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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

FRONTEIRA PORTUGUESA E LEONESA

melgaçodomonteàribeira, 26.11.22

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rio minho por murteira

 

FRONTEIRAS PORTUGUEZAS E LEONEZAS NOS FINS DO SÉCULO XII

 

O que dizemos no texto relativamente aos limites de Portugal, estriba-se nos fundamentos que vamos apontar.

Linha da fóz do Minho a Melgaço. No Arch. Nacion. M. 12 de For. Ant. nº 3 f. 22v. se acha o foral de Melgaço dado em 1181, e na carta de repovoação de Lapella de 1208 se renovam a este logar os foros com que tinha sido povoado in diebus regis D. Alfonsi (L. 2 de Alemdouro f. 269). Os povoadores de Melgaço pediram para si os foros de Ribadavia, concelho limitrofe na Galliza. Lê-se no preambulo deste diploma que a nova povoação era fundada na terra ou districto de Valadares, districto que, como hoje vemos da situação desta ultima villa, se dilatava ao longo do Minho para o lado de Monção. Affonso I incluiu nos termos do novo edifício metade de Chaviães, logar exactamente situado no angulo, que a linha de Melgaço a Lindoso forma com o rio Minho, cahindo quasi perpendicularmente sobre elle.

 

HISTÓRIA DE PORTUGAL

por

Alexandre Herculano

Tomo Segundo

Lisboa

M DCCC XLVII

 

MELGAÇO NA HISTÓRIA DE PORTUGAL POR ALEXANDRE HERCULANO

melgaçodomonteàribeira, 05.11.22

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FRONTEIRAS PORTUGUEZAS E LEONEZAS NOS FINS DO

SÉCULO XII

 

Linha da foz do Minho a Melgaço. No Arch. Nacion. M. 12 de For. Ant. nº 3 f. 22 v. se acha o foral de Melgaço dado em 1181, e na carta de repovoação de Lapella 1208 se renovam a este logar os foros com que tinha sido povoado in diebus regis D. Alfonsi (L. 2 de Alemdouro f. 269). Os povoadores de Melgaço pediram para si os foros de Ribadavia, concelho limítrofe na Galiza. Lê-se no preambulo deste diploma que a nova povoação era fundada na terra ou districto de Valadares, districto que, como hoje vemos da situação desta ultima villa, se dilatava ao longo do Minho para o lado de Monção. Affonso I incluiu nos termos do novo municipio metade de Chaviães, logar exactamente situado no angulo, que a linha de Melgaço a Lindoso forma com o rio Minho, cahindo quasi perpendicularmente sobre elle. Na restauração de Contrasta (Valença) por Affonso II (Liv. 1 de Affonso III f. 64 v.) affirma elrei que seu pae já tinha dado um foral áquelle logar, o qual, portanto, remonta á epocha de Sancho I, e talvez á de Affonso I, porque nem sempre a carta municipal coincide com a origem das povoações, podendo ellas existir anteriormente. Isto mesmo se vé do fragmento da demanda entre Affonso II e suas irmans (lançado no Liv. 3º de Aff, III f. 26), d’onde consta haver já o castello de Contrasta por morte de Sancho I, porque logo começaram as discórdias d’Affonso II com as infantas, durante as quaes foi Contrasta tomada pelos leonezes.

 

HISTÓRIA DE PORTUGAL

Volume II

Alexandre Herculano

CONTRABANDO EM MELGAÇO POR ALBERTINO GONÇALVES II

melgaçodomonteàribeira, 22.01.22

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(continuação)

Os ganhos dos pequenos contrabandistas não davam para conquistar as boas graças das autoridades. Sobre eles incidia, precisamente, o seu zelo. Não lhes perdoavam uma galinha e por uma bagatela eram autuados. Mesmo assim, num ou noutro ano, o volume das apreensões não bastava para mostrar serviço às instâncias superiores. Nestas circunstâncias, a fazer fé em vários testemunhos, os principais contrabandistas chegaram a quotizar-se cedendo as mercadorias necessárias para que a “colheita” dos guardas locais conseguisse encher ou tapar os olhos às administrações centrais.

As memórias do contrabando costumam encantar-nos com narrativas que parecem retiradas de romances picarescos: as mil e uma artes de ludibriar as autoridades, as reacções de esperteza face a desafios imprevistos, a passagem de camiões desmontados nas pequenas embarcações do rio Minho, as solidariedades espontâneas ou as bizarrias de um companheiro, Mas existe uma outra face que espreita por entre estas palavras. O contrabando implicava uma vida de risco, de esforço e de sacrifício. As cargas eram pesadas e mal jeitosas. Uns não se davam bem com o sabão, outros com a chapa, outros com os couros, outros com a amêndoa, outros, ainda, com a tripa. Os sustos de outrora ainda agora arrepiam: uma turbulência no rio escuro ou a intercepção brusca de um agente da PIDE. Apesar da boa organização e do estreiro entendimento com as autoridades, não deixava de haver apreensões, multas, dívidas, humilhações, perseguições, prisões e, até, mortes. Mulheres foram encarceradas em cadeias tão distantes como a de Orense. As mortes no rio Minho, às mãos da natureza ou das autoridades, portuguesas ou espanholas, não eram raras. Atente-se na notícia que segue, publicada na década de 1950 num jornal de Melgaço:

Aparecimento de cadáver – Em 27 do mês findo, apareceu na Valinha, a boiar nas águas do rio Minho, o cadáver de José Fernandes, mais conhecido pelo “Zé do Diabo”, de Penso, que uns quinze dias antes, quando pertendia passar uma pequena porção de café para a Galiza, foi abatido a tiro pelos carabineiros.

Uma entre muitas tragédias. Por exemplo, dois jovens foram mortos a tiro, vítimas, segundo testemunhos, de uma denúncia que os descreveu, ao arrepio da verdade, como perigosos e armados. As denúncias, as ganâncias, os conflitos e as rivalidades também eram fruto da época. Acrescente-se que havia quem se sentisse, directa ou indirectamente, prejudicado nos seus negócios, por sinal legais, com os efeitos do contrabando. A memória desses tempos tem sombras.

O contrabando é uma actividade oportunista que tira partido das vicissitudes da fronteira. Constitui, portanto, um fenómeno bastante instável. Depende do muito que acontece, perto e longe, em Espanha, em Portugal e na relação entre os dois países. O mundo do contrabando é feito de mudança. Em poucos anos, sofre transformações radicais. Ora é mais num sentido, ora se inverte. Um dado produto, como o azeite, ora vai, ora vem. Tal produto ora dá, ora deixa de dar, ora volta a dar. Uma fase, como a do gado, sucede a outra, como a do café. Entretanto, os locais privilegiados de passagem deslocam-se do rio Minho para a raia seca. As vacas, antes “cordeadas” através do rio, caminham, agora, pelos planaltos. Num canto, fecham-se as pequenas lojas, no outro, proliferam as garagens para estacionamento de gado. Mudam os próprios protagonistas: os “patrões”, os “lugar-tenentes”, os “transportadores”, os fornecedores e os clientes deixam de ser os mesmos.

Qualquer reflexão sobre os efeitos do contrabando ganha em atender a estas alterações, tornando-se sensato admitir que a épocas distintas podem corresponder realidades e consequências distintas. No que me diz respeito, vou-me cingir, em jeito de conclusão, a um breve apontamento genérico.

O balanço dos efeitos do contrabando suscita um consenso bastante alargado. Apesar de lucrativo, o negócio do contrabando gerou poucas riquezas. E estas, tal como os filhos, acorreram às cidades e às áreas metropolitanas. O investimento produtivo local resultou deveras escasso (insisto no facto de o contrabando ser uma actividade económica oportunista e, como tal, poder estar pouco vocacionada para o investimento produtivo racional). O contrabando não sustentou a descolagem do desenvolvimento económico local, mas garantiu a sobrevivência condigna a uma população ameaçada pela miséria.

Esta espécie de balanço global não deve, no entanto, menosprezar o impacto local do contrabando. Basta percorrer a paisagem para o sentir. Antes da quebra recente, vários “oásis” do contrabando, como S. Gregório (na freguesia de Cristóval), eram animados por um rodopio de pessoas em busca de algum negócio ou de alguma oportunidade. Entretanto, a azáfama desertou, os comércios fecham, as propriedades vendem-se e a população diminui.

Convém não dissociar o contrabando da emigração. Por um lado, como reparou um entrevistado, ‘’mal o contrabando dava sinais de esmorecer logo a emigração recrudescia. Todos os dias, partia alguém.’’ Por outro lado, o contrabando, tal como a febre do volfrâmio, preparou o terreno para o surto emigratório dos anos 1950 e 1960. Ambos contribuíram para retirar parte da população da rotina do trabalho agrícola. Independentemente desta ou daquela lufada de prosperidade, ambos acalentaram ambições, abriram expectativas e alargaram horizontes. Uma vez dado o passo, ninguém concebia regressar ao antigamente. O volfrâmio e o contrabando propiciaram, também, vivências, conhecimentos e relações passíveis de mobilização noutros contextos e noutras paragens. Proporcionou-se, em suma, um sentimento de inquietude com asas de esperança, uma das molas mais decisivas da emigração. Não é, certamente, por acaso que Melgaço primou, ao nível do país, tanto pelo contrabando como pela emigração. E, cada um a seu modo, ambos semearam a realidade actual.

 

contrabando albertino.pdf

repositorium.sdum.uminho.pt

http://hdl.handle.net/1822/36693

CONTRABANDO EM MELGAÇO POR ALBERTINO GONÇALVES I

melgaçodomonteàribeira, 15.01.22

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dr. albertino gonçalves homenageado pela cmm

 

CAMINHOS DE INQUIETUDE.

A ORGANIZAÇÃO DO CONTRABANDO NO CONCELHO DE MELGAÇO

 

ALBERTINO GONÇALVES

PROFESSOR ASSOCIADO DO DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA E INVESTIGADOR DO CENTRO DE ESTUDOS COMUNICAÇÃO E SOCIEDADE, AMBOS DA UNIVERSIDADE DO MINHO.

 

Desde que há memória, o contrabando sempre constituiu, a par da emigração, uma das actividades económicas mais importantes da população de Melgaço. Mobilizou todo o tipo de pessoas: carenciados e remediados, homens e mulheres, adultos e crianças.

A figura da mulher contrabandista é consagrada em vários textos literários. Recorde-se, por exemplo, o conto de Miguel Torga, “A fronteira” (Novos Contos da Montanha, 1944), dedicado ao amor dilacerado entre um guarda republicano e uma mulher contrabandista. As mulheres ajudavam nas cargas, por vezes, tanto quanto os homens. Algumas ocuparam lugares destacados nas redes de contrabando e da emigração. E alguns dos processos mais volumosos arquivados no Tribunal da Comarca de Melgaço dizem-lhes respeito. Muitas entregavam-se ao pequeno contrabando, por conta própria, de ovos, galinhas, café e outras mercadorias. Recorriam, inclusivamente, a peças de vestuário adaptadas para disfarçar o transporte.

Quanto à participação das crianças, os próprios professores se queixavam das faltas às aulas por motivo de trabalho no contrabando. O seguinte ofício, de 2 de Junho de 1941, dirigido ao Director do Distrito Escolar de Viana, é, a este propósito, deveras elucidativo:

Tenho a honra de comunicar a V. Exa. que, como o demonstra o mapa mensal referente a Maio, a frequência média da 3ª classe desceu de 33, em Abril, para 27. A causa desta anormalidade filia-se na razão de os pais de muitas crianças as mandarem para a “frota” - por que é conhecido o contrabando de ovos e sabão para a Espanha. Tenho empregado os maiores esforços desde o pedido servil até à intimidação, mas como os lucros são fabulosos – uma criança chega a ganhar por dia 30 e 40$00, e a miséria é grande, nada tenho conseguido. Sei que não é esta escola a única a sentir estes perniciosos efeitos do contrabando, pois o mal é geral.

Nos picos do contrabando, todos os braços eram, efectivamente, poucos! Os homens acorriam de longe, desciam as montanhas para locais como o Peso, face a Arbo, onde ficavam à espera da próxima carga ou descarga, normalmente nocturna, para ganhar algumas “senhas”. Era, de facto, costume os transportadores receberem senhas em função das cargas, senhas que trocadas, nos dias seguintes, por dinheiro. Ainda recentemente foram descobertos, num cofre privado, alguns blocos com senhas que sobraram desses tempos.

Melgaço é um dos concelhos portugueses com maior proporção de fronteira: três quintos do território confinam com a Galiza, num percurso que se estende por 61 Km: 22 Km de fronteira terrestre e 39 de fronteira fluvial (incluindo os 19 Km correspondentes ao rio Minho). O traçado e a extensão da linha de fronteira, associados à intensidade e à diversidade do contrabando e da emigração clandestina, justificaram que Melgaço tivesse a maior secção da Guarda Fiscal de todo o Vale do Minho. Em 1961, serviam, neste concelho, 2 sargentos, 16 cabos e 74 soldados distribuídos por 17 postos.

Neste contexto, o contrabando, para ser bem sucedido carecia de boa organização. Havia vários “patrões” do contrabando. Alguns juntavam-se constituindo uma espécie de consórcios, como, por exemplo, o do “Eixo” composto por meia dúzia de “patrões”. Havia os lugar-tenentes, homens de confiança que se destinguiam tanto pela sua capacidade como pela sua lealdade, os capatazes, os condutores, os bateleiros, os transportadores, os informadores… Mais os fornecedores, os intermediários e os clientes. Para além dos recursos humanos, eram ainda necessários meios logísticos: barcos, carros e camiões, para o transporte; meios de comunicação (por exemplo, radiotransmissores); armazéns e esconderijos (visíveis em muitas casas construídas nos anos de 1950 e 1960). Algum investimento em negócios de fachada também era conveniente para encobrir e branquear a actividade do contrabando. Tão pouco podiam faltar os meios financeiros. A candonga e o mercado negro atingiram dimensões extrordinárias. Multiplicaram-se os postos de câmbios. Devido à emigração e contrabando, Melgaço desfrutava, em 1975, de uma das melhores coberturas bancárias de todo o País.

Tamanha complexidade não impedia que as redes de contrabando fossem ágeis e flexíveis, capazes de responder, de imediato e sem falhas, às urgências e pressões do momento: um carregamento imprevisto, uma alteração do plantão da guarda, uma troca de itinerário ou a trasladação da mercadoria de um armazém para outro ditada por uma ameaça de busca…

De qualquer modo, dois ingredientes permaneciam cruciais para o sucesso do contrabando: a confiança recíproca e o saber prático. Interdependentes, os “trabalhadores do contrabando” tinham que confiar uns nos outros, fosse qual fosse o lado da fronteira. Era um jogo muito sério em que competia a cada um (chefe, fornecedor, cliente, transportador, informador e, até, vizinho) comportar-se segundo as expectativas, ou seja, em conformidade com os seus comprimissos e as suas responsabilidades. Caso contrário, a cadeia rompia-se e, sem ela, pouco ou nada se conseguiria. É certo que, aqui e além, sobrevinham pequenos abusos e algumas picardias. Contam-se, por exemplo, histórias de água nos odres de azeite e de excesso de peso nas amêndoas humedecidas. Nada, porém, que ultrapassasse os limites ou fizesse perigar a continuidade do negócio.

O saber prático, transmitido de geração em geração ou conquistado pela experiência, orientava, por sua vez, as decisões e as acções quotidianas, referindo-se aos produtos, ao rio, à metereologia, aos trilhos, aos animais (evitar, por exemplo, o ladrar dos cães) e às pessoas. Saberes que davam azo a uma linguagem própria. Sob risco de esquecimento e de perda irrevogável, urge recolher e estudar os contornos e os conteúdos destes saberes inerentes à lide do contrabando.

Toda esta panóplia de recursos, de posturas e de saberes de pouco serviria sem a conivência das autoridades. Importava assegurar e custear a sua cumplicidade. Cobravam à carga ou, mais raro, ao mês. Era, assim, normal a peregrinação de guardas fiscais pelas casas dos “contribuintes” ou, então, a sua presença, discreta mas vigilante, durante o despacho “contabilizado” das cargas. Nem todos os guardas aceitavam colaborar. Dos mais renitentes se ocupavam os próprios colegas. Nas rondas, sempre aos pares, um vigiava o outro. Na primeira ocasião, eram destacados para postos, como, por exemplo, o da Ameixoeira, em Castro Laboreiro, onde o incómodo resultava menor.

Mas o transporte das mercadorias não se confinava à linha de fronteira. Alguns produtos vinham de Lisboa e destinavam-se a Madrid. As pessoas abasteciam-se de ovos nas feiras de Ponte de Lima. Os fornecedores de café estavam sedeados em Braga, no Porto e em Lisboa. Por detrás do ouro e da prata estavam bancos nacionais. Os fios da rede era de tal ordem que, segundo consta, houve períodos em que o comboio parava ou abrandava antes de chegar às estações, como, por exemplo, a da Frieira, para receber ou largar mercadoria. A simples consulta de processos arquivados nos tribunais, minuciosamente instruídos pela PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado), elucida-nos sobre quão extensas e labirínticas podiam ser as malhas do contrabando e da emigração clandestina. Boa parte das apreensões de contrabando não era feita nas imediações da fronteira mas nas estradas que ligavam ao Porto ou a Vigo. Era, por isso, imperativo “trabalhar” as autoridades a montante e a jusante.

 

(continua)

POLVO, TRADIÇÃO NATALÍCIA EM MELGAÇO

melgaçodomonteàribeira, 23.12.21

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fronteira e pide

 

A HISTÓRIA DA GENTE QUE DESAFIOU SALAZAR

PARA TER POLVO NO NATAL

 

É uma história de contrabando. De um tesouro que vinha da Galiza. Conta-nos a edição on-line da Notícias Magazine que, em tempos, Salazar tentou travar esta tradição para proteger a frota bacalhoeira. No entanto, o povo do Vale do Minho sempre arranjou maneira de fazer chegar ao prato este manjar que vinha lá de cima.

À Notícias Magazine, Albertino Gonçalves, professor de Sociologia na Universidade do Minho, referiu mesmo que o bacalhau da consoada não é, uma tradição assim tão antiga. No final dos anos trinta, depois da Guerra Civil Espanhola e de uma tremenda escassez de alimentos nos dois lados da fronteira, o Estado Novo quis ordenar o abastecimento alimentar do país para travar a fome. “Salazar definiu zonas e produtos: cereais no Alentejo, sardinha nos portos pesqueiros, hortícolas e frutícolas no Oeste. E investiu seriamente na frota bacalhoeira, capaz de trazer das águas frias do Norte um ingrediente barato e altamente duradouro”, disse o investigador. “Nessas contas, o polvo, que vinha essencialmente de Espanha, não tinha lugar”.

 

MELGAÇO DESAFIAVA O ESTADO NOVO

 

O bacalhau nascia da vontade política, mas o Município mais a norte de Portugal teimava em resistir ao menu imposto pelo fascismo. Na maioria das vezes, conta-se, foi o jogo do gato e do rato. Avelino Fernandes, 69 anos, era guarda-fiscal em S. Gregório, freguesia de Melgaço. “Em novembro e dezembro já se sabia que aumentava o contrabando de polvo. Éramos 32 guardas e reforçávamos a vigilância nesta altura”, conta à Notícias Magazine.

Muitos deles eram homens da terra e na maior parte dos casos fechavam os olhos à passagem do repasto natalício. “O problema era a PIDE, que andava sempre em cima de nós para controlarmos o polvo. Eram maus como as cobras, eram capazes de deixar uma família sem ceia na consoada para cumprir aquilo que o Salazar queria”, contou. A sua memória preferida de quase quatro décadas naquele ofício foi o dia em que prenderam os agentes da polícia política, em Abril de 1974.

António Domingues, 84 anos, concorda. Era apalpador na alfândega, revistava os homens que passavam pelo posto fronteiriço, vindos da Galiza. “As pessoas arranjavam mil e uma maneiras de disfarçar a entrada de mercadoria. Traziam coletes encostados ao corpo, camadas falsas de roupa, tudo o que se conseguisse imaginar. Mas, na altura do Natal, não precisava de tocar em ninguém. Se trazia polvo, eu topava-o pelo cheiro”, recordou.

Há em Melgaço um museu chamado Memória e Fronteira onde se presta homenagem às décadas em que a passagem para Espanha era atividade furtiva. Ao contrabando, mas também à emigração. Os arquivos das apreensões pela Guarda Fiscal estão ali guardados – e basta olhar para os registos para perceber como o polvo era importação da quadra.

“Quando chegava a altura do polvo tínhamos de ter cuidados redobrados, por causa do cheiro que largava”, conta agora numa cumeada frente ao rio. Era por ali que passavam o produto e o escondiam em covas no chão. “Mas não podia ficar muitos dias, senão a Guarda dava por ele”, contou à Notícias Magazine, Amadeu Pereira, de 83 anos. O molusco era contrabando em movimento constante.

A passagem fazia-se entre as duas e três da manhã, “horas em que até as pedras dormem”. Cada pessoa com 40 quilos de polvo seco atados por um cordel, e às vezes eram mais de uma vintena a tentar cruzar o rio.

“Tínhamos uma barca afundada com uma pedra, que puxávamos por uma corda para trazer o produto para Portugal. O primeiro passava sempre sem carga, não fosse a Guarda estar à espreita. Se fosse apanhado gritava que andava ali raposa e voltávamos todos para o mato. Se estivesse livre, atirava três pedras para a água a anunciar que o caminho estava livre. Era o sinal”. O caminho para ir buscar o polvo era longo, 30 quilómetros pelo meio do mato, que na estrada podiam ser apanhados pela Guardia Civil. Só andávamos de noite, e sempre em silêncio. De dia dormíamos no meio do bosque”. O abastecimento fazia-se no armazém de um antigo merceeiro galego, no lugar do Couto.

Nas aldeias de Melgaço, hoje toda a gente conta a mesma história. O polvo chegava seco e pendurava-se atrás da porta. Dois dias antes do Natal juntava-se o mulherio nas fontes e mergulhava-se na água. Depois, era agarrá-lo pela cabeça e batê-lo numa pedra, pelo menos cinquenta vezes.

 

Rádio Vale do Minho

5 Dezembro, 2018

E COMO ATRAVESSAR O TRANCOSO OU BARXAS EM DEZEMBRO PARA IR COMPRAR O POLVO?

TOMÁS JOAQUIM CODEÇO IV

melgaçodomonteàribeira, 27.11.21

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cavaleiro alvo

Durante o período do pronunciamento militar, as atenções deixaram de estar centradas em Quingostas, e este, tirando partido da situação, conseguiu estabelecer contactos com o Visconde das Antas, que lhe atribuiu um salvo-conduto, em Dezembro do mesmo ano. Abandonada a clandestinidade, alguns dos seus sequazes saíram da clandestinidade, regressando às respectivas aldeias sem serem incomodados.

Tomás Quingostas tornou-se comandante da guarda volante do Alto Minho, tendo como missão capturar soldados desertores que fugiam para a Galiza, bem como guerrilheiros galegos, adeptos do carlismo, e evitar roubos e furtos, cooperando na manutenção da ordem e da tranquilidade no Alto Minho. No seu novo cargo, ia cumprindo, a perceito as funções de que estava incumbido. Porém, em Agosto de 1838, assassinou o presidente da câmara do Soajo, João Manuel Domingues, e em Novembro do mesmo ano prendeu João Pires e o padre António José Alves, com a justificação de que davam guarida a guerrilheiros espanhóis. Apesar de não se terem confirmado essas suspeitas, a detenção foi efectuada com o pretexto de terem na sua posse pólvora e sabão contrabandeados. Algumas das acções levadas pelo seu “exército”, bem como a sua ligação a guerrilhas espanholas ditaram o seu fim. Acusado de assassinato, Tomás das Quingostas foi morto em Janeiro de 1839 pela escolta que o transportava para a prisão, que alegou tentativa de fuga. Caía assim aquele que chegou a ser apelidado de “pequeno general do Alto Minho”, que foi assassino, salteador, guerrilheiro, comandante de tropas e herói popular.

As reacções à sua morte não se fizeram esperar. Além do já referido rapto do proprietário João Bento Pereira Dantas, uma quadrilha comandada pelo “Beira-Alta”, primo de Quingostas, miguelista, guerrilheiro e salteador, invadiu, em 1839, a casa de António José Afonso da Costa, na freguesia de Merufe, concelho de Monção, arrastou-o para fora da sua habitação e assassinou-o.

Nenhum dos salteadores que sucederam a Quingostas conseguiu granjear a sua popularidade e o reconhecimento junto das populações, talvez porque se tratava de homens considerados autenticamente marginais, que recorriam à violência, ao assalto e ao furto apenas para satisfazerem os seus interesses pessoais, sem quaisquer motivações de natureza política.

Deste modo, os nomes que adiante abordaremos não se destacaram pela simpatia e protecção de que beneficiaram junto das comunidades, mas antes pelo terror que espalharam e pela malignidade dos crimes que praticaram.

 

UNIVERSIDADE DO MINHO

Instituto de Ciências Sociais

 

ALEXANDRA PATRÍCIA LOPES ESTEVES

Entre o crime e a cadeia: violência e marginalidade no Alto Minho (1732-1870)

Volume I

Tese de Doutoramento em História

Ramo de Conhecimento em Idade Contemporânea

Agosto de 2010

 

http://academia.edu

TOMÁS JOAQUIM CODEÇO III

melgaçodomonteàribeira, 20.11.21

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Em Junho de 1836, quando a quadrilha de Tomás Quingostas era já rotulada de miguelista, foi preso José Joaquim Codeceira “saltiador de reinos, ladrão de estrada, assacino, e sócio de Quadrilha e Miguelista”, um dos responsáveis pelo aliciamento de desertores portugueses para integrarem as forças inimigas de Isabel II, tendo ele próprio combatido ao lado dos guerrilheiros. Esta ligação entre apaniguados das causas miguelista e carlista tornava imperiosa a destruição da quadrilha portuguesa e elevava a fasquia do seu grau de perigosidade.

A captura de elementos ligados ao bando de Quingostas resultava, em muitos casos, de acções de espionagem, executadas por homens a soldo das autoridades. Todavia, a prisão desses creminosos não implicava, necessariamente a sua punição. Muitos acabavam inocentados e postos em liberdade, ou conseguiam evadir-se dos estabelecimentos prisionais e vingar-se dos responsáveis pela sua detenção. O administrador do concelho de Melgaço não se inibia de lançar suspeitas sobre a existência de protecção aos salteadores e aos miguelistas, por parte do poder judicial, e de apoio exterior nas evasões de criminosos. Em 11 de Junho de 1836, depois de ter sofrido várias ameaças e farto da chacota de que era alvo, vendo a sua autoridade ser desacreditada por indivíduos que viviam à margem da lei, apresentou o seu pedido de demissão ao governador civil, pois, segundo as suas palavras, “bibo bexado de ver a protecção que tem tais corifeus, e descaramento e ouzadia com eu elles se portão.”

Quingostas escapou por pouco à prisão, num ataque de surpresa lançado pelas autoridades, após terem sido informadas da intenção do salteador se deslocar a uma romaria, tendo que passar pela freguesia da Gave, situada no concelho de Valadares. A quadrilha foi realmente surpreendida, mas o seu líder não foi apanhado.

Em finais de 1836, eram conhecidos os encontros, que tinham lugar no concelho de Melgaço, entre salteadores e miguelistas, sob o comando de Quingostas, que se presumia terem como objectivo desenvolver acções de desacreditação do governo liberal, a nível local, através de investidas contra as autoridades e contra a propriedade. Durante esse ano, tinham circulado pelos diferentes concelhos do distrito boatos sobre a realização de reuniões miguelistas e a existência de depósitos de armas.

Em Outubro de 1836, realizou-se, naquele concelho, uma reunião que juntou 18 miguelistas, na sua maior parte ofociais amnistiados, oriundos da cidade de Braga, aos quais se juntaram, dias depois, mais 13 da mesma cidade. Segundo as guardas nacionais de Arcos de Valdevez e Ponte da Barca, estes indivíduos incorporados na “gavilha” de Tomás Quingostas formaram um grupo de 45 homens, que, na noite de 21 para 22 de Outubro daquele ano, passou para a Galiza. O objectivo final seria a realização de um levantamento pró-miguelista a partir de Melgaço, contando com a participação dos vários adeptos do miguelismo nesta região.

Logo nos primórdios de 1837, Quingostas atacou a casa de uma viúva rica da freguesia de Merufe, concelho de Valadares. Seguido por mais de 20 homens, feriu com ums facada a dona da casa e, além de dinheiro e roupa, roubou-lhe papéis importantes com a intenção de a chantegear e, desse modo, obter mais dinheiro. Aliás, o guerrilheiro recorria frequentemente a este estratagema para extorquir dinheiro.

Em Março de 1837, uma força militar marchou em direcção aos concelhos de Monção, Melgaço e Valadares, com a missão não só de pôr termo aos roubos, mas também de perseguir e destruir a quadrilha de Quingostas. Mas este conseguiu escapulir-se para Espanha com cinco dos seus companheiros. O objectivo das autoridades passou então a ser impedir o seu regresso a Portugal. No entanto, esta empresa não era fácil de executar, dada a extensão da raia, a facilidade em transpor o rio Minho e a falta de zelo e de empenho das autoridades administrativas. O major José Figueiredo Frazão, comandante das forças destacadas para o Alto Minho para darem caça à quadrilha do Quingostas, denunciava precisamente esse desinteresse e as implicações daí advenientes. Estas acusações surgiram na sequência das picardias, que, desde 1834, impediam uma colaboração mais estreita entre o poder militar, judicial e administrativo, e davam azo ao aparecimento de suspeitas, intrigas e à troca de acusações entre os seus responsáveis.

A quadrilha de Tomás Quingostas acabou por entrar numa fase de franco declínio, o cerco apertou-se cada vez mais e vários dos seus companheiros foram presos ou fuzilados por militares ávidos de vingança. Em Maio de 1837, foi detido mais um dos seus parceiros, Francisco Xavier Sisneiros, natural da cidade de Lisboa. Conhecido como o “Lisbonense”, era considerado um agente do miguelismo no Alto Minho, tendo sido detido em Riba do Mouro, concelho de Valadares. Pouco depois, António Joaquim Rodrigues, conhecido como “Lourenço Correio”, foi capturado pelas forças do Major José de Figueiredo Frazão. Na mesma altura, foi detectada a presença de Quingostas no concelho de Melgaço, acompanhado apenas por um desertor e três camponeses. As autoridades planeavam a deportação da sua família, que resisia no concelho de Melgaço, como forma de o punir. Pelo menos era essa a vontade do major Frazão, que considerava serem os membros da família os responsáveis pelo aviso da presença das tropas. No entanto, o governador civil não anuiu a tal pretensão, por considerar que extravasava as suas competências.

Apesar de a quadrilha ser, essencialmente, uma organização masculina, o certo é em algumas ocasiões foram feitas referências à presença de elementos femininos, nomeadamente às duas irmãs que o acompanhavam e a duas mulheres, designadas pelas autoridades de “amigas” do Quingostas.

A tarefa do major Frazão estava a ser dificultada pela escassa cooperação das autoridades administrativas, particularmente dos regedores. Várias explicações podem ser avançadas no sentido de explicar esta atitude, nomeadamente a sua baixa instrução, o desconhecimento das suas obrigações e o receio de represálias por parte dos salteadores ou dos seus companheiros e familiares. O certo é que esta  sua postura tinha permitido que deambulassem livremente pelas feiras e festividades, cometessem delitos à luz do dia e circulassem pelas localidades, sem que fossem importunados.

A complacência das autoridades e das populações levou à presença de forças militares, desde Fevereiro de 1837, nos concelhos de Monção, Melgaço e Valadares, instaladas em casas de particulares, cujos proprietários não só os abrigavam, mas também os sustentavam. A situação arrastou-se pelo menos até Julho do mesmo ano. Após a saída das tropas, Quingostas reapareceu em Melgaço.

Entretanto, Quingostas tinha conseguido um indulto junto das autoridades espanholas, com a condição de não sair da província de Ourense. Mas acabou por desrespeitar o compromisso assumido e entrou em Portugal, onde os seus crimes não tinham sido perdoados. Em Agosto de 1837, ficou sob custódia, à ordem do chefe político da província de Ourense, cabendo a Portugal reclamar a sua extradição, tendo sido solicitada, para esse efeito, a intervenção do Ministério dos Negócios Estrangeiros.

Contudo, os ventos pareciam soprar a favor de Tomás das Quingostas. Em 14 de Julho de 1837, iniciou-se a “revolta dos Marechais”, um pronunciamento militar anti-setembrista, de inspiração cartista, encabeçada pelos duques da Terceira e da Saldanha. Esta revolta iniciou-se em Ponte da Barca, com a sublevação dos militares que estavam envolvidos na caça a Quingostas e seus companheiros, tendo terminado oficialmente em Setembro de 1837, com a vitória das forças governamentais.

ROTAS COMERCIAIS

melgaçodomonteàribeira, 30.10.21

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 montes laboreiro

RELAÇÕES FRONTEIRIÇAS LUSO-CASTELHANAS, NOS SÉCULOS XIV – XV

 

Rotas Comerciais

Independentemente de algumas alusões concretas as mercadorias que saíam para a Galiza por certas vias e portos da fronteira norte, não ignoramos as rotas da almocrevaria medieval, rumo aos portos frnteiriços com Castela, que não esgotando esta temática, constituem pontos de referência a ter em conta.

Concretizando certos aspectos podemos adiantar que as rotas comerciais do Norte de Portugal com Castela tinham alguns rios como pontos de referência, sendo possível falar de uma articulação ou mesmo complementaridade entre vias fluviais e terrestres, sendo os casos mais conhecidos os dos vales do Minho, do Lima e do Douro.

Quanto ao Minho, está bem documentada a chegada de mercadorias por via fluvial até ao amplo porto de Valença, especialmente, pescado e sal, que seguiam, depois, tanto para as regiões galegas, a partir da cidade de Tui, como para as regiões do Alto Minho, sitas na margem esquerda deste rio, e para as zonas do sul da Galiza, para onde atravessavam, tanto pelo conhecido Porto dos Asnos, junto do lugar de Alcobaça, meeiro de Lamas de Mouro e de Fiães, como pela raia seca, nos limites de Castro Laboreiro. Embora não pretendendo demorar-nos sobre as vicissitudes do percurso de Valença até à entrada em território galego, não podemos deixar de esclarecer que os mercadores e almocreves, pouco depois da conhecida Ponte do Mouro, abandonavam a estrada de Monção a Melgaço e inflectiam para a direita, subindo pelos montes de S. Tomé, passando, depois, por Pomares, Cubalhão e Lamas de Mouro, onde optavam, conforme o seu destino, pela saída pelo Porto dos Asnos ou pelos montes de Castro Laboreiro. Não se tratava, apenas, de seguir o percurso mais directo, mas era a melhor forma de evitar a aproximação à praça e vila de Melgaço, cujo alcaide não se dispensava de cobrar a portagem, criada por D. Pedro I, em 28 de Maio de 1361, obrigando os mercadores e almocreves a abandonarem o referido caminho da Ponte de Mouro – Porto dos Asnos/ Castro Laboreiro, para passarem por Melgaço.

 

José Marques

Prof. Catedrático da Faculdade de Letras do Porto (ap.).

CEPESE

Ibéria: Quatrocentos/Quinhentos

p.133

FRAGMENTOS DE VIDAS RAIANAS 8

melgaçodomonteàribeira, 22.05.20

 

Apesar disso, com as parcas recompensas da lavoura, os magros teres e uns trapicheos – negócios ilegais – circunstanciais, a existência jocosa desta população era visiva.

A gente aceitava a vida rotineira, estóica, compassada pela carrinha que, de manhã, lhe trazia peixe fresco de Vigo; pelo tempo, que era o decisor invariável da viveza e dos encargos colectivos; e pelos crebros comboios que faziam ou não uma transitória paragem no povoado.

O prestigioso e sumptuoso Expreso Rías Bajas que unia a Ciudad Olívica – Vigo – à capital do Reino – Madrid –, e ali apitava por volta das onze da noite, deixava-os impressionados, atónitos. Cópia do famigerado Orient Express, fora fornido, como outros, pela Compagnie Internacionale des Wagons-Lit, depois da sociedade belga que criara o ilustre comboio cessara toda exploração como operadora ferroviária em 1971.

Através das vastas e lustrosas vitrinas do vagão-restaurante, enxergavam os viajantes endinheirados diante de pantagruélicos e refinados pratos. Este espectáculo mirífico e, ao mesmo tempo, fantasmagórico – possível devido à morosidade da locomotiva, compelida pela sinuosidade da linha – pasmava-os e devolvia-lhes a modicidade e a inanidade com as quais se debatiam

Para a prosperidade das aldeias e os seus moradores, a estação era capital, era o seu âmago; a linha Vigo-Orense, o sendeiro para as deslocações inevitáveis. O comboio constituía a única alternativa para os poucos jovens que ainda havia nos lugares redondezes de ambas margens, e cujo futuro dependia dele. Os colegiais utilizavam-no para ir a Ribadávia onde se situavam os colégios mais acercados; os que faziam estudos superiores apanhavam-no à sexta e ao domingo à tardinha para regressar a Santiago de Compostela, depois de um fim-de-semana entre os seus.

Da orla esquerda, distinguia-se um belo, harmonioso e sólido casarão burguês. O contraste com as casas das aldeias das duas ribas era espectacular. Os que se dirigiam para a estação ficavam uns instantes admirativos diante daquele solar, apesar de já o terem visto,. O considerável terraço e as colossais galerias envidraçadas, face ao rio, ofereciam uma vista fantástica sobre o Minho, e Portugal. Mais abaixo, na parte traseira, uma serração inteiramente mecanizada era imperceptível. Nela trabalhava perto de uma dezena de homens. Mensalmente, despachavam vários vagões abarrotados de pranchas, vigas, traves, troncos e outras madeiras para toda a Espanha. O caminho-de-ferro, ao qual estava subordinada, configurava a sua artéria indispensável.

Era pertença da família Alves Gomes. O genitor, natural de Ponte de Lima, casara com uma espanhola, mas tanto ele como os numerosos filhos eram conhecidos pelos Branquinho. O contrabando fez dele um homem fértil. Várias casas e terrenos disseminados pela zona, serviam-lhe de entreposto para tudo o que contrabandeava. Excluindo o chefe da estação, só ele usufruía de telefone. Apesar da sua influência e dos seus conhecimentos, teve de se refugiar uns tempos em Cevide – onde começara a negociar antes de se instaurar do outro lado – por ter sido objecto de delação. Alojou-se na casa onde vivera, meio degradada. Dali, com um cúmplice, coordenava o seu business sem ser molestado. Para controlar os guardas fiscais com mais facilidade, comprou o moinho junto do Trancoso, a dois passos do posto.  Intencionara fazer umas obras de conforto na moradia, mas não teve tempo: o obstáculo que o compulsara a espaçar-se dos seus fora revogado. Reinstalou-se no casarão da Frieira, de onde pilotou os negócios até falecer.

A família Branquinho fora a mais virente e basta da Frieira da margem direita do Minho. Graças ao pé-de-meia amealhado pelo Alves Gomes, os filhos puderam reciclar-se um pouco por toda a Galiza. Só o mais novo, o Carlos, prorrogou o business que enriquecera a dinastia Branquinho: o contrabando. O seu terreno era o lugarejo de Pousa, em frente da freguesia de Chaviães, por onde circulavam os artigos postulados pelos fregueses portugueses. O petate, dificilmente levado às costas por uma rampa até à beira-rio, era, em seguida, transportado para o lado português numa batela que fazia um vaivém infindável durante a noite.

Todas as casas que fizeram parte do esquema concebido por Alves Gomes para o exercício da ramboia – contrabando – foram-se deteriorando progressivamente, até se transformarem em ruínas. A algumas apenas se lobrigavam partes, tanta era a vegetação bravia e daninha que as cobria.

 

 

Oficialmente, a tienda do Manolo estava aberta em permanência e sem excepção das oito às vinte horas quando o sol se deitava mais cedo – de Outubro a Março –, e até às vinte e duas horas quando o sol arredava mais tarde – o resto do ano. No entanto, os horários eram flexíveis, raramente respeitados; o fecho era decidido pelo número de clientes e pelas obrigações do matute – contrabando.

Como acontece ordinariamente nas mais pequenas aldeias ou lugares, a sua loja era o local crucial onde tudo o que ocorria, se fazia, se dizia, se sabia ou se pensava na aldeia da margem esquerda era propagado, discutido, comentado e reiterado pela aldeia homónima da banda direita do Minho.

Na loja, ao lado do café, o Manolo vendia um pouco de tudo: géneros alimentícios, louças, recordações, roupas, tintas, panelas, ferramentas, produtos e alfaias agrícolas, e tudo o que reivindicasse o pescador mais intratável e cerimonioso.

Era dono dum autêntico minimercado bastante rentável, que lhe permitia uma vida planturosa e livre de dificuldades factuais. Porém, os proveitos mais roborativos tirava-os do contrabando.

No seu negócio coexistiam pessoas que tinham trabalhos variegados e, visto o leque de produtos que propunha, as razões de lá encontrarem o que era urgente não faltavam. Os consumidores provinham de todo lado e formavam uma clientela fixa e leal.

O escudo, sobreavaliado – não andava longe das duas pesetas –, tornava um grande número de vitualhas muito mais acessíveis em Espanha. Aos sábados, domingos e feriados, mas especialmente aos sábados, naquela região fronteiriça o escudo e os portugueses eram os patrões das lojas, dos cafés e das limitadas boutiques

Regra geral, quando o tempo estava bom, já o Manolo tinha o café e a loja abertos antes das oito. A Rosa, a criada portuguesa, era a primeira a madrugar a fim de passar a esfregona no chão do café e da loja; o patrão, o segundo, cerca de meia hora mais tarde.

 

Continua.

 

 

FRAGMENTOS DE VIDAS RAIANAS 7

melgaçodomonteàribeira, 09.05.20

 

O não dito reforçava-se e acalentava-lhe, com veemência, o ardimento de um dia lhe enumerar, assanhada, o ror de vericidades que oprimia nas profundidades mais inacessíveis da alma. Esta situação abespinhava-a e erodia-lhe o psiquismo.

As tribulações das previsíveis consequências imobilizavam-lhe a menor tentação, a palavra inaudível, o menor gesto, ocasionando-lhe, nestas circunstâncias, palpitações latentes. Por enquanto, tinha de refreá-las sem piedade, custasse o que custasse. Faltava-lhe a audácia, prisioneira dos efeitos garantidos. Por vezes, asfixiavam-na tanto que tinha crises de dispneia. Estava de mãos atadas; era escrava da sua fragilidade.

Tirou a tampa a uma panela enfumarada que dormitava por cima da longeva cozinha de ferro – desvanecida havia bastante –, pegou num prato, entulhou-o de batatas, duma mão-cheia de grelos e de três módicas postas de merluza – pescada –, tudo cozido, e depositou-o diante dele sem uma palavra.

Em Espanha, o consumo pelos mais pobres deste peixe lauto e gostoso  – congelado e de pequena dimensão – derivava do seu baixo preço, causado pela possante hegemonia espanhola: depois da norueguesa, era a frota europeia que mais pescava.

Adiu-lhe um galheteiro encardido, um garfo e um bom naco de pão semiduro que cortou num cacete. Com um pudor conventual, saiu; foi ao puxado e atestou a típica caneca de cerâmica branca com tiras azuis de um vinho recendente e espumoso. O Manel acarinhava ali uma provisão de tintol em garrafões de cabaço – detestava o vinho branco –, bebida de eminente nível, confeiçoada pelos lavradores mais calejados da zona.

A cada refeição, o consuetudinário era um litro. No entanto, havia dias que, por motivos ignotos, vazava pouco mais de meia caneca. O Manel bebia por amor, pela irmandade que o soldava à pinga, à cepa. Ainda não tinha dois anos e já as sopas de vinho alegravam os seus dias.

A placidez sorumbática da casa era amordaçada pelo estribilho casmurro da água límpida do regato.

Estes ápices deprimentes iteravam-se dia sim dia não. Sem se atardar mais, a Gracinda, silente, foi-se discretamente. Subiu as escadas e acostou-se à cabeceira da cama, já desfeita, com o pequeno receptor a pilhas na mão.

Enquanto que o marido se alambazava e drenava a caneca, sobrava-lhe o tempo para lucubrar um tanto; olvidar a vida consternada e sem qualquer ambição ou finalidade que, irreparavelmente, encaixava havia um tempo desmedido.

Era a hora da radionovela, a sua baforada de nostalgia, a sua alegórica escapatória interina, o seu alcalóide biológico. Graças a estes romances diários, simples enredos, devaneava. Apesar das tramas e das manigâncias coriáceas, das inimizades, das perfídeas e das paixões insustentáveis, contrariamente à sua realidade, o desfecho era agradável, romântico. Esta escapulida mental era um reconfortante paliativo que lhe aligeirava as difíceis preocupações conjugais.

Nos dois quartos do lado, a prole, passiva fisicamente, matutava, imaginando um rumo, um caminho, uma bússola. Insubmissos, cada qual vivia no seu universo. Com a petulância arcana dos adolescentes indiferentes às inquietudes, às sombras e à atonia dos pais, eram transparentes, inexistentes. A certeza de um dia enveredarem por um trilho diferente, construtivo e escolhido por eles, estava-lhes obscurecido pelo hodierno mofino dos progenitores e pela penúria. Cada qual tinha o seu objectivo preciso traçado. Embora utópico por agora, tinham uma confiança total neles.

 

 

Nos lugares desleixados como os da Frieira – incalculáveis –, o afastamento e a dispersão dos compósitos e espinhosos trabalhos isolavam, no conjunto, as pessoas durante o dia. O contacto era, pois, impreterível para que não se recluíssem numa insensibilidade sórdida, pestilenciosa. O seu desenvolvimento, notório, desaguava, tristemente, nos aberrantes e inexplicáveis suicídios repertoriados anualmente na região. O instigador, em todos os seus perfis, era e continuará a ser, sem dúvida –independentemente dos perenes pseudoprogressos de comunicação –, a solitude. Este veneno, impassível e infatigável, quando o álcool – o amensalismo com o qual acreditavam combatê-lo – se mostrava impotente, esvaía, murchava e, por fim, destruía-os. O vergonhoso agravamento afónico da desertificação rural não fazia senão periclitar o emaranhamento da problemática.

Aos idosos da aldeia, inofensivos – como aos de todas as outras –, ninguém lhes evidenciava quaisquer razões para os impelir a aproveitar e a ter curiosidade por coisas e recursos que não estivessem estreitamente relacionados com as suas incumbências jornaleiras. Levavam uma vida negligente, embrenhados numa total ignorância e incompreensão do mundo truculento que os envolvia. Sendo, pois, a sua inserção irrealista, o progresso ia-os adulterando e desorientando.

A violência, o sexo, as tecnologias e as práticas cacofónicas e formatadas que viam na televisão – sangrada da sua missão primitiva que era a cultura e a educação dos mais iletrados –, além de os aterrorizar, ainda mais os coagia a persistirem em se enclaustrar nos costumes e nos dogmas arcaicos que sempre foram os deles, e aos quais se empolgavam devotadamente.

O precipício que disjungia a antiga geração da nova era excessivamente largo e intransponível para que a derrisória e árida propinquidade entre as duas o reduzisse com o tempo, mesmo em parte. Viam-se, falavam-se, mas cada qual campava no seu tempo, no seu território, na sua ilusão. A nova – como toda geração nascente –, sitiada por uma cinorexia galopante, era febrosa e vivia o dia-a-dia sequiosa, dessabendo a ainda tenra barbaridade passada; a antiga era uma geração descurada, repudiada, incorpórea, que fazia tudo para ressalvar o que lhe sobejava da acidentada modernidade. Por não entrar nos anais do inédito consumismo crescente – a ditadura contemporânea –, nem os corpos políticos seduzia, a não ser em vésperas de eleições.

Não obstante esse encarceramento instrucional, eram seres curtidos. Vivenciaram e superaram uma trágica e interminável guerra civil – incognoscível para a população – que arruinara o país, orfanara um sem-número de almas, desmembrara milhares de famílias e injungira outras tantas à expatriação. Sustentaram com paciência e dignidade o contragolpe acerbo, deletério e miliário que um período bélico desta amplitude acarreta inexoravelmente. Os estigmas complexos e perduráveis que esta hecatombe cruel, inefável gravou neles, definiram-lhes uma temeridade original e enrijada. Já nada mais os poderia atribular.

 

Continua.

 

NEM PENSE EM SAIR DE CASA, DIVIRTA-SE COM ESTES AMIGOS!