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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

FILIPA DE LENCASTRE

melgaçodomonteàribeira, 28.11.15

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MELGAÇO, 3 DE MARÇO DE 1388

 

Ricardo, o escudeiro do rei, estava à porta do castelo porque D. João lhe ordenara que ficasse ali a ver chegar a rainha e lhe indicasse para onde devia seguir.

Os archotes ardiam nas muralhas e em todas as casas rodeadas por elas, e apesar do frio da noite, ouvia-se o canto dos soldados vitoriosos: Melgaço tinha sido conquistada, e era agora portuguesa. João desforrava-se simbolicamente de Juan de Castela e de John of Gaunt, como se ao primeiro mandasse a mensagem de que faria incursões no seu território sempre que o entendesse, e ao outro que não precisava dos exércitos ingleses para nada.

Philippa pensou lembrar-lhe que fora ali que o pai estivera alojado, quando os habitantes e os soldados lhe tinham entregado a fortaleza de mão beijada, mas depois pensou que não fazia sentido defender o pai contra João. Partiu do mosteiro de Fiães para onde regressara passadas as festa natalícias, feliz e contente, a mão na barriga que continuava a crescer, e os cinco meses de gravidez já não tornavam possível esconder.

O banquete era servido na torre principal, mas as mesas estendiam-se pelo terreiro e até pelas ruas, que a população galega que naquele dia passara a portuguesa, achava por bem começar já a homenagear o seu novo rei, que o outro também lhe servira de pouco.

Quando Philippa, no seu vestido verde-escuro, uma tiara de ouro na cabeça, entrou na sala, todos lhe ergueram a caneca de vinho. O rei chamou-a para junto de si e pediu ao escudeiro Ricardo que lhe contasse a primeira batalha a que assistira. Logo uma em que tinham acabado vencedores.

Philippa esforçou-se por não rir, porque a descrição do miúdo, que tinha crescido centímetros sobre centímetros no último ano e a quem a puberdade esganiçara a voz, era no mínimo hilariante. O miúdo lembrava-lhe Henry, quando chegava dos torneios, e tropeçava nas próprias palavras, tal a vontade de num segundo resumir tudo o que acontecera em dias inteiros.

Mas os olhos perderam imediatamente o brilho de felicidade quando percebeu que Afonso estava do outro lado do pai, furioso pela sua presença.

- O que faz uma mulher na celebração de uma batalha? – perguntara o infante entre dentes. À fúria da chegada de Philippa, somava-se o desespero de El-Rei seu pai ter tido o desplante de pedir a um mero escudeiro o relato da conquista, quando tinha o filho à sua esquerda.

Fingindo não ter ouvido o comentário, Philippa estendeu a mão a Afonso, que a beijou de má vontade. Nada incomodada, a rainha perguntou:

- Já sei Afonso, que a tua coragem na tomada deste castelo foi digna da do teu pai.

O miúdo ficou petrificado. Não podia responder torto a quem lhe falava tão bem, e por outro lado a lisonja, como Philippa depressa descobriria, era uma arma que o vencia sempre. Olhou-a desconfiado, mas o pai, apanhando a «deixa», confirmou:

- Apesar de ter apenas onze anos, o Afonso lutou sozinho com um soldado castelhano (omitindo que Nuno Álvares estava a seu lado para o que desse e viesse) e acabou por lhe fazer saltar a espada da mão…

- Que voou pelos ares… e foi bater numa das ameias – continuou Afonso, excitado, esquecido da raiva e do ódio.

Philippa tinha um talento imenso para lidar com crianças, porque não esquecera ainda como era sentir-se mais pequeno, desprotegido e ignorado pelos adultos. Por isso foi encontrando formas de ir prolongando a conversa, até que o enteado se mudou para o seu lado e falou com ela a noite inteira. Esquecido, mas por momentos apenas, de que a criança que crescia dentro dela poderia ser o seu mais poderoso rival.

Melgaço era finalmente portuguesa e a comandá-la, o rei deixara João Rodrigues de Sá, aquele que mandara em seu lugar casar por procuração com Philippa. Quando se despediram, a rainha não resistiu a dizer-lhe que esperava que esta tarefa fosse mais fácil do que a outra, e ele com seu sorriso tímido e reservado, dobrara ligeiramente o joelho para lhe beijar a mão.

 

Filipa de Lencastre

A Rainha Que Mudou Portugal

Isabel Stilwell

A Esfera dos Livros

30ª Edição

Novembro 2014

PP. 318-320