 

(continua)

                                                                                               M. Félix Igrejas

O CARRO DOS BOMBEIROS VOLUNTÁRIOS DE MELGAÇO

melgaçodomonteàribeira, 05.09.20

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UM LUGAR ONDE NADA ACONTECIA

XI

O carro dos bombeiros, em seus passeios dominicais, não estava no seu posto, quando foi preciso. Aquilo revoltou o povo e a partir dali não mais aconteceram aquelas viagens recreativas.

Fundada em 1927 a Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Melgaço teve destacada actuação em 1930, quando ficou conhecida e laureada em Portugal e Espanha.

Do outro lado do rio Minho, em frente a Melgaço, na Espanha, o comboio expresso Madrid-Vigo, descarrilou. O acidente foi presenciado pelos curiosos que gostavam de ver passar aquele bonito comboio. Foi dado o alarme e logo o sino da matriz tocou a rebate, convocando bombeiros e povo. De barco e a nado, atravessaram o rio, socorrendo os acidentados e resgatando seus pertences que boiavam rio abaixo. Foi um momento épico.

Os jornais espanhóis e portugueses deram grande destaque ao acontecimento. Elogiando os bombeiros de Melgaço. A organização nacional dos bombeiros, de Lisboa, mandou um instrutor, algum material e o povo custeou a compra de uma bomba para a recente fundada organização, carente de recursos técnicos, mas recheada de altruísmo.

A bomba era o que de melhor existia na época, de tracção braçal, montada em uma espécie de carroça, para ser puxada por muares, mas que sempre foi impulsionada pelas pessoas, puxando ou empurrando.

Na mesma época, o Simão Araújo, filho da terra, que emigrara para o Brasil e aí fizera fortuna, já tinha construído o seu luxuoso palacete e tinha na garagem um automóvel Buick, seis cilindros, modelo 1928. Como a maior parte do ano esse carro ficava inactivo, o Simão Araújo, empolgado com a bravura dos bombeiros da sua terra, deu-lhes esse automóvel.

Além de abnegados soldados da paz, revelaram-se, esses rapazes melgacenses, primorosos artífices.

Transformaram o luxuoso carro de passeio em sensacional carro de bombeiros. Retirada a carroçaria, adaptaram ao chassi seis poltronas com estrutura em ferro, um grande cilindro central, elevado, destinado a conter os artigos de primeiros socorros. Machados e picaretas embutidos no chassi e duas grandes roldanas com as mangueiras. Na frente, o banco do motorista era corrido onde cabiam mais três pessoas, nos estribos laterais, em pé, ia o resto da guarnição. No cimo do capo uma sineta avisava a sua aproximação, o que seria desnecessário uma vez que para maior desenvolvimento retiraram o escapamento e os seis cilindros do poderoso motor fazia um barulho ensurdecedor. Haviam reforçado os feixes de molas para suportar o grande peso. Pintado todo em vermelho-sangue com os dizeres em branco nas laterais do cilindro: VIDA POR VIDA. Era uma jóia de artesanato sem utilidade. Deveria ter-lhe sido adaptada uma bomba a gasolina, o que nunca aconteceu.

O belo carro dos bombeiros era só utilizado em desfiles cívicos de quando em quando e já nos anos quarenta foi a Lisboa buscar o cadáver do Sr. Lascasas para sepultar em Melgaço.

Para não prejudicar o seu funcionamento era necessário interromper seu longo repouso, com algumas saídas. Era esse o argumento apresentado por um grupinho que, aos domingos, solicitava autorização para um passeio. O Professor Abílio Domingues, que por imposição era o Presidente da Câmara, também era o comandante dos bombeiros, pessoa cordata que exercia cargos que não pedira e para os quais não tinha a mínima aptidão, acedia.

Um domingo, na estrada da Orada, na curva da fonte da Assadura, um automóvel colheu um rapaz, que, inconsequentemente, rodava em bicicleta, em grande velocidade, pelo meio da estrada. Accionaram os bombeiros para atender ao sinistro e transportar o acidentado para o hospital. Os bombeiros estavam merendando em S. Gregório, onde tinham ido desenferrujar o bonito carro vermelho. O rapaz faleceu.

 

                                                                                  Manuel Igrejas

Publicado em: A Voz de Melgaço

 

 

 

PADRE, JOVEM E BEM PARECIDO

melgaçodomonteàribeira, 11.04.20

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cemitério de melgaço

 

UM LUGAR ONDE NADA ACONTECIA

VIII

O senhor padre Justino logo caiu no goto da população. Era natural da freguesia de Parada do Monte, um povoado perdido no meio das montanhas pertencente ao concelho de Melgaço. Logo que se ordenou foi pastorear uma paróquia serrana em Arcos de Valdevez. Em matéria de padres, a vila de Melgaço nos últimos tempos não fora feliz. O último desandara a fazer besteiras. Era jovem e bem parecido. Tinha atitudes arrogantes que não condiziam com a sua condição de sacerdote. Autoritário fazia valer a sua vontade: intransigente aceitava o que a vida lhe impunha. Empolgado com os ventos patrióticos auto-nomeou-se capelão do núcleo da Legião Portugal e comprou a farda no grau de oficial. Fumava exibindo bonita cigarreira de prata como ditava a moda dos dândis da época. Um seu irmão namorava e anunciou o casamento: a noiva era filha de um ex-padre. Não aceitou tal acontecimento e a sua revolta foi tremenda. Passou a viver em permanente estado de nervosismo. Durante uma novena, cercado dos rapazes do catecismo que eram obrigados a participar, enervou-se com os risos e cochichos que aquelas crianças trocavam entre si. Pegou um que lhe pareceu o responsável e às bofetadas levou o rapazinho pelo meio dos fiéis até à porta, pondo-o na rua. Uma mulher que lhe pareceu aquele rapaz ser um seu neto, protestou.

Na mesma hora, em altos gritos o padre mandou que a mulher se retirasse e ela obedeceu.

O irmão do padre casou. Na adega do amigo Tenente Perez para afogar a revolta, passou a tarde a beber. O vinho desceu fácil e fácil subiu à cabeça. Tinha ao final daquele dia o compromisso de encontrar a alma e acompanhar o funeral do Tino Garrilha. Amparado tentou fazer as leituras de praxe, as velas que ladeavam o caixão atrapalhavam-lhe a visão e a leitura saía gaguejada. Apagaram as velas. Durante o préstito cambaleou amparado por amigos. Foi um grande vexame! Mais vergonhosa ficou a situação quando o povo passou a comentar uma amizade exagerada com uma bonita rapariga. O arcebispo tomou conhecimento e transferiu o nervoso padre para outra freguesia.

Foi nomeado para paroquiar a vila de Melgaço, o senhor padre Justino Domingues, o inverso do anterior. Humilde em excesso, zeloso com as coisas de Deus, de figura franzina e sorriso acanhado. Despertou certa hilaridade no início ao cumprimentar as pessoas. Usava chapéu como mandava a etiqueta clerical, e como era canhoto, ao descobrir-se o impulso inicial era a mão esquerda adiantar-se, logo lhe ocorria que a norma ditava fosse a mão direita a tirar o chapéu. As duas mãos se embaralhavam e quase sempre tirava o chapéu com as duas mãos ao mesmo tempo. Na sua simplicidade revelou-se um sacerdote bondoso, empreendedor, de grande capacidade realizadora no aspecto espiritual e material. Transmitia carácter, nobreza e simplicidade em palavras e atitudes.

Quando de pronto aceitou a ideia de rapazes e raparigas de fazer a novena em intenção da saúde do Zeca do Aurélio, o senhor padre Justino ganhou a simpatia da juventude.

 

(continua)

 

                                                                Manuel Igrejas

 

                                   fica em casa

 

 

 

 

 

 

A CHEGADA DA PENICILINA A MELGAÇO

melgaçodomonteàribeira, 29.06.19

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UM LUGAR ONDE NADA ACONTECIA…

III

O Amílcar da Lucrécia estava prestes a bater as botas. O José Esteves (Zeca da Cabana) tanto insistiu com o médico que este, talvez nem tanto para salvar o moribundo, mais para testar a eficiência do novo medicamento de que se contavam maravilhas e ele só conhecia da literatura especializada que os laboratórios lhe enviavam, resolveu aceder.

Era isso! O amigo Zeca da Cabana mexera-lhe com os brios quando lhe evocou a penicilina. Telefonou, o médico, para o Delegado de Saúde Distrital em Viana do Castelo dando detalhes do caso, este telefonou para Lisboa e vinte e quatro horas depois a penicilina chegava a Melgaço pelo correio.

A expectativa era geral na localidade e arredores. A notícia de que naquela terra de “Deus me livre” de Portugal ia ser usada a tal penicilina, causou grande furor. O doutor Esteves pernoitou ao lado da cama do Amílcar, injectando-lhe de hora em hora o milagroso pó branco diluído no veículo especial que acompanhava. A reacção foi positiva e pela manhã foi considerado fora de perigo.

O júbilo foi grande e o povo da terra sentiu-se importante por estar participando do progresso da ciência. Uma maravilha, a penicilina ia salvar a vida de todos os enfermos, diziam. O médico ficou orgulhoso e já achava que valera a pena salvar o rapaz.

Manuel Igrejas

 (continua)