REVOLTA POPULAR EM MELGAÇO - 2
Quando não devia já tratar-se senão de se restituírem todos a suas casas, a intriga e a discórdia, inimigos implacáveis da humanidade, que raras vezes podem separar-se destes ajuntamentos tumultuários, principiaram a derramar os seus venenos sobre gentes que não se tinham ajuntado senão para o justo fim de defenderem os direitos do Soberano, a religião e a pátria. Um paisano insolente, ostentando valentias, quando a ideia do perigo se tinha desvanecida, incita os povos para que marchem mais adiante e se façam fortes, enquanto o Capitão mor lhes ordenava prudentemente que se retirassem, prevenindo as desordens que o ajuntamento poderia produzir. O paisano, inculcando patriotismo e valor, chegou a meter as mãos a duas pistolas contra o Capitão mor; mas felizmente o seu orgulho ficou confundido às mãos de outro paisano honrado, que, no meio da sua justa cólera, não pôde conter o transporte de pegar no insolente e o pisar aos pés.
Sufocado este primeiro sintoma vertiginoso, outro se levanta, que ia tomando um aspecto mais sério. Matias de Sousa e Castro, militar distinto com o posto de Tenente no desorganizado regimento de Valença, correu com os outros ao rebate de uma quinta onde se achava; e vendo arvorada na vila a bandeira encarnada, em sina de guerra, quis persuadir ao Juiz de Fora que a mandasse arrear, não por traição ou fraqueza, pois pelo contrário foi um dos mais activos em dar as previdências de defesa, mas sinceramente porque, dizia ele, a bandeira não aumentava nem diminuía as forças e recursos, e vendo-a, os franceses se irritariam e passariam tudo à espada. O Juiz de Fora não anuiu à proposta, mas houve quem fosse espalhar a voz entre o povo, ainda congregado, que ele tinha feito arrear a bandeira, e foi o mesmo que lançar uma faísca sobre pólvora. Levantou-se um tumulto em que ficou desde logo decretada a morte do Juiz de Fora; e para executarem este projecto, alguns dos amotinados se encaminharam para a vila; pararam e ficaram tranquilos, à vista da bandeira, que existia arvorada como dantes. Soube-se depois o conselho que o militar havia dado, e voltaram-se contra este, que, avisado a tempo, pôde a muito custo salvar a vida nos pés do seu cavalo.
Por esse tempo recebeu o Juiz de Fora uma daquelas furiosas cartas que Lagarde tinha escrito aos ministros territoriais por ocasião dos movimentos do Porto; ele não a publicou, mostrando-a somente a algumas pessoas da sua confiança, e continuando sempre a animar os progressos da revolução. Como os povos se viam sem tropas, sem armas e sem munições, recorreram ao Bispo e à Junta de Ourense, e não foi debalde, porque das tropas que ali comandava o Marquês de Valadares, se destacaram logo alguns corpos para Milmanda e Celanova, prontos a entrarem em território português em caso de precisão.
(Fonte: José Accursio das Neves, História Geral da Invasão dos Francezes em Portugal, e da Restauração deste Reino – Tomo III, Lisboa, Officina de Simão Thadeo Ferreira, 1811, pp. 126-135).
(Nota original de Acúrsio das Neves) Como nenhum dos escritos que a imprensa tem publicado faz menção destes sucessos de Melgaço, ficando confundidos no quadro da revolução pela distância e pequenez do seu teatro, instruirei os meus leitores dos documentos por onde eles se me fizeram constantes. Além de outras memórias que me foram transmitidas por canais verídicos, tenho em meu poder (uma) certidão de um termo em que se referem sumariamente os ditos sucessos do dia 9, lançado a folha 197 do livro do registo da Câmara daquela vila, que teve princípio em 15 de Março de 1803, e é sobrescrita a certidão pelo respectivo escrivão Joaquim Daniel Torres Salgado. Consta-me que existira outro termo, em que se referiam com mais extensão estes sucessos, mas que fora rasgado quando se aproximaram a Melgaço as tropas do Marechal Soult na 2ª invasão. Tenho mais uma atestação do mesmo escrivão, outra do próprio Caetano José de Abreu Soares, e outra da mesma Câmara, que conferem nos factos essenciais; e finalmente a cópia de um requerimento apresentado à Câmara por um particular, para ela o representasse aos Governadores do Reino, a fim de se restituir a Melgaço a primazia da Restauração, que se queixava estar-lhe usurpada nos papéis públicos por outras terras do reino, no qual se faz uma miúda exposição dos factos, e se acham um acórdão do teor seguinte: Acórdão em Câmara, que visto serem verdadeiros os recontados factos, que atestamos, se registe este requerimento e se remeta. Melgaço, em Câmara de 4 de Outubro 1808. Com quatro assinaturas.
Retirado de: AS INVASÕES FRANCESAS
(Episódios e Documentos da Guerra Peninsular)
http://asinvasoesfrancesas.blogspot.com/2011/06/aclamacao-do-principe-regente-em.html