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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MUNDO DO FANTÁSTICO NO VALE DO MINHO

melgaçodomonteàribeira, 03.02.24

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convento de paderne

A PROCISSÃO DE DEFUNTOS

“Morava eu com os meus tios. O meu tio, que se chamava Cândido, era um corpo aberto: falava sozinho…, arrastava os socos…, tinha, assim, um comportamento diferente, mas era boa pessoa!

Uma noite, estava eu a arrumar a cozinha, mesmo ali perto da janela que dava para um caminho que ia para Castro Laboreiro. Mesmo junto havia uma Capela do Santo Cristo. Eu estava, então, a arrumar a cozinha e fui abrir a janela. Por ali passavam as gentes de Castro Laboreiro para irem para as feiras. Eles iam às feiras da Barca, dos Arcos, e saíam à quarta-feira. Traziam os porcos, os animais e outras coisas. Lá ao fundo, na entrada da vila, havia um posto de gasolina onde as camionetas paravam para meter gasolina. Quando era noite, as luzes, assim viradas para cima, para Castro, enchiam tudo de luz. Antigamente era tudo escuro…, não havia luz como agora! E eu ouvia os castrejos a rir e a falar, o ruído dos porcos… Era um divertimento! Naquele tempo não havia nada, nem rádio. Aquilo para mim era uma alegria.

O meu tio chegou à minha beira e disse: Rapariga! – Que é que me quer? – Fecha a janela! E eu respondi: - Não fecho! Pois eu estava ali só a me divertir… Mas ele disse-me assim: ou fechas a janela ou levas uma bofetada! Ele nunca me tinha falado assim! Vi que era coisa grave e fechei a janela.

Fechei a janela e deixei-o ir para a sala. A sala era grande e ficava ao fundo da casa. Ele lá foi, com os socos a rasto e a falar sozinho… era seu hábito… hui!, quantas vezes eu já o tinha escutado a falar assim… Mas depois, para me vingar dele, abri a janela. Ao abrir a janela vi aquelas luzes todas…, de várias cores: umas eram como a luz do sol, clarinhas; outras de um cor-de-rosa também clarinho; outras verdinhas…, mas muitas luzes!

Quando fixei melhor o olhar, aquilo saltitava de um lado para o outro…, umas mais altas e outras mais baixas (os homens são mais altos e as mulheres são mais baixas… nos enterros vão homens e mulheres). E saltitavam e iam a correr ali pela estrada fora, pelo caminho. Eu fiquei assim um pouco tonta: isto não é uma procissão de velas…, não vejo nenhuma pessoa!, só vejo ali as velas. Como é que elas saltam? E depois na frente vi uma grande luz, e essa grande luz ia lá no alto, por cima de todas! No outro dia vi o enterro e compreendi: era o mordomo que ia à frente e levava o crucifixo lá no alto. E a cabeça do Santo Cristo, aquela imagem na cruz, parecia uma roda de luz como uma tigela cheia de luz, fluorescente. Tinha uma cor… assim encarnado que não era bem encarnado… um cor-de-rosa…

E aquela luz ia na frente e comandava as outras luzes. As outras iam todas atrás dela. E eu não tive medo nenhum! Hoje é estrada, mas antigamente era um caminho fundo. E aquelas luzes meteram-se para o caminho do cemitério, e foram desaparecendo com a outra luz lá em cima.

No dia seguinte morreu um homem que vinha lá à Quinta, que eu conhecia muito bem. Ele tinha trinta e três anos e deixou uma mulher com trinta e três, trinta e um anos, com dois filhinhos. Eu fui ver o enterro, na beira da estrada, e aí vi que Cristo era mesmo a luz que ia lá em cima. Não disse nada ao meu tio porque tinha medo que ele me batesse, pois talvez ele pensasse que me acontecesse o mesmo que lhe acontecera a ele, como me contou a minha avó.

Quando ele tinha dezasseis anos, e diziam até que era um homem muito bonito… Um dia vinha de tapar uma água ali para os lados do cemitério, com um bonito chapéu (daqueles redondinhos como se usava naquele tempo) na cabeça. Então, passou por ele um grande cavalo branco que ia no caminho para Castro Laboreiro, e que atirou o chapéu dele para longe, e ele assustou-se! Assustou-se e ficou com o corpo aberto. Depois quando morria uma pessoa, ele sabia-o na véspera. Eu própria sou testemunha, pois a minha cama ficava encostada à parede do quarto ao lado do dele. De noite, ouvia-o gemer. E perguntava-lhe: Tio Cândido, o que é que teve ontem à noite? – Ah moça, eles “judiam” de mim… botam a burra à camisa; a canga às calças… judiam de mim!

Ele quando passou pelo cavalo ficou maluquinho. Mas a minha avó disse que fora com ele a uma mulher e que o fecharam com sete chaves de sete igrejas. Mas ele ficou sempre assim com o corpo aberto a estas coisas. Depois não era maluco, mas era assim bonzinho…, não se metia com ninguém. Via-se que, às vezes, com “a vista à ferida”… aquela vista, assim fixa nas pessoas… O maior sofrimento dele era à noite. Sempre a gemer, queixava-se que as pessoas se metiam com ele: “Judiam de mim!”.

Um dia encontrei-o de baixo de uma “lata”, assim deitado com os olhos abertos… Pensei que tinha tido um ataque: - Ó Tio Cândido, vossemecê o que é que tem? – Atiraram comigo…, atiraram comigo… Passaram com uma burra muito grande… - Mas aqui não passa uma burra! – Atiraram comigo moça…”.

Dª CONCEIÇÃO DE PADERNE, MELGAÇO, COM 56 ANOS

CAMINHANDO PELO MUNDO DO FANTÁSTICO DO VALE DO MINHO

ÁLVARO CAMPÊLO

REVISTA ANTROPOLÓGICAS Nº 6

2002

NOSSA SENHORA DA ORADA

melgaçodomonteàribeira, 06.01.24

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A LENDA DA SENHORA DA ORADA

Corria o ano da Graça de Nosso Senhor de 1569, e pelas terras do Vale do Minho espalhava-se a peste. Em todas as freguesias as pessoas estavam apavoradas com o terrível flagelo. Ricos e pobres eram atacados por um grande febrão, e ninguém parecia escapar a esta desgraça. Cheios de pavor e de fé, todos se voltavam para os santos, pois só a eles parecia restar o poder de debelar tão grande infortúnio.

Por essa altura, morava no lugar da Assadura, junto da Senhora da Orada, Tomé Anes, mais conhecido por “Vira-Pipas”, pois andava sempre com uma malguinha a mais. Tomé Anes era uma figura alegre, mas um pouco desbocada, quando importunado com a alcunha. Para além de pequenas leiras que animava, Tomé limpava e arrumava a capela de Nossa Senhora da Orada, trabalho que fazia com desvelo e devoção.

Numa certa manhã, como de costume, Tomé foi arranjar a capela. Como ainda era cedo, só tinha tomado o seu “mata-bicho”, lá em casa, e uma pequena malga de vinho na tasca da Mirandolina. Chegado à capela, o “Vira-Pipas” quase morreu de susto, pois a imagem da Senhora da Orada não estava no seu lugar, nem em qualquer outro! Às vezes acontecia que chegava a ver duas ou três imagens da Senhora, quando a borracheira passava do normal. Não ver nenhuma assustava-o seriamente. Cego não estava! Ainda perguntou à imagem do Senhor S. Brás pela ausente, mas como ele não respondeu, pensou que teriam sido os galegos os autores de tão vil afronta. Furioso saiu o “Vira-Pipas” em direcção à Vila para comunicar o sucedido ao Alcaide, e disposto a juntar o povo para enfrentar tal desfeita.

Ia o Tomé nestes propósitos pela via romana, quando o chamaram da casa do Arrocheiro para dar uma ajuda na trafega do vinho. Este era trabalho a que nunca se negava o Tomé, já que entre o passar dos cabaços de vinho, lá ia bebendo uma pequena malga do apreciado líquido.

Depois de muito bebido e comido, o “Vira-Pipas” deixou-se levar pelo sono, de modo que só noite dentro acordou e contou o sucedido para os lados da Orada ao seu amigo. Conhecendo os hábitos do Tomé, este só se riu, não acreditando em tão fantasiosa história. Mas como o Tomé insistia tanto, concordou em confirmar o acontecido com uma visita à capela. Ao entrarem, verificaram que a imagem da virgem estava no seu lugar. O único surpreendido era o “Vira-Pipas”!

No dia seguinte, muito envergonhado, Tomé decidiu ir à Senhora da Orada mais cedo do que era costume. Para testar as suas capacidades, num grande esforço, não bebeu a sua malguinha de vinho, nem o imprescindível “mata-bicho”! Chegou até a meter a cabeça debaixo da fonte para dissipar os possíveis vapores alcoólicos do dia anterior.

Na capela verificou que só estava o menino Jesus, sentado com aquela cara de choro que toda a criança tem quando a mão não o leva ao colo. Tomé ficou abismado, sem saber o que fazer. Com medo que se rissem dele, não contou a ninguém, preferindo entregar-se ao trabalho, ao ponto dos conhecidos ficarem admirados com tal dedicação.

De manhã e à noite ia à capela, e verificou que a Senhora da Orada voltava à noitinha. Umas vezes levava o menino, outras não. Só o Tomé sabia destas fugas, e pressentiu naquele mistério uma grande responsabilidade. Não lhe passava da ideia o que lhe acontecera, julgando-se destinatário de uma mensagem da Senhora para que abandonasse o consumo do álcool. Por isso, começou a diminuir no vinho, o que a todos surpreendeu!

Enquanto isso sucedia ao pobre do Tomé, em Riba de Mouro, no concelho de Monção, os habitantes viraram-se para a milagrosa Senhora da Orada, a fim de se livrarem da mortífera peste, que por aqueles anos assolava a região. Para agradar à Senhora, prometeram uma romagem anual à capela.

Depois de aparecerem os primeiros casos, surgiu na dita freguesia uma senhora, muito bonita e educada, que dizia saber como tratar aquela doença. Ninguém sabia donde ela viera. Entrava na casa das pessoas doentes, mandava fazer um chá com uma planta que trazia no alforge, e juntando outras ervas, mandava preparar um banho que ela própria passava no corpo do doente, fosse mulher, criança ou homem. Recomendava às pessoas que se lavassem com ervas de Santa Maria e folhas de sabugueiro, que defumassem as casas com alecrim e lavassem as roupas amiúde.

A bondosa dama não tinha mãos a medir! De manhã até à noite, não parava de atender doentes. Não comia nem aceitava convite para ficar à noite com eles. Quando trazia um menino, que dizia ser seu filho, este ajudava a descobrir a erva de Santa Maria e os sabugueiros que o povo não sabia onde mais encontrar.

Entretanto passaram-se quarenta dias, e a peste abrandou. Poucas pessoas sobreviveram ao flagelo, mas em Riba de Mouro ninguém morreu! A Senhora que tinha ajudado a população desapareceu como havia surgido. Todos se perguntavam agora sobre a identidade daquela misteriosa Senhora. Alguém se lembrou então, que a roupa e até a fisionomia, eram iguais à da Senhora da Orada!

Nesta certeza, logo partiram em romaria ao seu santuário, agradecendo a protecção. Vendo tal devoção e escutando o sucedido, o Tomé entendeu rapidamente o que lhe tinha sucedido e resolveu contar a todos o desaparecimento da Senhora naqueles dias anteriores. Agora, todos acreditaram!

Os romeiros partiram, espalhando o relato do milagre por todas as freguesias.

 

(Recolhida pelos alunos da Escola Profissional do Alto Minho Interior, acessível em:

http://patrimoniodefuturo.webs.uvigo.es/escola-profissional-eprami-melgaço/)

 

A LITERATURA ORAL TRADICIONAL NO CONCELHO DE MELGAÇO – UMA RIQUEZA DO PATRIMÓNIO CULTURAL E LINGUÍSTICO.

ANA MARIA ESTEVES DA ROCHA RAMOS

UNIVERSIDADE ABERTA

2019

904 c 59-Melgaço - Capela da Orada, 1911.-17.JPG

capela da orada - 1911

 

 

 

LENDAS DO VALE DO MINHO - MELGAÇO

melgaçodomonteàribeira, 09.10.21

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CAMINHANDO PELO MUNDO DO FANTÁSTICO

NO VALE DO MINHO

 

OS SETE FILHOS PÁSSAROS

 

‘’Uma mãe tinha sete filhos que tinham uma «fada»: transformavam-se em pássaros. Dizem que é de serem sete rapazes que leva a ter essa fada; outros transformam-se em lobisomem.

A mãe queria tirar a fada a esses filhos, mas não sabia como. Ela passava dias, semanas e até meses sem ver os pobres dos filhos, pois eles andavam pelos ares, astros, como os pássaros! A mãe sabia que eles se transformavam em pássaros, que tinham aquela fada, pois… sei lá, talvez viessem bater com o bico nos vidros das janelas…

Um dia foi a uma senhora entendida, contou-lhe, e perguntou-lhe como é que podia tirar essa fada aos filhos. E dizia: Eu queria quebrar esta fada aos meus filhos... Eles sofrem tanto e estão desgraçados! Ela disse-lhe: Olha! Para quebrares a fada aos teus filhos tens de fazer grandes sacrifícios. Tu cortas junco (vais aos regatos, aos rios), muito junco, e trazes para casa. Depois secas esse junco e fazes sete croças (…). A mãe tinha que fazer sete croças para os sete filhos que tinha. Mas tens que fazer essas sete croças sem falar, comer ou dormir! Agulha sobre agulha, trabalho sobre trabalho, tu não podes fazer mais nada até acabares as sete croças.

E ela pôs-se a fazer as sete croças, a tricotá-las. E não falava… só tricotava… só tricotava… As pessoas passavam e perguntavam sobre o que ela estava a fazer. Mas ela não podia responder, para não falar e assim respeitar o mando da bruxa. Até que, depois de muito tricotar, quando tinha a última croça quase pronta, as pessoas continuavam a falar para ela… (sabe que na aldeia é assim!). E já suspeitosas de tanto silêncio queriam condená-la à morte, que era o que faziam naquele tempo às bruxas. Foram contar ao rei: Assim... Assim…, há aqui na aldeia uma mulher que tricota, tricota, mas não fala… Pois não podia ser coisa deste mundo todo aquele trabalhar, trabalhar, sem falar e sem comer… O rei queria mandar matar a mulher!

Estava a pobre da mãe a acabar de tricotar as croças quando chegou o rei, com as suas autoridades, para a mandar matar. Só lhe faltavam sete malhas para acabar a última croça. Mas os filhos viram o que se estava a passar, e começaram a vir ter com a mãe. Ela viu os filhos a começar a vir; apanhou as croças e começou a metê-las naqueles pássaros. E assim que metia as croças eles ficavam homens! Quando chegou à última, à que faltavam sete malhas, meteu-a no filho, mas ele ficou com sete penas no ombro… que eram as sete malhas que faltavam.

O rei viu que era uma penitência e desistiu da sentença, pois a mãe ia dizendo, no fim: Eu não podia falar porque queria salvar os meus filhos com esta penitência!”.

 

Informante: Melgaço, Conceição 62 anos.

 

Álvaro Campelo

Revista Antropológicas nº 6, 2002

Projectos do Centro de Estudos de Antropologia Aplicada – CEAA

 

Encontrei o mesmo tema da lenda na Trilogia de Sevenwaters de Juliet Marillier, romance que recorda o passado Celta da Irlanda, publicada em Portugal pela Livraria Bertrand em Fevereiro de 2004.

Como não acredito em coincidências, a recolha efectuada pelo professor Álvaro Campelo vem confirmar a nossa ascendência: somos Celtas.

Ilídio Sousa