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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MAIS UM DOMINGO III E IV

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

Cousso - foto de norwest

 

   Claro que estava a ver, pá, pois estava. Tanto pá, tanto caraças ! Este já havia muito que se tinha perdido na cidade. Ia sorrindo, sem mais. A quantos a teria já contado ? Mais uns risos e continuou com anseio :

   — Os gajos andaram pelos cafés lá da praça não sei quê, pá, até que os puseram fora quando viram que estavam sem jeito nenhum. Diz que aínda chegaram a dar uns murros, pá, mas que os outros eram muitos. Ó pá, era demais ! Estes tipos são maluquinhos, pá, são de partir a moca.

   Mais umas risadas, que acompanhei, questão de educação e aí vai ele novamente. Mal tinha tempo de dar uma golada.

   — Sabes o que é que tinham vindo fazer, o que queriam os tipos, pá ? Não vais acreditar, meu. No princípio aínda pensei que queriam gozo, mas não, pá, era a sério.

   Acabou de beber o licor Beirão que tinha pedido. Preparava-se para a estucada final.

   — Os meus queriam que fosse ao quartel buscar uma G3, pá, e, com eles  e mais alguns dos meus colegas, fôssemos todos partir o café aos gajos ! Tu alguma vez vistes ? Eu nunca vi coisa igual, pá ! Fodam-se lá os tipos ! Falta-lhes qualquer coisa na moleirinha, de certeza, pá !

   O apogeu. Grande silêncio. Não tirava os olhos de mim, queria ver a minha reação. E que mais ? - perguntei-me. Nada mais. A história ficava por aqui. Fiz cara de espantado. E, de repente, não pude controlar uma boa risada. Não sabia se me ria da loucura dos tipos, do modo como ele contara a cena ou das duas coisas.  Ficou satisfeito. Apenas chegara e tivera a quem contar a história. Desabafara. Sentia-se melhor. A tarde prometia. O olhar já procurava outro. Não devia ter encontrado ninguém porque saíu do café. Esta gente era doida ! Doidos sim, parvos não. Eu tivera direito à primeira e, esperava, sem esperanças, à última seca. Havia tantos assim !

   Com a conversa do meio quilo nem reparara que havia bastante mais gente. Os de Monção, que vinham em bandos, eram os mestres da festa. Alguns traziam o artigo de lá. Eram "people". Presunçosos, tinham-se por intelectuais. Para eles, a civilização já começava nas terras da Deuladeu. Por falarmos um português um pouco diferente, diziam, para gozar, que éramos espanhóis. Vinham, como se costuma dizer, para ver, mas sobretudo, para ser vistos. Estudantada... nada de interessante para mim. Era mais adepto das rodadas e maiores há alguns anos, mas estas faziam-se raras. Bem, era tempo de ir dar  uma vista de olhos por debaixo.

   O salão estava mais do que cheio. A fumarada era infernal, mal se podia respirar. Laboriosamente e com grande cautela, consegui chegar ao balcão que em baixo servia de bar. Tinha evitado as pisadelas e as cotoveladas possíveis. "La Ramona es la chica más guapa de mi pueblo, Ramona, te quiero." Assim se cantava na terra. Era das mais ouvidas. Empurrei com jeitinho um cliente, que por sua vez empurrou outro, que também empurrou outro. Arranjei um lugar e finquei-me no balcão a observar os actores.

4

   O Cancas, todo risonho (era um dos que fumavam cigarrinhos),  mandava às raparigas as habituais bocas: "Ó filha, estás cada vez melhor." ou "Comigo é que tu eras feliz, filha." ou aínda, quando a rapariga o mandava passear, "Tu estás mas é mortinha por dar-me um beijo na boca, filha." Era a táctica de engate que utilizava. Táctica de chulo. Às vezes colava. Estudava no Porto, na universidade da Ribeira, de certo. "Se tivesse três (gaitas), dizia, punha-as a trabalhar ao mesmo tempo." Considerava-se o maior pinante da Vila, mas como cão que ladra não morde... Não falhava um baile. Quando andava numa boa, curtia-se muito bem com ele.  

   — Então, estás bom, pá ?

   Era o Tino de Cousso. Estendeu-me a mão que apertei. Perguntou-me se vira o primo, o Zé Grande, também de Cousso, o outro dono da Discoteca. Este e o Xoco tinham comprado as partes dos três fundadores restantes. Eram os dois sócios, com partes iguais. Na negativa, foi-se embora. Por que razão não fôra perguntar ao Xoco ? Sabia-o ele. Não o tinha por mau moço, nem era seca. Tinha estado muitos anos na França e constava que tinha regressado porque estava tolo. Nunca dera por ela, falava de tudo, como todos. E era um bom electricista, trabalhador. Reparara apenas que, quando falava com ele uns minutos, acabava por dizer que tinha que ir à Casa Branca. Um desejo, um devaneio como qualquer outro, pensava eu. Quantos não sonhavam com o Rio de Janeiro ou com Taiti ? Mais tarde, soube que Casa Branca também era o nome de um hospital psiquiátrico parisiense. O primo dele, grande castiço, passeara a malotinha longos anos por Braga. Quando lhe perguntavam a morada na cidade dos padres, dizia ser no Nosso Café por lá passar a maior parte do dia. Também gostava de "cigarrinhos". De vez em quando a confusão era tal na cabecinha (devia ser genético) que ia para Cousso e lá passava semanas refugiado sem pôr os pés na Vila.

   Peço uma cerveja e continuo a observar a plateia. Os galegos que vinham a Portugal galar as "machotas", segundo diziam, davam à perna com ganas. Deitavam o fogo e faziam a festa. Sentiam-se na casa. Chegavam a vir seis num Fiat 600.

   Aparece o Pousinha de Castro, "boca negra" de pura estirpe. Samarra pelas costas, arborava um grande sorriso. Ria-se de tal modo que mal se lhe distinguiam os olhos vermelhinhos. Estudava em Coimbra. Encostou-se e eu preparei-me para a segunda história. Estava contente, disse-me, porque, com uns amigos, passara umas vaquitas da Espanha. Ganharam umas boas notas e tinham começado a fazer a festa em Castro. "Bem comidos e melhor bebidos ! Branco e tinto", sublinhou. Era só pó. Já estava bem. Ali, estava a bagaço. À noitinha ia de boleia para Coimbra. Até lá, o dia seria longo. Eu não estava commuita paciência (sem saber porquê) e o fumo fazia-me arder os olhos. Continuou a falar, mas deixei de ouvi-lo. Vendo que eu não abria a boca, acabou por beber o bagaço e foi embora.

 

(continua)