LARÁPIO: PROFISSÃO ÁRDUA
Depois de quatro anos de vadiagem, devassidão e declínio intelectual pela capital provincial, Braga, cidade epónima e muito mais, regressei à terra que me viu crescer, Melgaço. Ali, sendo as actividades laborais mais do que limitadas, e as restantes muito pouco regulamentares, escolhi a mais rentável, menos penível e punível, para a qual possuía as melhores competências: o jogo da lerpa.
Na Cidade Augusta, tivera como mestres e modelos o Lino e o Batata, batoteiros profissionais que exerciam nos dois maiores cafés da cidade, Sport e O Nosso Café, na avenida da Liberdade. Arvorando sempre fatos de corte e gosto irrepreensíveis, iam diariamente ao cabeleireiro-barbeiro-manicura fazer o penteado, escanhoar a barba e dispensar atentos cuidados aos longos dedos, seus valorosos instrumentos de trabalho, depondo, nas aparadas unhas, uma fina e brilhante camada de verniz transparente.
Durante meses, o dinheiro que ganhava aos clientes (parceiros) serviu para comer, às noites, depois do trabalho, bons pratos no snack do Mini Sport, rua do Carvalhal, com os amigos. Mas isto é um capítulo de outra história.
Forte da experiência de quase um ano nas mesas empanadas d’O Nosso Café, as noitadas de lerpa com os clientes de Melgaço, bastante mais simplórios e cuja parada era bem mais digna, permitiram-me, ao cabo de poucas semanas, abrir a minha primeira conta bancária.
No dia 30 de novembro de 1973, quando passei a ser considerado um homem pela administração, tinha mais de 17 000 escudos na minha conta. Para festejar a maioridade, convidei um amigo a vir comer uns doces secos e a beber uma taça de vinho espumoso à minha casa. Entre dois doces, contou-me que arrancava no dia seguinte de carro com o pai para Santarém onde, com os seus conhecimentos, tinha a certeza de obter a carta de condução. E, se a coisa corresse como esperava, ia em seguida passar um dia a Lisboa, para festejar o sucesso.
Farto de passar noitadas a deitar-me quando a minha mãe se levantava, decidi aproveitar a boleia, segui-lo até à capital e, em seguida, procurar lá um emprego.
Só que de manhã, quando acordei, já eles tinham percorrido uns bons quilómetros. Sem me desencorajar, apanhei o comboio em Monção rumo a Lisboa. Cheguei à estação de Santarém de noite, sem imaginar que a cidade ficava no cimo de um morro. Meia hora depois de um taxi me ter deixado no centro e de ter visitado algumas pensões à procura do meu colega, comia à mesa com ele na pensão onde tinha um quarto alugado para a noite e onde dormi. Na tarde do dia seguinte, depois de passar favoravelmente o exame, seguimos de comboio para a capital.
Ali, fomos visitar um amigo melgacense, o Moisés, que ia no terceiro ano de direito. Depois de arranjarmos um quarto e uma boa mesa para aquela noite, serviu-nos de guia e mostrou-nos Lisboa by night. Deitamo-nos tarde, como era de prever.
Passámos duas noites e um dia delirantes. No terceiro dia de manhã, o meu amigo apanhou o foguete para o Porto. O Moisés, que eu tinha posto ao corrente da razão da minha vinda a Lisboa, propôs-me albergue com ele na casa dos tios que, havia muitos anos, viviam na rua da Emenda, ao lado do Camões.
No dia seguinte comecei um calvário através da cidade que ia durar mais de duas semanas. Era verdade que o cabelo comprido que tinha também não me facilitava a tarefa para arranjar emprego em determinados postos que postulava. Por fim, o que consegui, depois de uns curtos testes, foi um possível lugar como ajudante de guarda-fios nos TLP. Seria contactado mais tarde por correio, no caso de a minha candidatura ser retida.
(continua)