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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

O DRAMA DE ALVAREDO ou O CRIME DE MELGAÇO III

melgaçodomonteàribeira, 08.08.20

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 igreja de alvaredo

O incêndio não alterou os planos dos cabouqueiros. No dia seguinte, Romão decidiu que era tempo de partirem. Mandou Maria da Piedade chamar Alfredo. Esta foi a Campo de Ourique, direita à obra onde o namorado (os jornais da época referem-nos sempre como amantes, por não serem casados) se encontrava por esses dias a trabalhar, e disse-lhe: “O teu primo João está preso”. Alfredo percebeu logo que estava na hora, porém, mais tarde, Piedade dirá que desconhecia ser uma combinação dos homens.

“Alfredo, para ter dinheiro para a viagem, empenhou uma mala com roupa, um relógio e cadeia de prata, numa casa de penhores em Alcântara, por 15$000 réis. O Guerra empenhou umas argolas e umas contas de oiro da amiga por 3$900 réis; Santiago levou 3$000 réis que tinha em casa; Fonseca levava só um tostão, abonando-lhe Romão o dinheiro para a passagem e João não levava nada, porque ia às ordens de Alfredo”, contou “A Vanguarda”, adiantando que Romão era o que tinha mais “capitais”, ainda lhe sobrava dinheiro de Salamanca.

Conforme tinham combinado, entretanto, para dar tempo às diligências necessárias, encontraram-se os seis cabouqueiros na estação da Avenida (como também se chamava ao Rossio) afim de seguirem caminho. Por segundos, perderam o comboio, e voltaram a perdê-lo mesmo depois da correria que fizeram até Santa Apolónia. Regressaram a casa aborrecidos, sem tenções de desistirem. Na noite seguinte, a 28 de junho, portanto, embarcaram pelas 23 horas, decididos a irem roubar a tia e o padre.

Deviam ter pensado que, por vezes, o destino dá os seus avisos. A viagem correu bem. Fizeram uma paragem em Sacavém para comerem e de manhã já estavam noutro comboio com destino ao Porto, do qual sairiam na cidade Invicta para chegarem a Valença. Não havendo mais hipóteses ferroviárias, foram a pé até à casa do reitor da freguesia de Troviscoso. Percorridos os quase 20 quilómetros de caminho, chegaram ali já de noite, mas nada fizeram, havia gente acordada a regar o cultivo à volta da casa. Refugiaram-se no bosque e, sendo meia-noite, voltaram a tentar, contudo, foram vistos por um criado que agarrou numa espingarda e disparou um tiro que os pôs em fuga.

João Esteves lembrou-se, então, de um rendeiro que morava ali perto e que também devia ter que roubar. Já que ali estavam, pensaram todos, aproveitariam  para não regressarem a Lisboa de mãos a abanar. Lá foram. Muito embora fosse de madrugada, também depararam com dois homens de sachola a trabalhar na horta. Nada feito, quanto menos esperassem levavam com as ferramentas e aparecia gente armada como no Troviscoso.

Escondendo-se na mata conferenciaram. António Fernandes lembrou-se então que não muito longe, no lugar de Vilar, freguesia de Alvaredo, a sua mãe fora criada de um padre que possuía uma razoável fortuna. Mais uma caminhada, estavam com azar mas desta vez conseguiriam. Pelas duas horas da madrugada de 2 de julho, entraram na casa do padre Sousa Lobato. Só Romão não ia armado, dera a sua pistola ao Guerra, já que este emprestara a sua ao João Esteves, de resto Fonseca levava um punhal, Romão uma navalha, Santiago um revólver e um cacete.

 

Quando julgaram que tudo corria como o previsto…

 

Quando entraram, apesar do Santiago ter feito algum barulho, nenhum dos residentes acordou. Mas ao procurarem o dinheiro no quarto do padre, não tiveram a mesma sorte. O religioso ainda deu luta, mas ficou muito ferido. Com os gritos, o irmão e o cunhado acudiram, envolvendo-se todos à pancada, com tal estrondo que acordaram a vizinhança e os cabouqueiros não tiveram outro remédio senão porem-se a andar. Foi uma fuga desordenada, a pé, até Braga. Estavam praticamente sem dinheiro. Romão tinha uma moeda de cinco duros, mas ninguém a trocava; Santiago pensou empenhar o revólver mas as lojas estavam fechadas; o Guerra e o Fonseca decidiram ir a pé até ao Porto…

Maria da Piedade ficara em Lisboa, entregue a si própria, confiando Alfredo que ela daria bem conta do recado e que ainda ganharia algum com isso. Pensou bem. Apesar de ter havido alguma desconfiança quanto à origem do fogo, a companhia de seguros acabou por dar-lhe 114$000 réis, uma boa maquia, embora longe do valor do seguro. Com esse dinheiro, a Aguardenteira foi à casa de penhores buscar os pertences do namorado, e resgatou ainda alguma roupa, umas argolas de nove mil réis, dois anéis, um afagador com medalha, uma pregadeira, tudo em ouro.

Depois disso, a 31 de julho, partiu para a Invicta, onde ainda deu ao Santiago 12 mil réis pelo trabalho, dois mil para alugar uma casa para todos e 300 para a mudança. Todavia, beneficiaria muito pouco com todo este movimento. O padre Sousa Lobato sucumbira aos ferimentos no dia 23 de julho, a partir daí as investigações intensificaram-se, ganhando um impulso com o aparecimento de uma carta anónima que dizia serem os bandidos trabalhadores em Lisboa.

No dia 1 de agosto, Maria da Piedade e Alfredo, que arranjara trabalho nas obras da circunvalação, alugaram uma casa nas Fontainhas. Daí a três dias estarão todos presos, com exceção de João Esteves que só será apanhado, no dia 25, por um carabineiro, muito perto da fronteira, e o Romão Louzada que desaparecerá para sempre. Quando o casal foi detido, já o Fernandes, o Fonseca e o Santiago se encontravam no comissariado de Lisboa. A polícia rondara a casa de Alfredo e Piedade, mas não os detetara, só os vê quando os dois aparecem a espreitar na porta da frente…

 

Provavelmente, irão todos encontrar-se em Angola

 

Maria da Piedade tem algumas manhas. Lê-se no jornal que assumiu que deitara fogo à casa para receber o dinheiro do seguro e que “fez importantes revelações” sobre o “Drama de Alvaredo” ou “O Crime de Melgaço” como o caso ficou conhecido. No dia 8 de agosto, foi ouvida no terceiro comissariado e no Tribunal da Boa Hora. “Interrogada em juízo declarou-se autora do crime, como já o fizera na polícia, sendo depois remetida ao Aljube”, noticiou “A Vanguarda”. O seu processo ficou separado do dos cabouqueiros.

Passado um ano, a 3 de agosto de 1893, os cinco vizinhos presos na Cadeia da Relação do Porto são levados ao tribunal de Melgaço. Milhares de pessoas aguardam à porta a entrada dos assassinos do padre Manuel António de Sousa Lobato. Oito anos de prisão e 20 anos de degredo foi a sentença para quatro, o Guerra seria poupado em oito anos de África porque se provou ter ficado de vigia.

Maria da Piedade, 38 anos, já tivera o seu julgamento e seguira há três meses para África. Fora condenada pelo crime de fogo posto, como mandava o Código Penal de 1886: seis anos de prisão, seguidos de dez de degredo, ou, em alternativa, 25 anos em Angola.

Quando ainda no Comissariado foi acareada com Santiago Rey y Lopez, já que este negava ter recebido “doce duros” para a ajudar e se mostrava renitente em admitir o assalto em Melgaço, Maria da Piedade disse-lhe: “Ande homem, confesse que eu já confessei. Se vocês não tivessem dado com a língua nos dentes, podiam matar-me que eu negava tudo, ainda que me apertassem o pescoço até deitar a língua de fora”.

 

Publicado no jornal EXPRESSO

26-10-2015

 

 

 

 

O DRAMA DE ALVAREDO ou O CRIME DE MELGAÇO I

melgaçodomonteàribeira, 11.07.20

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 a aguardenteira

 

DE AGUARDENTEIRA A INCENDIÁRIA, NAMORANDO UM ASSASSINO

 

Maria da Piedade foi lavadeira mas não se deu bem. Apaixonou-se e passou a trabalhar junto do seu cabouqueiro, vendendo goles de aguardente. Mas o seu amor virou assassino e ela condenada por fogo posto. Este é o décimo caso da série “Crime à Segunda”, que o EXPRESSO está a publicar sobre criminosas portuguesas.

 

Perguntou-lhe se não queria fazer um seguro da casa, pois se esta ardesse ganhavam algum dinheiro, mas Alfredo não quis, andava com outras preocupações, nos preparativos de coisa mais rendosa. Então, Maria da Piedade, meteu mãos à obra e fogo na casa em que habitava às portas da cidade de Lisboa.

Dois anos antes, andava de um lado para outro, de galochas e odre a tiracolo, vendendo goles de aguardente ao pessoal da obra do túnel ferroviário de Lisboa, no lado de Campolide, na zona da Rabicha, a quinta que o caminho de ferro atravessará vindo do Rossio. Chamavam-lhe a Aguardenteira. A primeira ideia seria servir o namorado, mas o grupo de cabouqueiros a que este pertencia fez-lhe criar o negócio.

Maria da Piedade, nascida em São João da Pesqueira, distrito de Viseu, no ano de 1854, vivia com Alfredo Gomes, numa casa abarracada no sítio de Sant’ana, para lá da ribeira de Alcântara, onde hoje se localiza a Vila Ferro, no Bairro da Liberdade. Morava perto das obras do túnel da Rabicha, por isso, quando os homens esvaziavam a borracha, como chamavam ao recipiente que ela trazia ao ombro preso com uma correia, podia rapidamente ir enchê-la.

Piedade andava por ali, entre os trabalhadores, sem temer pelo físico. Não era mulher de se assustar, era valente “e mais temível do que muitos homens”, apesar de franzina. No sítio de Sant’ana, ninguém se metia com ela, “citavam-se proezas, na verdade extraordinárias, praticadas por aquela nova padeira de Aljubarrota”, escreveu em 1897 o jornalista Luiz Silva na “Galeria dos Criminosos Célebres em Portugal” publicada em 1897. E andava com más companhias. O namorado e os cinco vizinhos que hão de entrar no assalto fatídico, eram ali conhecidos como “desordeiros, jogadores e amigos de galinhas”, segundo o jornal “A Vanguarda”.

Na sua folha corrida, constavam duas prisões por ofensas corporais, uma de outubro de 1890 e outra no mesmo mês do ano seguinte. Nada de extraordinário, os jornais traziam diariamente notícias de agressões entre homens, entre homens e mulheres, entre mulheres… Sempre que a polícia intervinha, a prisão efetuava-se. “Maria do Patrocínio foi presa por agredir com socos a Rosa de Jesus. A cena deu-se numa casa da Travessa das Dores, nº 11, à Ajuda”, é apenas um exemplo sucedido no final de 1891. Às vezes bastava uns tabefes, como aconteceu a João Gautier, sapateiro, preso por esbofetear Carlos Leitão, morador no Areeiro do Monte.

Antes de ser Aguardenteira, Maria da Piedade ganhou músculo lavando roupa. Mas não por muito tempo, o mundo das lavadeiras também não corria de forma pacífica. Era um negócio muito competitivo… Veja-se um caso passado em setembro de 1892, quando desapareceu uma saia à lavadeira Maria de Jesus. Decorridos onze meses, a governanta do tanque nº 6, onde se dera o roubo, reconheceu a peça de roupa na mão de Joana Maria, quis tirar-lha e, como a outra não cedesse, agrediu-a, pondo-a fora do tanque que geria.

“A guarda municipal da estação do Pasteleiro, a quem a Joana se queixou, interveio e quis arbitrariamente, fazer com que a Joana continuasse a lavar no tanque, chegando a querer obrigar a governante a acompanhar a parte do ocorrido para o quartel”, noticiou em 12 de agosto de 1893, rematando: “Se o caso se assim deu, parece-nos incorreto o procedimento da guarda e para ele chamamos a atenção do sr. comandante”.

O caso não foi com a Maria da Piedade, aliás, ela já não se encontrava no continente quando se deu o desenlace, mas podia ter sido, dado o seu feitio. Uma agressão, ou mesmo um roubo, poderiam tê-la levado a mudar de profissão, todavia, sabe-se apenas que o negócio de lavadeira e, por isso, pensando no seu Alfredo, virou-se para a venda de aguardente nas obras do túnel que irão proporcionar viagens entre o Rossio e Sintra, ida e volta, a mil réis em 1ª classe, 900 em segunda e 500 em terceira. Por esta época, um operário ganhava cerca de 200 réis por dia.

Os trabalhos começaram em 1887 e terminaram três anos depois, mas o primeiro comboio a testar a circulação no túnel fê-lo em abril de 1889, levou 27 minutos, hoje demora três. Foram escavados 2612 metros de rocha calcária, entre o Rossio e Campolide; com a abertura da estação central, em junho de 1890, ficou a linha férrea de Lisboa a Sintra, Torres e Figueira a Alfornelos com um movimento de 50 comboios diários. E o casal de Sant’ana, assim como os cabouqueiros seus vizinhos, ficaram desempregados, por pouco tempo…

 

(continua)

 

 

ROUSSAS: O MILAGRE DE GREGÓRIO VAZ

melgaçodomonteàribeira, 05.10.14

 Capela da Senhora da Graça - Roussas

 

A CAPELA DA SENHORA DA GRAÇA

 

   Á padroeira d’esta ermida se attribuem muitos milagres; mencionarei apenas um reputado como tal, por prender com a nossa história.

   Pelos annos de 1660, durante a guerra da Restauração, hindo Gregorio Vaz, natural d’esta freguezia, e soldado de exército portuguez, com mais dois camaradas, reconhecer os movimentos do exército castelhano, que se achava acampado nos Arcos (Galliza), cahiram todos tres em poder do inimigo.

   Gregorio Vaz, invocou o patrocínio de Nossa Senhora da Graça, e prometteu-lhe, se o livrasse da morte, de ser eremitão da sua capella e de a servir toda a vida.

   Filipe IV, mandava enforcar todos os prisioneiros que cahiam nas garras dos seus soldados, e os nossos tres portuguezes tiveram a mesma sorte.

   Gregorio foi o ultimo a ser enforcado, mas a corda partiu-se e o desgraçado cahiu no chão, sem sentidos, e com a garganta horrivelmente ferida.

   Foi julgado morto, e, como os seus camaradas, foi abandonado aos pés da forca; mas, quando no dia seguinte vieram os frades franciscanos para lhes darem sepultura, acharam Gregorio sentado, encostado a uma mão, e tendo na outra umas contas.

   Os frades também eram castelhanos, e portanto, tão inimigos dos portuguezes como as tropas do Diabo do Meio Dia, e, em vez de terem caridade com tão grande infeliz, o entregaram ao carrasco, que lhe deu duas lançadas, que o atravessaram do peito às costas.

   Os frades o levaram a enterrar, mas, pelo caminho, viram que elle dava ainda signaes de vida. D’esta vez, emfim, attribuiram o caso a milagre, e o curaram.

   Foi depois remetido para Corunha (então capital da Galliza), e mettido em um cárcere.

   Filipe IV teve noticia d’este facto, e attribuindo-o também a milagre, fez o milagre (ainda maior) de o mandar soltar, e deixar vir em paz para Portugal.

   Gregorio cumpriu o voto e foi viver para junto da ermida da Senhora, como seu eremitão, mudando o nome para Gregorio da Graça, e alli falleceu de avançada edade, pois ainda vivia em 1712, quando Frei Agostinho de Santa Maria publicou o 4º volume do seu Santuario Mariano. Ainda então conservava as cicatrizes das feridas.

   Isto consta de documentos que existem na secretaria das Mercês, e de um alvará, assignado por D. Pedro II, e pelo qual o rei mandou dar a Gregorio da Graça um tostão por dia, para seu sustento.

 

 

PINHO LEAL, Augusto Soares d’Azevedo Barbosa de,

Portugal Antigo e Moderno, Lisboa, Livraria Editora Tavares

Cardoso & Irmão, 2006 (1873), p. Tomo VIII, p. 218

 

Retirado de: CEAO – Centro de Estudos Ataíde de Oliveira

 

http://www.lendarium.org/narrative/rocas-ou-roucas/?category=83

 

A LENDA DO FREI TECLA

melgaçodomonteàribeira, 07.12.13

 

Ruínas do convento de Fiães

 

 

UMA LENDA EM “O SÉCULO”

 

 

   Passa O Século por ser um grande jornal orientador da opinião pública e precisamente por a afirmação estar baseada na verdade, não pode nem deve dar guarida nas suas colunas a invencionices destituídas do mais pequeno fundo de veracidade, de mais a mais quando pelo assunto escolhido só podem concorrer pelo descrédito das terras, da religião de Cristo ou de uma família honesta e respeitável. Neste caso está uma das lendas publicadas no seu último Concurso – a lenda do Frei Tecla, que acabam de mostrar-me. Visto merecer correctivo quem tão levianamente a escreveu, já não deixo esta mesa de trabalho sem lhe manifestar, leitores, a minha repulsa. Ora se o Convento da Senhora da Conceição, começado a levantar pelos frades capuchos nos subúrbios da vila e na segunda metade do século XVIII, nunca passou de uma casa pobre e dos pobres, pois inacabada estava a sua própria igreja aquando da extinção dos frades; se durante as invasões francesas nenhuma pessoa de tal gente pisou terras de Melgaço ou o nosso povo fugiu de suas casas – visto está faltar veracidade na encenação teatral do Tecla frade ambicioso, ladrão e assassino. Embora fronteiriço à nossa vila de Caminha se levante o monte galego de Santa Tecla, o Tecla de Melgaço nem foi galego nem foi frade. Foi português e chamou-se António Bernardo Gomes da Cunha. Nasceu na vila, e era filho de Isabel Ventura de Sousa e de António Bernardo Gomes, um dos tabliães do público, judicial e notas, a cujo ofício prestou fiança em Janeiro de 1783.

   Ora em meados desse ano o referido seu filho, António Bernardo, foi nomeado sacristão da Santa Casa local e assim se conservou aí até 1792, ano em que despediu do cargo por « se mudar para o Couto de Fiães com ocupação de professor régio ». Quanto tempo ensinou meninos, não sei; mas no vetusto convento de Santa Maria de Fiães se processaram em 1798 uns pequenos autos para seus pais lhe fazerem o património e dele consta este requerimento

 

« Rev.mo Sr. Vigário Geral

 

   Diz o reverendo António Bernardo Gomes da Cunha, paroquiano deste couto de Santa Maria de Fiães que ele suplicante se acha com licença para exercer as suas ordens, no qual exercício quer continuar; como também quer lhe conceda licença para confessar homens; por nele concorrerem os requisitos necessários – Pede a V. R.ma M R Sr. Vigário Geral se digne conceder-lhe licença para uma e outra coisa.

 

E. R. M. »

 

   Como também se data de Fiães este despacho a deferir: « Concedemos licença ao suplicante para dizer missa e confessar homens, por tempo, digo, enquanto não mandarmos o contrário. Dada em Fiães hoje, 17 de Agosto de 1801 ».

 

Frei João de Sá

                                                           Provisor

 

Ora em 1802 os mesários da Misericórdia local fizeram seu confrade o P.e António Bernardo, mas no concelho outro vestígio dele não se encontra senão em 1810, ano em que aparece a paroquiar a freguesia de Santa Tecla de Basto, a uns dois quilómetros da sede do concelho de Celorico de Basto e, como homem de boas contas, a pagar certa dívida ao capitão mor da vila e termo de Melgaço, feito herdeiro de António Lourenço dos Reis, argentário de Golães e tio da mulher do fidalgo.

   Ora o Tecla visado na tal lenda de O Século está aqui e à vista de todos. E como este clérigo foi um dos padres liberais que em 1837 principiou por comprar a Quinta de Cavaleiros aos frades bernardos de Fiães, e acabou por adquirir nos subúrbios da vila o edifício do Convento dos Capuchos e sua cerca; como foi padre que poucos meses depois saiu de Santa Tecla de Basto e foi mandado pastorear São Paio, a cujo múnus a morte o arrancou a 14 de Fevereiro de 1857, vá dos terceiros franciscanos e seus apaniguados o apanharem morto e o insultarem fazendo……. frade galego, ambicioso, ladrão e assassino – eles que, em vida do padre, nunca lograram êxito nos descabidos manejos de expansão da sua igreja à custa do arrematado ao Estado.

   O seu funeral com a assistência de mais de 33 clérigos de missa e de tudo quanto na terra havia de representável deve bastar ao articulista de O Século para não voltar a babujar ou a enxovalhar a memória deste melgacense, pois de todos bem merece respeito e consideração quem tão honrado foi pelos conterrâneos ao deixar a vida terrena; quem el-rei D. João VI por esta forma distinguiu num alvará de 2 de Outubro de 1818: « que na Santa Igreja Catedral do Porto arme Cavaleiro a António Bernardo Gomes da Cunha, Abade de Santa Tecla de Basto, a quem Mando lançar o Hábito da dita Ordem » e a quem D. Maria II assim tratou numa carta de 22 de Março de 1852:

   « Faço saber que tendo atenção às qualidades e virtudes do abade de São Paio de Melgaço, António Bernardo Gomes da Cunha, Cavaleiro da Ordem de Cristo, e aos bons serviços por ele prestados à Igreja e ao Estado, hei por bem, em remuneração de todos eles, fazer-lhe mercê de o nomear Comendador da mesma Ordem. »

   E fiquemos por aqui, que já basta para lição educativa.

 

Publicado em Notícias de Melgaço de 25/6/1961

 

Obras Completas

Augusto César Esteves

Volume I  tomo 2

Edição Câmara Municipal de Melgaço

2002

pp. 649-651

 

NA TERRA DE INÊS NEGRA

melgaçodomonteàribeira, 13.07.13

 

 

« Na Terra de Inês Negra » é título que demarca, per si, o âmbito geográfico dos assuntos que são tratados. Queremos, no entanto, assinalar, também, a limitação no tempo: abarca factos do último século.

Melgaço, desde a época medieval até ao século XIX, tem bons trabalhos, saídos das penas de Manuel Bernardo Pintor, Doutor José Marques e Dr. Augusto César Esteves (1).

Entendemos, por isso, que deveríamos debruçar-nos sobre o último século.

Não se estranhe que no primeiro capítulo – « O que o rio Minho não separou » – se faça a ligação da Galiza com o Alto Minho, em cuja zona se situa Melgaço. Faço-o como elemento indispensável ao conhecimento da nossa terra após dezenas de anos em que a emigração das duas margens do rio Minho pode vir a alterar hábitos, costumes, tradições e afinidades que eram riqueza desta zona luso-galaica, e que importa registar num momento em que as « novidades » trazidas pela Comunidade Europeia nos eliminam as fronteiras permitindo-nos um convívio mais íntimo e frequente.

Afora esta inserção, todos os demais capítulos do « Na Terra de Inês Negra » abordam realidades locais do último século.

Desejamos oferecer à Terra-Mãe o nosso preito de gratidão e de saudade, quando a neblina desce do alto da serra a envolver-nos para o « adeus » da despedida…

Nascido em Fiães entre o rio Trancoso e o mosteiro secular cisterciense, no lugar da Adedela, ali cresci em ambiente maravilhoso de uma maravilhosa família, onde ao calor da lareira bebi, com o leite materno, as lições que me guiam.

Lugar incrustado na serra, ali funcionava a escola primária frequentada por jovens de várias freguesias, donde saíram alunos que honraram a cultura e a educação recebidas.

Como lembro, saudoso, a casa que os pobres, em quantidade, demandavam nos anos vinte e trinta e ali se « hospedavam » e a « hospedagem » incluía refeição e dormida, que a família lhes proporcionava!

Recordo as visitas semanais dos parentes, que, após a missa na capela do Sagrado Coração, passavam pela nossa casa em visita e convívio familiar!

Não olvido os encontros das férias nos quais participavam os numerosos alunos que frequentavam o liceu e o seminário!

De frente, para a Galiza, serrana e áspera, contemplo a ascensão do sol a anunciar-nos a chegada da noite, que, nas tardes de Inverno, nos empurrava para a « sala de estar » que era a lareira. E vivo, ainda, a visita Pascal, o Compasso, que, depois de nos abençoar em nossas casas, reunia a todos os habitantes do lugar na eira comum para, ali, beijarem a cruz com um beijo celestial e humano que nos congraçava a todos.

Tantas vezes, nas minhas viagens por terras longínquas, o meu coração e a minha alma corriam saudosos à casa paterna… a casa da Adedela, onde aprendi a amar a Deus, a Família, a Pátria, e a respeitar todas as convicções políticas.

É que essa pequena-grande casa recebeu e agasalhou políticos de vários quadrantes.

Sobre João de Almeida lê-se em « A Voz de Melgaço » (2): « Faleceu em Lisboa este notabilíssimo fidalgo que em horas difíceis da política esteve na Adedela, em casa do saudoso padre João Vaz, a estudar planos militares em que haveria de intervir como um dos chefes mais categorizados » (3).

Na vigência do Estado Novo, dois estudantes universitários de Aveiro, fugidos à repressão, agasalharam-se na casa da Adedela, donde os senhores da mesma os acompanharam à vizinha Galiza, confiando-os ao carinho do prestigiado e influente pároco de Monterredondo.

E, na casa da Adedela, esteve em fins de 1937 o advogado António de Araújo para, junto do padre João Vaz, buscar agasalho para Paiva Couceiro, que, vindo do exílio forçado nas Canárias, pretendia entrar em Portugal.

Os senhores da Casa eram católicos, monárquicos e salazaristas. Mas praticaram, sempre, as exigências de amizade, e respeitavam as preferências políticas dos demais.

Foi a pensar em tudo isto, não obstante o local isolado e serrano em que nasci, que decidi escrever este livro só com temas da minha terra natal.

 

Esclareço o leitor que estranhe haver trazido para este livro um capítulo cuja matéria se desenrola na cidade de Braga com o arcebispo de então D. Francisco Maria da Silva.

« Actualização », livro de que sou Autor, aborda o problema dos Seminários em Portugal.

Fui o único sacerdote português que estudou o problema a esse nível. Sou de Melgaço…

Aconteceu que bispos, catedráticos, sacerdotes e a crítica se pronunciaram sobre esse trabalho. E deste conjunto resulta um juízo objectivo sobre o livro que me apraz ressaltar, ao mesmo tempo que da análise de sacerdotes se depreende como se processavam, nessa altura, as relações Padre-Bispo o que é, também, muito importante para o estudo da vida eclesial nessa época.

 

Os derradeiros capítulos do « Na Terra de Inês Negra » referem-se a Castro Laboreiro com trabalhos que me não pertencem e, ainda, a temas da pré-história.

Nos anos quarenta, essa vila castreja pôde sonhar com ser a aldeia mais portuguesa de Portugal. Hoje, até o sonho se desfez. Ruiu com as casas castrejas.

Ora Castro Laboreiro, se tivesse mantido as suas características, seria, hoje, uma zona privilegiada de estudo e de turismo nacional e internacional. Para que os Melgacenses, as novas gerações, possam ter um retrato do que era Castro Laboreiro e do « crime » que ali se cometeu, arquivamos trabalhos de valor, que ajudarão não só a conhecer a nossa terra, mas também a recriar a alma castreja que ressuscite a histórica vila.

Arquivamos, ainda, algumas notas da pré-história. Finalmente, como fecho deste modesto trabalho, inserimos, para conhecimento e orgulho dos melgacenses, a leitura do Brasão do Concelho.

Estes últimos textos são precedidos de um breve mas notabilíssimo capítulo que titulei: « Herói Melgacense ». É uma página formosa e brilhante que perpetua, nos nossos dias, a imortal Inês Negra.

A Melgaço, terra secular e nobre, de nobres gentes e de valentes soldados, ofertamos, ao por do sol da nossa vida, este pedaço do nosso coração.

 

(1)E no ano de 1991: « O VI Centenário da Tomada do Castelo de Melgaço ».

(2)« A Voz de Melgaço » de 15 de Janeiro de 1950.

(3)O estudo era sobre a incursão de Paiva Couceiro.

 

Melgaço, Casa do Cerdedo, 28 de Janeiro de 1993

 

NA TERRA DE INÊS NEGRA

 

Autor: P.e Júlio Vaz

 

1993

 

O FANTÁSTICO EM CASTRO LABOREIRO

melgaçodomonteàribeira, 21.05.13

 

Foto retirada de fugitivo.skyrok.com

 

 

A JOVEM ENCANTADA

 

   Vivia no lugar de Quinjo, em Castro Laboreiro, uma princesa que tinha sido encantada sob a forma de uma serpente, e que trazia uma flor presa na boca.

   Era esta princesa fabulosamente rica e estava disposta a dividir a sua riqueza com quem a desencantasse. Como ia de 100 em 100 anos à feira de Entrimo, em Espanha, altura em que recuperava a sua forma humana, lá contou como deveria proceder a pessoa que estivesse disposta a desencantá-la: ir ao lugar de Quinjo e dar um beijo à flor que ela, já na forma de cobra, trazia na boca.

   Se os séculos foram passando sem que aparecesse alguém suficientemente corajoso para realizar tal façanha, nem por isso se pode dizer que o tempo tenha apagado nos homens a crença no tesouro escondido ou tenha esmorecido a fé na sua recuperação, mesmo que para tal se tivesse que cumprir o ritual prescrito pela lenda. A cobiça era sentimento mais forte que a repugnância e o medo, sem contar ainda que a astúcia humana é de tal forma atrevida e pretensiosa que, só por si, consegue dar, a quem dela resolva largar mão, uma coragem inicial que na maioria dos casos, se não é condição de sucesso, é pelo menos de chegada à última etapa possível.

   Foi assim que um dia, levados pela cobiça e apoiados na astúcia, um grupo de homens tentaram desencantar a princesa. Se o pensaram, logo programaram a aventura, animados pelo facto de um deles conhecer os segredos do livro de S. Cipriano, que ajudaria a tomar o tesouro escondido e defendido pela serpente.

   Havia contudo uma dificuldade que a todos transtornava, e que não viam meios de a superar. Como ganhar coragem para beijar a serpente? Lembraram-se então os nossos heróis de um cego que havia no lugar e que, pelo facto de não ver, não sentiria repugnância em praticar o acto. Bastante instado, mas sem saber bem ao que ia, o pobre lá anuiu a juntar-se-lhes. Reunido o grupo no local certo, no dia e hora combinados, resolveu o animador da proeza, na intenção talvez de melhor avivar os pormenores da façanha, puxar do livro e ler a lenda aos companheiros no próprio cenário onde se iria desenrolar o drama. A um dado passo da leitura, porém, fez-se ouvir um barulho medonho que, repercutindo-se pelas fragas adiante, parecia querer fendê-las para delas fazer sair a figura de um monstro.

   Nem se interrogaram a respeito do estranho fenómeno: gasta a última reserva de coragem, hei-los numa corrida doida, galgando e descendo penedos, na ânsia de alcançar a segurança do lugar onde habitavam que, estranho ao facto, recuperava no sono a energia gasta num dia de luta árdua.

   Sozinho no lugar do Quinjo, ficou o cego, desprotegido de tudo e de todos, e completamente amedrontado. Valeu-lhe o bordão, seu único apoio e guia, para descobrir forma de chegar a chão seguro e sossegado. E chegou, passados uns dias a Pereira, uma pequena povoação espanhola, que lhe deu guarida.

   Depois de conhecida a aventura no lugar, nunca mais ninguém daqueles lugares pensou em repetir a proeza.

   Em tempos mais recentes, um jovem, ao saber, por um pastor, da existência da serpente, logo se lembrou da sua terrível história de amor. A mãe da sua namorada contrariava muito seriamente o namoro e afeição que a filha mantinha com ele, facto que os obrigava a encontrarem-se às escondidas por entre as penedias. Não tardou muito que a mãe desse com o esconderijo dos namorados e, desesperada com a desobediência da filha, lhe lançasse esta maldição:

   « Que de futuro andes de rastos como as cobras no alto do Quinjo. »

   Passados dias, desapareceu a rapariga sem deixar rasto!

   Associando os factos, não restaram dúvidas ao rapaz de que se tratava da namorada que cumpria o fado a que fora condenada pela mãe. A confirmá-lo, lá estava a flor que ele lhe oferecera e que ela, numa atitude garrida, trazia entre os dentes no momento em que recebera a maldição.

   Desesperado pela triste sorte da jovem e também pela sua infelicidade, subiu ao monte e perguntou à serpente quais as possibilidades que havia de lhe quebrar o encanto. Respondeu-lhe esta que bastaria que ele, rapaz, tivesse a coragem de a beijar na boca. Mas, cautela, se à terceira tentativa o não conseguisse, redobraria o seu encanto e não mais podia trazê-la à vida e ao seu amor.

   Voltou o rapaz mais tarde, acompanhado com gente amiga, para realizar o desencanto: porém, na altura em que se aproximou da serpente, esta lançou tais silvos e contorceu-se de tal maneira que pôs em fuga todos os que presenciavam a cena. Não desistiu o namorado e, na segunda tentativa, fez-se acompanhar de um padre para ajudar o ritual com as suas rezas, e, esquecido do que havia acontecido aos outros seus conterrâneos, de um ceguinho que, pelo facto de não ver, poderia substitui-lo no acto de beijar a serpente com menos repugnância. Repetiu-se a cena anterior e tanto o padre como o cego fugiram desaustinados.

    Entendeu o rapaz que teria que ser ele sozinho, e sem a ajuda ou apoio de ninguém, mas amparado pelo amor que nutria pela jovem, a cumprir o feito. Enchendo-se de coragem, aproximou-se da serpente e, sem dificuldade de maior, deu-lhe o beijo, recebendo em troca nos seus braços a namorada. Regressaram felizes a Ribeiro de Baixo, seu lugar de nascimento, e casaram mais tarde na vila.

 

Retirado de:

Lendas do Vale do Minho

Álvaro Campelo

Associação de Municípios do Vale do Minho

2002

 

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