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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

CONTRABANDO E GUARDA FISCAL

melgaçodomonteàribeira, 14.10.23

897 b s gregório fronteira.png

fronteira de s. gregório

 

DO DEVER DA FRADA À CUMPLICIDADE OCULTA –

A POSIÇÃO DAS FORÇAS POLICIAIS PERANTE O CONTRABANDO

 

O Estado impunha medidas para conter as redes de comércio clandestino, cercando as populações da fronteira com mecanismos e recursos humanos e materiais de vigilância, que permitiam fiscalizar o vaivém de mercadorias e pessoas. Apesar de este controlo já ser feito anteriormente, tornara-se mais intenso após as crises económicas e as guerras, exigindo nestes períodos cuidados adicionais, como controlar a passagem de refugiados espanhóis para o território português e evitar a passagem de armamento e, também, o intercâmbio ilegal de mercadorias (Táboas et al., 2009: 66). O Estado apostou, então, na criação e no reforço de infraestruturas de controlo fronteiriço, entre elas postos de vigilância da Guarda Fiscal. Aqui, convém realçar que Melgaço, pela variedade e valor da prática do contrabando tinha, em 1961, o maior contingente de Guarda Fiscal do Vale do Minho, com “2 sargentos, 16 cabos, e 74 soldados distribuídos por 17 postos” (Gonçalves, 2008: 245).

Os postos distribuíam-se por “quase” todas as freguesias: Via, Prado, Paços, Remoães (Mourentão), Paderne (S. Marcos), Alvaredo (S. Martinho), Chaviães (Louridal e Porto Vivo), Castro Laboreiro (Ameijoeira, Portelinha, Castro Laboreiro, Ribeiros de Cima e de Baixo), Cristóval (S. Gregório e Cevide), Lamas de Mouro (Alcobaça) e Fiães.

As forças do poder procederam, também, à reestruturação dos organismos de vigilância e de controlo da autoridade, que incluíam a Guarda Fiscal, a Guarda Nacional Republicana (GNR) e a Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE), posterior Polícia Internacional de Defesa do Estado (PIDE), sendo esta última responsável pela gestão, prevenção e contenção de crimes políticos e, em consequência, pelo agravamento de sanções penais referentes à prática de contrabando e ao auxílio à emigração clandestina.

Relativamente à prática do contrabando, a figura que mais se destaca nas narrativas dos informantes é, sem dúvida, a do Guarda Fiscal, com a qual tiveram uma experiência ou relação mais próxima. Nos seus discursos, como já referi anteriormente, a figura do Guarda Fiscal assume uma posição dual: por um lado, reprimia a prática do contrabando, zelando pelo seu dever profissional; por outro lado, devido ao seu passado antes da inserção nas forças policiais, que muitas vezes passava pelo contrabando e pela sua ligação às comunidades em que prestava serviço, onde muitos dos contrabandistas eram seus vizinhos ou parentes, acabava por conscientemente aceitar e tolerar esta prática clandestina (Amante, 2007; Fonseca &Freire, 2009).

O excerto que a seguir reproduzo foi transmitido por um antigo Guarda Fiscal que, no passado, também havia tido experiência enquanto contrabandista. Nele se reflete de forma muito clara a postura de conivência advinda das forças do poder, justificada pelo informante pela experiência do passado:

Haviam aqueles jovens, os matrimónios, que tinham casado de novo, que levavam dez quilos de Sical, iam nos barquinhos, traziam dez kilos de Sical para cá. Sempre se ganhava cinquenta escudos, cinco escudos cada, aquilo era muito dinheiro, mas claro, tinham uma família assim. Não é que eu entro das oito à meia-noite e não vou apanhar dois rapazes com vinte kilos de Sical? Porque dei-lhe o Auto! E não pararam, claro, era normal, fugiram. Atiraram com o café dentro do barquinho, mas um tinha a corrente e o barco atado num amieiro, era de noite, não abriram a tempo e eu puxei-lhe a corrente e prendi-os.

Chegámos ao Posto: ó senhor Guarda, deixe-nos ir embora, deixe-nos ir embora! (um até já chorava). Eu: pousem aí! Vão-se lá embora, pronto!

Já iam embora e deixavam o café, eles queriam era ir embora, porque o cabo, além de perderem o café, ainda os fazia pagar a multa, que era um a dez vezes o valor da mercadoria!

- Levem o café! – eles até ficaram assim admirados; e eles: ó senhor Guarda levámos para casa ou para onde imos?

- Para onde quiserdes!

Eu a primeira noite não os conhecia, tive pena deles.

Um, tinha dois filhos e tinha a mulher grávida (…) e o outro… tinham a vida deles, coitados! Então, quando vinham e eu estava de serviço, deixava-os passar. (José, Paços)

Outros casos houve em que a conivência partia de uma oportunidade de grupo, ou seja, o Guarda Fiscal, cooperando muitas das vezes com grandes redes profissionais de contrabando, impunha determinadas condições para a sua benevolência, entre elas, parte dos lucros da mercadoria transacionada, enriquecendo “à manjedoura da actividade, sem qualquer ética ou sentido de classe” (Domingues&Rodrigues, 2009: 231). Como reforçou o Guarda Fiscal que anteriormente referi, “os contrabandos, ao fim, já acabavam por não ser contrabando, porque o tenente, o comando da secção sabia tudo, deixavam e levavam!” (José, Paços). Além do referido, o posto da Guarda Fiscal e alfândega também eram, muitas das vezes, o último “refúgio” dos bens apreendidos, que depois acabavam ou por ser leiloados, ou repartidos pelos próprios soldados ou até destruídos, como um trabalhador da alfândega me acabou por confidenciar:

Jesus, nem queira saber! Eu atropelava nas apreensões da alfândega, que a Guarda Fiscal prendia, quando prendia; sabe que os maiores corruptos eram aqueles gajos que empregavam a farda, não é? Quantas vezes nós nos atiramos aí! Aqui o contrabando era uma razia. Eu queimei muita carninha vinda de Espanha. Aqui, um dia fui queimar carne a Monção, no jipe da Guarda Fiscal; não era Guarda Fiscal, era da alfândega, mas (…) no meio daqueles penedos, em Monção, só se via carne a arder. Deu-me tanta pena! Vinham aquelas pessoas com criancinhas cheias de fome! “Oh, deixe-me, dê-me (…) kilos de carne!”; “Oh, minha senhora, deixe-me ir embora e depois vocês arranjam-se!”, mas queimei muita carninha, pá! (Fernando, Cristóval)

Por fim, não se podem ignorar os episódios de repressão e abuso da autoridade por parte das forças policiais. Normalmente as ideias de dureza e repressão são mais associadas pelos informantes à figura do “carabineiro”, mas também se contam episódios de transações que acabaram em situações de extrema violência protagonizadas pelas autoridades portuguesas, como me contou um dos informantes:

… tive problemas na vida, tive problemas graves. Tive um rapaz amigo que morreu como daqui ao tribunal, levou um tiro, entrou-lhe aqui num braço e saiu debaixo do outro braço, nem ai Jesus disse! (…) nessa vez já fui preso. Levava um saco de noventa quilos às costas de café cru (…). (Mateus, Vila)

O contrabando era, de facto, uma prática clandestina de elevado risco para os seus praticantes, podendo culminar em situações mais desfavoráveis como apreensões dos bens em transação, multas, prisões ou, em situações de extrema violência, como a que acabamos de referir, culminando na morte dos contrabandistas (Godinho, 2009).

 

A FRONTEIRA ENQUANTO ESPAÇO DE PARTILHA IDENTITÁRIA, CULTURAL E LINGUÍSTICA: UM ESTUDO INTERPRETATIVO DA ZONA RAIANA DE MELGAÇO

 

MARIA SALOMÉ ALVES DIAS

UNIVERSIDADE DO MINHO

INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS

OUTUBRO DE 2017

GUARDA FISCAL E CONTRABANDO

melgaçodomonteàribeira, 08.10.22

838 b Castro Laboreiro - Perto do Ribeiro de Baixo

 perto do ribeiro de baixo castro laboreiro

 

CONTRABANDO PELA RAIA SECA DO LABOREIRO

A GUARDA-FISCAL

 

Américo Rodrigues

 

“Os Carabineiros” (na realidade Guarda-civil) e a Guarda-fiscal (“os guardinhas”) vigiavam uma das fronteiras mais velhas da Europa. Em Portugal dependiam do Ministério das Finanças, e a sua profissão estava quase totalmente vocacionada para a apreensão dos produtos contrabandeados, ou seja, ela existia em parte devido ao contrabando e aos contrabandistas.

Os três postos do guarda-fiscal existentes na freguesia tinham uma basta área de vigilância à sua guarda. Os meios de que dispunham eram escassos.

Os guardas eram na sua maioria de terras distantes, Trás-os-Montes, Beira Alta, etc. Muitos chegavam jovens e tinham baixo índice escolar. Alguns, poucos, até casaram na terra e aqui fixaram residência.

Os postos ofereciam condições mínimas de habitabilidade permanente para o corpo, principalmente para os jovens guardas, que não tinham família constituída. Outros alugavam casa na localidade, botavam horta e tentavam viver normalmente com a sua família.

A vigilância do território era feita a pé, normalmente por patrulhas de dois, percorrendo longas distâncias e focavam-se nas áreas mais sensíveis, principalmente em encruzilhadas, pontos altos e passagens mais ou menos conhecidas, onde fosse possível controlar alguns dos caminhos que se dirigiam à Galiza.

A apreensão dava um processo burocrático, uma multa e por vezes cadeia. Os produtos eram retidos e leiloados. Os guardas recebiam uma parte da verba. Da fama que ficavam com alguns também não se livram.

Mais tarde vigiavam as estradas onde tinham de passar os camiões de gado e bananas. Nesta altura recebiam quantidades chorudas, apesar de muitas vezes serem enganados, principalmente nas quantidades. Taxavam à cabeça, ao quilo ou à “passagem”. Recebiam em grupo ou individualmente, conforme a patente ou o peso junto dos contrabandistas. Alguns construíram “casas de emigrantes” e todos melhoraram as suas vidas, neste período de transição pós 25 de Abril.

Ao contrabando familiar pouco ou nada ligavam, no entanto, o povo ainda se escondia deles como do lobo, com medo que lhe apreendessem o azeite, o bacalhau, o polvo do natal, o pimento e outros bens apreciados no consumo da casa.

O povo nunca gostou de guardas. Alguns deles eram maus e ganharam fama disso. O Zé Carteiro dos anos 50/60, era disso exemplo. Parece ser mesmo perverso. Maltrata os galegos, bata-lhe e tira-lhe o contrabando. Muitos destes homens são pobres coitados que tudo temiam.

Apesar de serem funcionários públicos (sem grandes privilégios), eram descriminados localmente e colocados em nível social inferior. Em Castro Laboreiro toda a gente tinha o seu bocado de terra e os homens havia séculos que emigravam.

Os guardas na sua maioria eram considerados mandriões, e gente a evitar.

 

Boletim Cultural nº 8

Melgaço 2009

 

Eu privei de muito perto com o Zé Carteiro. Morávamos na Vila de Melgaço, porta com porta. O Zé Carteiro era um homenzarrão de 1,90 metros de altura, 120 ou 130 quilos de peso, quase todo careca. As mãos pareciam umas barbatanas de natação. Era casado com a Ritinha, poveira de nascimento, 1,60 metros de altura, 50 quilos de peso. O homem era um monstro, não só de aparência como de espírito. Quando li a referência feita pelo Dr. Américo a este energúmeno, na minha cabeça rebentaram os gritos de dor da Ritinha das coças que levava. A besta chegava, batia, comia e ia dormir. Amanhã é outro dia, mais do mesmo. Volta e meia recebia em casa visitas de rapazes, na casa dos 20 anos, que vim a saber serem filhos dele. A tática do fdp era: a carga ou as cuecas. Eram uns dois ou três e vinham de diferentes partes do concelho.

Um fim de tarde, teria eu os 6 anos de idade, rebenta guerra brava na casa do Zé Carteiro. Aos gritos da Ritinha, lá acudiram as vizinhas a tentar botar água na fervura. Desta vez a Ritinha era acusada de ter deixado queimar o bolo que cozia na pedra da lareira. As vizinhas diziam que não, não está queimado e ele gritava o contrário quando se vira para mim e grita – prova aí Ilídio. Dei uma dentada no bolo e disse – está queimado e bem queimado. Coitada da Ritinha, nesse e em todos os outros dias.

Pelos meus 12 anos fui passar 2 semanas a uma quinta, em Nine, que ele dirigia. Não tenho palavras para descrever o local, só sei que cheirava a riqueza antiga. O dono tinha que ser muito rico. Chamava-se Manuel Domingues, o Mareco.

Ilídio Sousa

 

O GUERRILHEIRO EM CASTRO LABOREIRO

melgaçodomonteàribeira, 28.09.19

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INTENTO DE DETENCIÓN DE MANOLO (VICTOR GARCÍA “EL BRASILEÑO”) POR LA GUARDIA FISCAL PORTUGUESA

 

El intento de detención de Manolo (Dente de Ouro) es ya  leyenda popular.

La mayoría de gente de Pereira – Portugal, lo conocía. Aqui contamos la versión de Domingo Alonso (D.A.R.) una de las personas más próximas a los protagonistas en el territorio y personalmente.

El 2 de Mayo de 1943 por la noche, en Castro Laboreiro después de una cena conjunta en la que participaba Manolo, un guarda fiscal llamado Carlos intentó deternele. Al parecer hubo un diálogo previo:

“Señor Manolo, dese preso”.

“Déjeme en paz si no quiere tener problemas” le respondió.

El diálogo finalizó cuando, sintiéndose acosado Manolo, le disparó desde el bolso de la gabardina y le mató.

Huyó para Ribeiro de Cima, y se refugió en casa de Rosa Alves “La Africana”. Probablemente en este acidente participó también  “Enrique” (Ramón Yañez).

Estando en Ribeiro de Cima en casa de “La Africana”, Manolo fue cercado por unos veinticinco (25) guardias fiscales. Primero salió “Enrique” por un agujero hecho en la pared de la casa, com acuerdo previo de cubrir luego la salida de Manolo. No obstante “Enrique”, al verse acosado por los guardias, huyó. Salió luego Manolo por la puerta que daba al camino y gritó a los guardias:

“Dispararé al primero que se mueva!”.

“Oh, señor Manolo. Usted no debe hacer eso” respondió el jefe de los guardias.

La situación de la casa al lado del camino y la estrechez de éste, facilitó que probablemente Manolo les pudiese apuntar com sus armas a uno o a varios de ellos. Manolo se fue alejando sin que se atreviesen a dispararle.

José (J.A.P.) transmitía la creencia popular de que los guardias le tenían miedo.

Cuando ya estaba lejos abrieron fuego. Manolo huyó para siempre.

En la zona no se supo más de él, aunque su persona y sus hechos fueron recordados durante mucho tiempo y siguen vivos en la historia del lugar.

 

Retirado de: Víctor García G. Estanillo el Brasileño

http://blocs.tinet.cat/lt/blog/victor-garcia-g.-estanillo-el-brasileno

 

A FRONTEIRA DE SÃO GREGÓRIO

melgaçodomonteàribeira, 04.06.16

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ESTADO CEDEU QUATRO EDIFÍCIOS POR CINQUENTA ANOS

 

CÂMARA DE MELGAÇO FICA COM CASAS DE FRONTEIRA 

 

Os quatro edifícios da antiga Estação Fronteiriça de São Gregório, em Cristóval, freguesia mais a norte do território nacional, foram cedidos pelo Estado à Câmara de Melgaço, gratuitamente e por cinquenta anos.

De acordo com o município liderado pelo socialista Manoel Batista, os imóveis, que durante muitos anos constituíam o posto fronteiriço de ligação a Espanha, «vão ser requalificados e devolvidos à comunidade».

Manoel Batista assegurou «já ter projetos para os quatro edifícios, atualmente em avançado estado de degradação», mas que «só divulgará oportunamente».

Com a assinatura do contrato de concessão de utilização da antiga Estação Fronteiriça de São Gregório, e após «inúmeras diligências junto do Ministério das Finanças», a autarquia vê «concretizada uma aspiração antiga».

«Foi já assinado entre o município e o Ministério das Finanças o contrato de concessão que cede, a título gratuito, e por um período de 50 anos, o imóvel do Estado denominado por Antiga Estação Fronteiriça de São Gregório, em Cristóval, Melgaço», adiantou a autarquia.

Para Manoel Batista, «esta medida vai permitir recuperar um património de elevado interesse a nível local e regional, retirando esses edifícios de um processo de degradação contínua».

 

                                                                                                                    Redação/Lusa

 

Diário do Minho, 26.5.2016

 

CRISTÓVAL NO INÍCIO DO SÉCULO XX

melgaçodomonteàribeira, 09.04.16

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A FÉ É A QUE NOS SALVA

 

O povo de Cristóval foi sempre hospitaleiro e crente, amigo do diálogo e acolhedor. Gosta de conviver e do diálogo. Eu lembro com muita saudade os conselhos dados pelos mais idosos, que nós ouvíamos com atenção e depois púnhamos em prática. Eram grupos de pessoas que se juntavam atrás dum muro tosco nas Arroteias, que lhes impedia o vento de lhes tirar o lenço da cabeça que, a fazer de boné, puxando para a testa, não permitia que o sol lhes queimasse o rosto. Que saudades eu tenho desses tempos, Deus meu! O povo de Cristóval era humilde e trabalhador. Porque não havia fábricas nem qualquer indústria, dedicavam-se os seus habitantes ao cultivo da terra e do contrabando. Semeava-se milho, feijão, centeio, batata, cultivava-se o linho, etc. Porém, em anos de prolongada seca e quando os lavradores viam as suas colheitas ameaçadas, chorando, imploravam a protecção Divina e, em profundo silêncio, organizavam a Procissão de Penitência. Então, era tirado o Senhor dos Passos e a Senhora das Lágrimas – que só saiam dos altares em ocasiões de grandes crises – , e cada imagem, ao ombro de quatro homens valentes, saiam da Igreja acompanhados de enorme multidão, formada por jovens e adultos, homens e mulheres, todos descalços, que seguiam em procissão por caminhos difíceis desde Cristóval até S. Gregório, donde seguiam depois pela estrada, que os conduzia de novo à igreja. Eu era ainda criança porém recordo que, numa dessas procissões, saímos da igreja com sol escaldante e, quando regressamos, já chovia copiosamente. Que milagre, Deus meu! Admiráveis tempos esses, em que uma sardinha era partida para quatro (isto foi apreciado por mim em alguns vizinhos) e se ia para o monte, saboreando com o naco de broa, na sacola, e uns cachos de uvas, roçar o mato para a corte do gado. A vida era difícil, mas todo o trabalho era feito ao som de alegres cantigas. O contrabando de ovos, galinhas, sabão, café, pentes, etc., levado para Espanha, também era modo de vida que ajudava os mais necessitados a viver com mais conforto. Porém, era difícil e arriscada a vida do contrabandista. Recordo pelo menos dois vizinhos meus que naqueles tempos se dedicavam a passar contrabando para Espanha e que morreram baleados por um carabineiro espanhol. De Melgaço para S. Gregório não se podia transportar nada, sem a licença da Guarda Fiscal. Então uma pobre mãe de dois filhos, arriscou-se a trazer uma galinha de Melgaço até casa. Foi porém vista por um guarda fiscal que a obrigou a acompanhá-lo até ao Posto de Cevide, a 2 Km de distância, onde havia de pagar uma multa ou ir para a cadeia. A pobre vítima, com a galinha debaixo do braço, seguia a autoridade. Porém, quando chegou ao Posto onde se encontrava o Sargento que iria dar a sentença, a galinha ia morta, porque a portadora, muito silenciosamente, tinha-lhe retorcido o pescoço. Tempos difíceis sem dúvida, mas que apesar de tudo, se ultrapassavam as mágoas, cantando e rindo.

 

                                                                         Cristóval – Betty

 

Retalhos de Vidas

Edição: Câmara Municipal de Melgaço

Outubro 2002

pp. 63-64