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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

NOSSA SENHORA DA ORADA

melgaçodomonteàribeira, 06.01.24

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A LENDA DA SENHORA DA ORADA

Corria o ano da Graça de Nosso Senhor de 1569, e pelas terras do Vale do Minho espalhava-se a peste. Em todas as freguesias as pessoas estavam apavoradas com o terrível flagelo. Ricos e pobres eram atacados por um grande febrão, e ninguém parecia escapar a esta desgraça. Cheios de pavor e de fé, todos se voltavam para os santos, pois só a eles parecia restar o poder de debelar tão grande infortúnio.

Por essa altura, morava no lugar da Assadura, junto da Senhora da Orada, Tomé Anes, mais conhecido por “Vira-Pipas”, pois andava sempre com uma malguinha a mais. Tomé Anes era uma figura alegre, mas um pouco desbocada, quando importunado com a alcunha. Para além de pequenas leiras que animava, Tomé limpava e arrumava a capela de Nossa Senhora da Orada, trabalho que fazia com desvelo e devoção.

Numa certa manhã, como de costume, Tomé foi arranjar a capela. Como ainda era cedo, só tinha tomado o seu “mata-bicho”, lá em casa, e uma pequena malga de vinho na tasca da Mirandolina. Chegado à capela, o “Vira-Pipas” quase morreu de susto, pois a imagem da Senhora da Orada não estava no seu lugar, nem em qualquer outro! Às vezes acontecia que chegava a ver duas ou três imagens da Senhora, quando a borracheira passava do normal. Não ver nenhuma assustava-o seriamente. Cego não estava! Ainda perguntou à imagem do Senhor S. Brás pela ausente, mas como ele não respondeu, pensou que teriam sido os galegos os autores de tão vil afronta. Furioso saiu o “Vira-Pipas” em direcção à Vila para comunicar o sucedido ao Alcaide, e disposto a juntar o povo para enfrentar tal desfeita.

Ia o Tomé nestes propósitos pela via romana, quando o chamaram da casa do Arrocheiro para dar uma ajuda na trafega do vinho. Este era trabalho a que nunca se negava o Tomé, já que entre o passar dos cabaços de vinho, lá ia bebendo uma pequena malga do apreciado líquido.

Depois de muito bebido e comido, o “Vira-Pipas” deixou-se levar pelo sono, de modo que só noite dentro acordou e contou o sucedido para os lados da Orada ao seu amigo. Conhecendo os hábitos do Tomé, este só se riu, não acreditando em tão fantasiosa história. Mas como o Tomé insistia tanto, concordou em confirmar o acontecido com uma visita à capela. Ao entrarem, verificaram que a imagem da virgem estava no seu lugar. O único surpreendido era o “Vira-Pipas”!

No dia seguinte, muito envergonhado, Tomé decidiu ir à Senhora da Orada mais cedo do que era costume. Para testar as suas capacidades, num grande esforço, não bebeu a sua malguinha de vinho, nem o imprescindível “mata-bicho”! Chegou até a meter a cabeça debaixo da fonte para dissipar os possíveis vapores alcoólicos do dia anterior.

Na capela verificou que só estava o menino Jesus, sentado com aquela cara de choro que toda a criança tem quando a mão não o leva ao colo. Tomé ficou abismado, sem saber o que fazer. Com medo que se rissem dele, não contou a ninguém, preferindo entregar-se ao trabalho, ao ponto dos conhecidos ficarem admirados com tal dedicação.

De manhã e à noite ia à capela, e verificou que a Senhora da Orada voltava à noitinha. Umas vezes levava o menino, outras não. Só o Tomé sabia destas fugas, e pressentiu naquele mistério uma grande responsabilidade. Não lhe passava da ideia o que lhe acontecera, julgando-se destinatário de uma mensagem da Senhora para que abandonasse o consumo do álcool. Por isso, começou a diminuir no vinho, o que a todos surpreendeu!

Enquanto isso sucedia ao pobre do Tomé, em Riba de Mouro, no concelho de Monção, os habitantes viraram-se para a milagrosa Senhora da Orada, a fim de se livrarem da mortífera peste, que por aqueles anos assolava a região. Para agradar à Senhora, prometeram uma romagem anual à capela.

Depois de aparecerem os primeiros casos, surgiu na dita freguesia uma senhora, muito bonita e educada, que dizia saber como tratar aquela doença. Ninguém sabia donde ela viera. Entrava na casa das pessoas doentes, mandava fazer um chá com uma planta que trazia no alforge, e juntando outras ervas, mandava preparar um banho que ela própria passava no corpo do doente, fosse mulher, criança ou homem. Recomendava às pessoas que se lavassem com ervas de Santa Maria e folhas de sabugueiro, que defumassem as casas com alecrim e lavassem as roupas amiúde.

A bondosa dama não tinha mãos a medir! De manhã até à noite, não parava de atender doentes. Não comia nem aceitava convite para ficar à noite com eles. Quando trazia um menino, que dizia ser seu filho, este ajudava a descobrir a erva de Santa Maria e os sabugueiros que o povo não sabia onde mais encontrar.

Entretanto passaram-se quarenta dias, e a peste abrandou. Poucas pessoas sobreviveram ao flagelo, mas em Riba de Mouro ninguém morreu! A Senhora que tinha ajudado a população desapareceu como havia surgido. Todos se perguntavam agora sobre a identidade daquela misteriosa Senhora. Alguém se lembrou então, que a roupa e até a fisionomia, eram iguais à da Senhora da Orada!

Nesta certeza, logo partiram em romaria ao seu santuário, agradecendo a protecção. Vendo tal devoção e escutando o sucedido, o Tomé entendeu rapidamente o que lhe tinha sucedido e resolveu contar a todos o desaparecimento da Senhora naqueles dias anteriores. Agora, todos acreditaram!

Os romeiros partiram, espalhando o relato do milagre por todas as freguesias.

 

(Recolhida pelos alunos da Escola Profissional do Alto Minho Interior, acessível em:

http://patrimoniodefuturo.webs.uvigo.es/escola-profissional-eprami-melgaço/)

 

A LITERATURA ORAL TRADICIONAL NO CONCELHO DE MELGAÇO – UMA RIQUEZA DO PATRIMÓNIO CULTURAL E LINGUÍSTICO.

ANA MARIA ESTEVES DA ROCHA RAMOS

UNIVERSIDADE ABERTA

2019

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capela da orada - 1911

 

 

 

LENDAS DO ALTO MINHO - MELGAÇO

melgaçodomonteàribeira, 13.06.20

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CAMINHANDO PELO MUNDO DO FANTÁSTICO

NO VALE DO MINHO

 

O BAPTIZADO NA BARRIGA

“A Ana, aqui nossa vizinha, teve três abortos. E depois, o médico disse para ela não engravidar outra vez, pois era muito fraca e poderia apanhar qualquer coisa…, ou até a criança nascer defeituosa.

Um dia, numa esfolhada, eu disse-lhe: Ó Ana, e se tu fosses baptizar a criança, ainda na barriga, debaixo da ponte de S. Lourenço? É uma ponte aqui próxima, neste regato. Disse ela: Você vai comigo? – Vou! – Então eu vou pensar nisso...

Engravidou outra vez! Andava ela grávida de três meses, e uma noite viemos para cima da ponte (eu, ela e o marido). Esperamos em cima da ponte enquanto o marido foi debaixo da ponte buscar água. Depois, ficamos os três em cima da ponte à espera da primeira pessoa que ali passasse depois da meia-noite. Mas não podia passar nem cão nem gato, senão aquela noite já não servia, e tínhamos que vir noutra.

Veio o primeiro carro e eu fiz-lhe «auto». Mas ele não parou. Veio o segundo e eu voltei a fazer «auto» e ele parou. Mas a pessoa negou-se… e eu até o conhecia… Eu disse-lhe: É para baptizar uma criança… assim, assim…, mas ele negou-se. Veio o terceiro. Parou e aceitou. E disse: Ai que bom que me aconteceu! Já ouvira falar dessa história, mas nunca esperei que me acontecesse tal coisa. Era do Registo Civil.

Estava o pai com a água. O que é que eu tenho de fazer?, perguntou o homem. Eu disse-lhe: Você pega na água e diz: “Eu te baptizo, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”. Não diga Amém, senão fecha o Baptismo à criança! Ele conhecia a rapariga e disse-lhe: Levanta bem a blusa, que eu quero regar-te bem! E passado o tempo nasceu uma rapariga linda! Hoje tem três anos.”

 

Informante: (Irmã da gravada…), 52 anos, Melgaço.

 

Álvaro Campelo

Revista Antropológicas nº 6, 2002

Projectos do Centro de Estudos de Antropologia Aplicada - CEAA

 

 

 

O BRUXO DE VILADRAQUE

melgaçodomonteàribeira, 05.05.20

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viladraque

AÇO

Nome popular para o ferro. O aço que pica a terra fica benzido pela natureza. Conforme registo de Leite de Vasconcelos, o «sábio de Vila Draque» (Melgaço) curava certas doenças pegando num pedacinho de aço, posto em cruz na casa, ou na cama sobre o doente, e dizendo a seguinte oração: «Ó aço, que picaste em terra, sirvas para benafício da minha casa! Deixa este corpo são e salvo!».

Acrescenta o mesmo autor que o «bruxo» possuía «um pedaço de aço de três pontas que mandou fazer a um ferreiro e benzeram-lho num convento» (Etnografia Portuguesa, v. 5, p. 270-271).

 

PORTUGAL SOBRENATURAL

Manuel J. Gandra

 

 

SE NÃO FICARES EM CASA, NEM O BRUXO TE VALE

 

 

 

 

 

MELGAÇO, 21 DE MARÇO DE 1829

melgaçodomonteàribeira, 01.02.20

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UM CRIME EM MELGAÇO NO SÉCULO XIX

 

Fevereiro de 1828. D. Miguel, irmão de D. Pedro IV, assume a regência do reino e jura a Carta Constitucional. Em Março do mesmo ano dissolve o parlamento; em 3 de Maio convoca as Cortes. Estas, restauram o regime tradicionalista, isto é, proclamam D. Miguel rei absoluto.

Os liberais não gostaram; organizam a oposição. É a guerra civil! Acaba em 1834, depois da derrota dos miguelistas. O rei parte para Viena de Áustria e nunca mais põe os pés em território nacional.

Estávamos em plena guerra fratricida; por todo o país D. Miguel perseguia incansavelmente os liberais; estes defendiam-se como podiam e sabiam. D. Pedro, vendo que as coisas não se resolviam, abdica em 1831, a favor de seu filho, a coroa do Brasil e dirige-se a França e Inglaterra em busca de auxílio, a fim de reconquistar o trono português para sua filha D. Maria da Glória (mais tarde D. Maria II).

Melgaço vivia dias agitados. Tomás das Quingostas aterrorizava toda a gente. Ninguém sentia segura nem a vida, nem a fazenda. Com a sua temível quadrilha matava e roubava com o maior desplante. A lei era ele. Por onde passava, deixava rastos de sangue e amargura. Uma das suas vítimas mortais foi o jovem João Vicente. Rapaz pouco dado a bens materiais e a folguedos, tencionava seguir, logo que as condições o permitissem, a carreira clerical. Só a sua mãe conhecia o segredo. Em 17 de Março de 1829 esta faz-lhe saber que tudo está pronto para ele poder assim concretizar seu sonho.

Enquanto não ingressa no Seminário vai tentando não se envolver em conflitos ideológicos ou bélicos. Ajuda na administração da Casa e de vez em quando visita as pesqueiras que a família possui no rio Minho, fiscalizando também a faina dos pescadores. Nesse ano as lampreias, os sáveis e os salmões saíam em abundância. Era, sem dúvida, um bom ano.

João Vicente tinha a estima de toda a gente de Melgaço. A sua índole calma e generosa granjeava-lhe amizades e respeito. Parecia que a sua vida decorria sempre assim: ajudando quem dele precisasse, materialmente ou com a sua palavra amiga e sábia.

No entanto, o seu destino já estava traçado. A morte estava próxima.

Naquela noite fatídica de 21 de Março de 1829, noite chuvosa, trilha o caminho que o leva ao rio. Parecia até um fantasma com a croça sobre o seu corpo miúdo. Não se vê um palmo à frente do nariz, mas como ele conhecia bem o caminho não havia qualquer problema. A croça não lhe servia de muito com a chuva.

Chega perto das pesqueiras, ouve o barulho amigo das águas e com seus olhos habituados à escuridão, perscruta-as. As redes lá estão. Tudo em ordem.

Na tarde do mesmo dia um grupo de homens, à cabeça Tomás das Quingostas, combinava um assalto a uma aldeia galega. Tinham lá gente da mesma laia que com eles colaboravam e desse modo esperavam roubar o suficiente para uns longos dias. Depois de tudo combinado até ao pormenor, foram lentamente descendo o monte em direcção ao rio. Aguardariam ali o sinal e depois atravessariam na batela que estava escondida sob umas espessas ramagens. Esperaram, esperaram, e nada de sinal. Pensaram então que algo se tinha passado com os seus amigos galegos. Outro dia seria. Tomás disse aos seus homens que se dispersassem. Com ele ficaram Caetano Paulo e o Pitães. Virando-se para eles diz-lhes: - Não regressaremos de mãos vazias! Vamos às pesqueiras ver se tem peixe. Arranjaremos depois alguém que nos faça a ceia.

Conhecedores das margens do Minho, avançam afoitamente, sem cautelas especiais.

João apercebe-se do movimento e das vozes e pergunta: - Quem vem lá?!

O Tomás, astuto como uma raposa, responde-lhe: - Gente de bem e de paz!

O rapaz, confiante e contente por ter companhia, aproxima-se deles sem qualquer receio.

O monstro, logo que vislumbra a silhueta esguia aponta-lhe o “bacamarte” e dispara sem hesitar. Um segundo depois os restantes facínoras descarregam as suas armas num corpo cambaleante. Pum! Pum!

O som dos disparos ecoou ao longo do rio durante momentos; depois, um silêncio pesado ficou a pairar no ar.

A besta aproximou-se do cadáver e com as suas botas de militar virou-o, confirmando assim a sua morte. Cruel, como abutre que era, disse aos outros: - Agora temos o caminho livre, vamos ao trabalho!

A justiça, depois de avisada, foi ao local do crime. Junto ao corpo perfurado pelas balas assassinas encontrava-se a croça toda ensanguentada.

Já neste século, um poeta anónimo, escrevia estes versos acerca do Tomás das Quingostas:

 

                                  Homem de muitas matanças,

                                  na guerra civil andou;

                                  herói das extravagâncias

                                  vidas sem conto ceifou!

 

                                  Mais dum século decorreu

                                  sobre a morte do malvado;

                                  que, por ironia, morreu

                                  sob as balas dum soldado!

 

Fonte: Melgaço e as Lutas Civis, 1º volume, Augusto César Esteves, páginas 87 a 92.

Saudações amigas a todos os melgacenses.

 

                                                           

 

   Joaquim A. Rocha

Publicado em: A VOZ DE MELGAÇO

 

Joaquim A. Rocha edita o blog Melgaço, minha terra