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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGACENSES MEDALHADOS POR D. LUÍS I

melgaçodomonteàribeira, 25.01.20

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O INCÊNDIO DO 2º CARTÓRIO

Muitas vezes contava meu saudoso avô Florêncio Soares, ou Florêncio Soares Pinto, ou ainda Florêncio Soares da Costa Pinto que com todos estes apelidos anda ele em numerosos papéis oficiais apelidos que, aliás, embora por ter nascido, na Vila, em 1847, dos amores de Maria Angélica Soares (Pata) com Manuel Ventura da Costa Pinto, que viveu e morreu na casa fronteira ao Hospital, hoje pertencente ao sr. Ezequiel Augusto do Vale, por a ter comprado a António Luís Fernandes ou a seus herdeiros, mas dizia eu que muitas vezes contava meu saudoso avô que o incêndio do 2º Cartório, ocorrido ao cair da tarde de 10 de Fevereiro de 1874, foi uma coisa pavorosa.

Este prédio, que era construção recente e, então, um dos melhores da Vila, ficava situado, extra-muros, ali na Rua do Rio do Porto que ainda assim se não chamava contíguo ao de José Cândido Gomes de Abreu e em cujo primeiro piso estava instalado o 2º Cartório e parece que também o Registo Criminal, a cargo do escrivão Vieira: João augusto Novais Vieira. Pois foi aqui que, do meio da papelada, súbita e violentamente, o fogo irrompeu devorando num ápice livros, registos, processos, etc., etc., e entre estes últimos o processo de partilhas dos herdeiros da Quinta da Cordeira, que correra pelo Cartório do escrivão Fonseca: Gaspar Eduardo Lopes da Fonseca.

No rés-do-chão do prédio sinistrado, estava a «Loja dos Pinheiros», dos irmãos Luís Manuel, de Prado, e de Manuel Joaquim Pinheiro, de Paços, que, auxiliados por numerosos populares, ainda conseguiram salvar muitas mercadorias sendo certo que muitas outras se perderam. Ao lado, na loja de José Cândido, passava-se a mesma coisa: ia-se pondo tudo na rua…

Quem sabia contar isto na ponta da unha, era o filho daquele negociante Manuel Luís Pinheiro, o saudoso João Luís Pinheiro; mas quem o contava melhor e com mais riqueza de pormenor, era o referido meu avô o que de resto não era favor nenhum, porquanto foi um dos bravos destemidos que, com desprezo pela própria vida, temerariamente treparam para o telhado da casa de Gomes de Abreu e aqui, indiferentes às chamas que lhes lambiam os rostos e lhes crestavam as barbas, a golpes de serra e machado saparam e de tal modo se houveram que conseguiram que o fogo se não propagasse ao prédio que com tanto denodo defendiam; o que lhes valeu boa recompensa daquele generoso proprietário e, dias depois, serem agraciados por D. Luís I com medalha de prata. Além de meu avô, um destes bravos foi José Dias, de ao pé da Igreja, nascido em Arganil, em 1840, Já viúvo de Maria Florinda Teixeira, e talvez ainda não pensasse contrair segundas núpcias com Maria Joaquina de Sousa, filha do sacristão da igreja da Vila, Caetano Celestino de Sousa e de sua mulher Francisca Luísa Gonçalves, como de facto veio a contrair, em 27-7-1884.

Deste pavoroso incêndio, ficaram apenas as paredes de pé, calcinadas e bastante abaladas, procedendo-se em seguida a um inquérito para averiguar as causas do sinistro e concluindo-se que o mesmo foi casual.

Pois seria casual, seria… mas se é certo que estes incêndios de repartições uma que outra vez são obra do acaso, também não é menos certo que na maior parte das vezes são obra de… «ajuste de contas». A dúvida fica…

P. Júlio Vaz Apresenta Mário

P. Júlio Vaz

Edição do autor

1996

pp. 34, 35

 

SOPRANO À MINHOTA II

melgaçodomonteàribeira, 24.08.19

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Benfiquista e bom patrão

Foi no bar que Abel conheceu Diene Amorim, uma brasileira com quem tem dois filhos. Hoje o casal vive em Bridgewater, numa casa de 315 metros quadrados que comprou há nove anos por 655 mil dólares (cerca de 517 mil euros), mas durante anos viveu num apartamento modesto por cima do restaurante. Os dois vestem-se bem, embora discretos. Abel conduz um AudiA4 com oito anos e Diene uma carrinha Volvo. Os filhos frequentam uma escola pública e vão todos os fins de semana à catequese na igreja portuguesa de Nossa Senhora de Fátima. Os vizinhos dizem que o casal é boa gente. Todas as manhãs, Abel estaciona no parque do Portucale, que transformou em restaurante em 2011. As obras terão custado centenas de milhares de dólares, mas o português comentou com conhecidos que apenas o tinha feito para cumprir um desejo da mulher. Antigos funcionários dizem que é o melhor patrão que tiveram, que paga sempre a horas e ajuda quando têm muito movimento. Prefere estar no escritório, mas vem para a sala quando joga o Benfica, de que é adepto ferrenho e pelo qual chegou a ir a Portugal para acompanhar jogos importantes. Terá este homem, que ninguém critica, sabido que estava a movimentar dinheiro da máfia através de esquemas ilegais do jogo, agiotagem e tráfico de droga? Terá descoberto a origem do dinheiro e sido proibido de abandonar o negócio? Ou sabia de tudo e preferiu continuar a lucrar?

Um ano depois de assinar contrato com Puccillo, a sua companheira comprou um serviço de troca de cheques, na zona norte da cidade. Abel nunca contratou esta empresa, continuando a preferir os serviços do italiano. Num dia fraco, movimentava entre 20 a 50 mil dólares. Nos dias bons, chegava a 400 mil. O dinheiro ficava pouco tempo no restaurante. Assim que chegava, o português agarrava no telefone e em minutos chegavam homens de Mercedes, que saiam de envelope na mão.

No bairro circulava todo o tipo de rumores. Nunca se falou em máfia, mas muitos comentavam que algo ilícito se passava entre aquelas paredes. Especulava-se que Diene tinha comprado o negócio em North Newark para encobrir irregularidades, mas a brasileira nunca foi acusada. Durante anos, todos os boatos se desvaneceram, nunca se concretizando numa queixa às autoridades. Entretanto, o negócio continuava a crescer.

 

Malas de dinheiro e assédio policial

O dinheiro era entregue a Abel, todos os dias, por funcionários de Puccillo. Alguns clientes recordam o momento da entrega, quando um carro de cor escura estacionava junto à porta, os funcionários pediam aos clientes que ninguém saísse, um homem entrava com uma mala, dirigia-se ao escritório na cave e saía. Tudo acontecia em segundos. A operação aconteceu centenas de vezes, durante anos, sem qualquer falha. Até à manhã de 19 de Maio de 2011.

Nessa data, um ex-polícia saiu do carro e dirigiu-se para o Portucale segurando uma mala. No caminho, alguém disparou. O homem estava armado e respondeu. Foi atingido de novo e caiu de joelhos. Nesse momento, um segundo assaltante disparou, atingindo-o no queixo. O homem acabou no passeio junto à entrada de uma loja de bebidas. Um dos assaltantes fugiu, o outro agarrou na mala, entrou num carro e conduziu umas dezenas de metros. Devido aos ferimentos, chocou contra um semáforo. Quando a polícia chegou, estava a perder a consciência e a mala continuava no carro. No interior, a polícia descobriu 400 mil dólares. Em minutos, o local estava cheio de agentes. No mesmo dia, Abel começou a ser investigado.

Polícias à paisana visitaram o restaurante. O português foi seguido e as suas comunicações podem ter estado sobre escuta. Convencido que estava protegido pelo contrato que tinha assinado com Puccillo, continuou a trocar cheques durante mais de um ano e meio. Só em dezembro de 2012, quando a polícia o interrogou, é que contratou um advogado, o reputadíssimo especialista em crimes económicos Michael Critchley, e fechou atividade. Tinham-se passado 25 anos desde que tinha trocado o primeiro cheque.

Segundo a acusação, em três anos e meio, Abel ajudou a lavar 400 milhões de dólares, perto de 315 milhões de euros, e cobrado comissões de nove milhões. Dos três por cento que cobrava, guardava um por cento. O resto do dinheiro pertencia a Puccillo, que ficaria com uma parte e dava outra a Rodriguez, Tuzzo e Alberti. Pelos crimes de que é acusado, Abel arrisca uma pena de 20 anos.

 

Pesadelos e registos em Elm Street

Nos últimos anos investiu com sucesso no imobiliário. Na semana passada, as autoridades congelaram as suas contas bancárias, o edifício do restaurante, dois prédios na mesma rua e a casa da família. Mas o empresário terá, pelo menos, outro prédio e dois parques de estacionamento em Elm Street, um segundo bar em Newark e um restaurante na Florida, que poderão estar no nome de outras pessoas e empresas.

Em 2013, por saber que estava a ser investigado, mudou algumas propriedades de nome. De acordo com os registos fiscais do condado de Essex, consultados pela VISÃO, o prédio no número 127 da Elm Street, por exemplo, passou a 21 de junho para o nome de uma empresa com o nome Union Street Realty, pelo preço de 400 mil dólares (um valor 80 mil dólares abaixo do que Rodrigues tinha pago em 2004). A Union Street Realty tem sede no número 129, a morada do restaurante Portucale. No mesmo dia, Rodrigues vendeu a esta empresa o prédio do número 125 por 500 mil dólares (menos 50 mil euros do que o valor pago em 2004).

Quando Abel foi detido, o juiz definiu uma caução de 400 mil dólares. No dia seguinte, a companheira entregou 40 mil dólares e uma garantia de 360 mil para o libertar. Esteve preso menos de 48 horas. Em liberdade, garante que apenas trocou cheques e nunca se envolveu com a máfia. Na quinta de manhã, 23, estava de volta ao Portucale, que não chegou a fechar, anunciando sempre em cartazes a festa que, esta sexta-feira, 31, vai encher o espaço para celebrar o Dia das Bruxas. Abel continuou a viajar depois de saber que estava a ser investigado. Este verão, passou 6 semanas em Portugal com a mulher e os filhos. Além de Melgaço e da mãe, visitou amigos de norte a sul. Foi a quarta viagem desde 2012 e também esteve no Brasil. Podia ter fugido a qualquer momento. Qualquer especialista o teria aconselhado a pedir cidadania norte-americana, para evitar a deportação caso seja condenado, mas o emigrante também decidiu não o fazer. Abel quer enfrentar a justiça. Está convencido de que o seu sonho americano não terminou.

 

Da Visão online em 11/11/14

 

SOPRANO À MINHOTA I

melgaçodomonteàribeira, 17.08.19

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A história exclusiva de Abel Rodrigues, o emigrante de Melgaço cujo restaurante em Newark terá servido para a máfia nova-iorquina lavar 400 milhões de dólares.

 

Alexandre Soares, em Newark (artigo publicado na Visão 1130, de 30 de outubro 2014)

Quinta feira, 6 de Novembro de 2014

 

Na madrugada de 21 de Outubro, perto das seis da manhã, Abel Rodrigues acordou com o som da campainha. Na sua casa em Bridgewater, no estado de Nova Jérsia, Estados Unidos, abriu a porta e, ainda no escuro, descobriu sete agentes da polícia armados. A mulher já estava do seu lado quando lhe leram os direitos, mas os filhos, um casal de nove e onze anos, dormiam. O casal ouviu a lista de crimes de que o português era acusado: falsa declaração de rendimentos, troca ilegal de cheques, extorsão, lavagem de dinheiro e associação criminosa. Abel foi algemado e levado para o carro-patrulha enquanto tentava tranquilizar a mulher. Três anos e meio depois do início, chegava ao fim a operação Punho Cerrado, que envolvera quatro agências especializadas e cerca de 35 agentes. Com o fim da investigação, chegava também o fim do sonho americano do emigrante minhoto. Uma história digna da premiada série Os Sopranos, cuja ação se passa também no Garden State.

Abel não foi surpreendido. Vizinhos, clientes e antigos funcionários dizem que o português já esperava este dia desde que, em dezembro de 2012, a polícia foi ao seu restaurante Portucale, em Newark, e levou computadores, caixas registadoras e documentos. Com a voz tranquila, Abel mostrou escrituras e contratos. Insistiu que a sua atividade era legal. A polícia discordou e ele passou a esperar o seu regresso. Mas nunca imaginou que, quando o momento chegasse, seria acusado de associação criminosa com os Genovese, a família mais poderosa da máfia de Nova York.

 

De São Paio aos cheques no Rio Douro

Abel acabou na prisão de Morris County lado a lado com Charles Tuzzo, de 80 anos, e Vito Alberti, 55, dois membros dos Genovese. Encontrou também Domenick Puccillo, 56, o seu parceiro de negócios e Manuel Rodriguez, 49, que o tinha apresentado a Puccillo anos antes. No mesmo dia, a procuradoria de Nova Jérsia deu uma conferência de imprensa anunciando os detalhes da operação. “A nossa mensagem para a máfia é: enquanto existirem, vamos continuar a enviar-vos para a prisão”, avisou o procurador John J. Hoffman, minutos antes de libertar as fotos de Rodrigues e dos outros acusados. A notícia atravessou logo o Atlântico. Jornalistas foram bater à porta da mãe de Abel, de 83 anos, que vive sozinha em Melgaço, e perguntaram-lhe pelo filho mafioso. O minhoto acredita que, se o pai ainda fosse vivo, teria morrido nesse momento.

Abel nasceu no lugar de Real, em São Paio, há 52 anos. Começou a trabalhar ainda criança, ajudando o pai na lavoura. As duas irmãs emigraram para França e, pouco depois, também ele abandonou o País. Emigrou para Punto Fijo, na Venezuela, com 20 anos. Um colega da construção falou-lhe dos EUA, dizendo que se ganhava bom dinheiro. Em outubro de 1983, Abel chegava ao bairro de Ironbound, em Newark, onde se concentra parte da comunidade portuguesa. Arranjou trabalho na construção, mas a obra parou meses depois devido ao inverno. Acabou como empregado de balcão do Rio Douro, um café português, na Elm Street.

Foi neste local que trocou o primeiro cheque. Por ordem do patrão, recebia cheques de emigrantes indocumentados, que não podiam ter conta de banco, e de pessoas que não tinham dinheiro na conta para cobrir o salário dessa semana. Embora ilegal, era uma atividade comum. Dezenas de estabelecimentos no bairro faziam o mesmo.

 

As comissões e o negócio com don Puccillo

Em 1987, um bar de espanhóis chamado Escorial, do outro lado da rua, foi posto à venda. Abel comprou-o por 88 mil dólares (69 mil euros). No início, tinha apenas um funcionário, e abria das sete da manhã às três do dia seguinte. Dormiu muitas noites na cave, para aproveitar cada hora de sono. Continuou a trocar cheques, a maioria a galegos. Quando alguém lá chegava e só pedia para trocar o cheque, fazia-os esperar e beber algumas cervejas, para dar lucro à casa. Só começou a cobrar comissão depois de receber vários cheques sem cobertura. A comissão não era fixa e variava entre um e três por cento. A atividade, lucrativa, manteve-se durante anos.

Em 2007, os bancos mudaram os seus protocolos. Começaram a recusar trocar cheques endereçados a terceiros, sobretudo quando eram elevados. Foi nessa altura que o italiano Manuel Rodriguez apareceu no bar, perguntando a Abel se ainda estava no negócio. Os dois homens já se conheciam, porque Manuel era dono de outro bar da cidade, o Guitar Bar. Abel partilhou as suas dificuldades e o homem respondeu que tinha uma solução. Podia apresentá-lo a Domenick Puccillo, que tinha um negócio licenciado de troca de cheques, e muito, muito dinheiro. Abel aceitou a ajuda. Assinou um contrato com Puccillo, o mesmo que viria a mostrar à polícia, anos depois, quando lhe inspecionaram o restaurante. O mesmo contrato que lhe disseram que não era válido.

Puccillo tinha ligações à máfia, mas Rodrigues pode nunca o ter sabido. Um dirigente da polícia de Newark garante que a máfia teve uma presença forte na cidade durante décadas, mas que a sua influência é hoje reduzida. Existe em áreas como o porto comercial e em negócios como o lixo e máquinas de jogo. Raras vezes a sua presença se traduz em episódios de violência. Além disso, tem uma organização hierarquizada, em que um nível não contacta com o outro. Mesmo assim, terá Abel imaginado como é que os sócios tinham acesso a quantias tão elevadas? Terá perguntado pela origem do dinheiro que transacionava?

Com Puccillo na retaguarda, o negócio do português cresceu. Abel montou um escritório nas traseiras e destacou alguns funcionários para lidar com estes clientes. Às suas mãos começaram a chegar cheques de 100 mil dólares. Segundo a acusação, o empresário trocava estes valores sem pedir identificação ou manter registo da transação, permitindo aos clientes escapar ao escrutínio do estado. Empresas de construção brasileiras e portuguesas recorriam ao serviço, assim como negócios que recolhiam cheques menores e depois os trocavam em conjunto no Portucale. A operação tornou-se um negócio de milhões.

 

UM ASSASSÍNIO NUMA ALDEIA REMOTA

melgaçodomonteàribeira, 30.04.13

 

 

CRIME DE CASTRO LABOREIRO

 

    Por mais voltas que se dê à nossa imaginação, jamais algum dia esperaríamos deparar com um assassínio numa aldeia remota do país, onde todos se conhecem, se respeitam, ou se temem, onde todos, ao fim e ao cabo, são uma família. Porém, naquele dia fatídico, a insaciável esposa de Belzebu, já cansada de aguardar, reivindicou a sua presa. Aquelas pessoas, os assassinos, não eram gente má. A sua vida, marcada pelo labor duro e ingrato, estava isenta de máculas. Iam todos os domingos à missa, e confessavam ao cura os seus pecados – coisas de somenos. Davam o seu melhor à comunidade, cumpriam escrupulosamente os seus deveres, recebiam em troca apenas aquilo a que tinham direito. Para quê matar, se os conflitos surgidos se resolviam com uma simples discussão, uma pequena cedência, ou por vezes – raras – com umas pauladas, ou vergastadas, dadas naqueles lombos habituados a sofrer até à exaustão. Longe iam os tempos da Inquisição, em que os membros da igreja católica, todo-poderosos, metiam nos cárceres, ou queimavam na fogueira, aqueles que se lhes opunham, ou de quem não gostavam. Os tempos eram outros. Contudo, os actos menos nobres dos seres humanos são como as tempestades: surgem de repente, tudo arrasam, e logo o seguir tudo acalma, a mente adormece, nasce o silêncio inquietante, apenas restam os destroços, pequenos fragmentos espalhados ao acaso.

    Naquela madrugada do dia 20/5/1930, António José Domingues, mais conhecido por « Soajo », de 50 anos, acorda cedo e chama a sua companheira de escala, Maria Gonçalves, de 23 anos, do Ribeiro de Cima, para juntos irem apascentar o gado. Antes de partirem, manjam a habitual água de unto, com aquele delicioso pão castrejo, mantendo em sossego aqueles estômagos por algumas horas. O corpulento cão de raça já acordara e mostrava-se impaciente por partir para aquelas pastagens com o « seu » rebanho. Habituara-se àquele ritual: todas as manhãs, muito cedo, um homem e uma mulher da comunidade vinham chamá-lo para os acompanhar e para os defender, caso fosse necessário. Especializara-se em guardar o rebanho, em mantê-lo em respeito, não admitia desobediências nem deserções – se levasse cem cabeças para o monte, esse exacto número teria que voltar com ele; às vezes até voltavam mais, pois as fêmeas não iam à maternidade parir, pariam ali, no monte, como se fosse a coisa mais banal do mundo, sem parteira por perto. Há um ditado antigo que diz assim: « o homem põe a divindade dispõe ». Pois é: nesse dia só regressa do pasto a rapariga. Os vizinhos, estupefactos, boquiabertos, perguntam-lhe: « E Antônio? Que é feito de Antônio? »

    O tempo foi passando e nada de aparecer o pastor. Alguns habitantes do lugar, inquietos, augurando o pior, decidem ir à procura do desaparecido. Procuram, chamam, nada! Regressam, altas horas, já com luz diurna, deveras desiludidos. Participam o evento à autoridade. São enviados dois cabos da polícia (nessa altura, em virtude de um conflito surgido entre a administração do concelho e a GNR, esta teve que ir embora), sendo um deles o perspicaz « Manuel Pintor ». Inteiram-se imediatamente do que se passou e depressa se apercebem que a jovem pastora devia saber muito mais do que aquilo que timidamente revelara. Obrigam-na a acompanhá-los ao monte; pelo caminho iam-na interrogando. Em princípio negou mas, apertada, entrou em grosseiras contradições. Resolve contar tudo: fora seu primo quem assassinara, à pedrada, o pobre « Soajo ». O corpo da vítima encontrava-se no sítio designado a Cova do Ladrão. Dirigiram-se imediatamente para o local e depressa descobriram o cadáver. Estava coberto de ervas e urzes. Comunicaram o sucedido à sede do concelho, que ficava quase a 20 kmde distância, e logo que foi possível um carro puxado a animais transportou o corpo para o hospital da Santa Casa da Misericórdia de Melgaço, onde foi submetido a autópsia. « Apresentava-se horrorosamente martirizado, com contusões enormes nos braços, no peito e na cabeça, e com 11 facadas, sendo uma no pescoço e outras pelo peito, que atravessaram o coração e pulmões. » Iniciaram-se as inevitáveis investigações, e os agentes policiais chegaram à seguinte conclusão: o « Soajo » andava de relações cortadas, havia já um ano, com Constantino Xavier e esposa, e com Manuel António Bernardo (o Redondo), e com a companheira deste, Rosa Gonçalves. O motivo da zanga era normal: uma questão de águas de rega com os primeiros, e uma servidão com os segundos. António José pedira uma opinião, por escrito, à Direcção das Hidráulicas, e essa entidade deu-lhe razão, pelo que os outros ficaram furiosos e juraram vingar-se.

    Elaboraram um hábil plano, mas como sabiam que o adversário era um latagão, teriam que arranjar alguém de fora, um indivíduo habituado a bater, para lhe dar, enfim, um correctivo. Não o queriam matar, apenas aplicar-lhe uma tareia que lhe servisse de lição. Lembraram-se daquele valente da Peneda, o Manuel José de Sousa, cuja fama de brigão correra já aquelas serras de fio a pavio. O Redondo, em Abril, foi ter com ele, mas aconteceu o imprevisto: o Sousa disse-lhe que não dava coças a quem não conhecia nem mal algum lhe fizera; tinha a sua maneira própria de agir, a sua ética, o seu código de honra. O grupo ficou irritado. Tinham que encontrar uma solução: o Domingues não se riria deles. A Rosa abordou a mulher de Constantino, Amélia Gonçalves, e sugeriu-lhe que insistisse com o seu marido para ir convencer o tal Sousa, e se ele recusasse então recorreriam ao Félix da Rosa, também da Gavieira, menos escrupuloso do que aquele. Manuel António dirigiu-se, no dia 18/5/1930, à Peneda e fez novamente o convite ao Sousa, oferecendo-lhe uma nota das grandes. A resposta foi peremptória: não! Regressou ao Ribeiro de Cima com o rabo entre as pernas – a sua diplomacia não fora suficiente para convencer o lutador. Reuniram o grupo e tomaram uma decisão: seriam eles a malhar no conterrâneo. Escolheram o dia vinte desse mês, dia em que o « Soajo » haveria de ir para o monte com o gado. A Amélia combinou com o marido irem à tarde ao monte darem umas pauladas ao seu inimigo. O plano era simples e eficaz. Para encontrar um álibi o Constantino, com o Bernardo e a sua amante, iriam à vila de Castro. O primeiro solicitava uma dispensa para cortar madeira no monte baldio, os segundos pagariam a multa provocada pela desavença. No regresso partiram para o monte. Já lá estava Amélia com a pastora. Dissera-lhe ao que ia. Ela não concordou, até simpatizava com o companheiro de ofício, tinha o seu feitio mas não era mau diabo. Contudo, ameaçada de morte, viu-se obrigada a participar. Foi ela a primeira a achegar-se ao pastor. Este de nada desconfiou. Maria, rodeando-o, como uma especialista no jogo do pau, espeta-lhe duas pauladas na cabeça, ficando o pobre homem a cambalear. Como era forte como um touro, depressa se recompôs. Tirou o pau à moça e tentou agredi-la, assim como a Amélia, pois verificou que elas não estavam a brincar. Estas retiram-se, atirando pedras e mais pedras. Ele, vendo que as mulheres se afastaram, começa a correr em direcção a sua casa, a fim de tratar da cabeça, que muito lhe doía. Porém, quando chega à Lapa do Ladrão, à sua espera estava a matilha. Amélia, que ficara ferida na rixa, tira do bolso uma faca e entrega-a ao marido, exigindo-lhe que mate o « Soajo », pois de contrário ele matá-los-ia. Constantino não hesita: espeta a naifa na garganta da vítima. Este tenta defender-se, mas vê-se manietado, enquanto o agressor o esfaqueia sem dó nem piedade. Quando a vítima já estava a despedir-se deste mundo, numa agonia indescritível, o energúmeno passa a faca a Maria, obrigando-a a dar-lhe duas facadas – assim não haveria ali inocentes, todos, sem excepção, eram culpados e cúmplices daquela chacina brutal, selvagem, sem explicação racional. Depois de levarem o cadáver para o tal buraco, dispersaram; somente Maria, atordoada, incrédula, ficou, a fim de conduzir os animais para a corte. O pobre cão ladrava, quase chorando!

    Quando a rapariga chegou ao lugar sem o companheiro, e perguntando-lhe os vizinhos por ele, respondeu meio a brincar, meio a sério, aparvalhada, que fora comido pelo lobo. Ela fugira! Se não fora a persistência do « Manuel Pintor » talvez ainda hoje não conhecêssemos o nome dos canalhas, nem a causa daquela horrível morte. Numa das salas do edifício dos Paços do Concelho, inaugurado em 1931, decorreu o julgamento. Os juízes, Manuel Faria Sampaio, António Baltazar Pereira e Jaime Fontes, depois de um ano de intenso trabalho, preparavam-se para ler as sentenças. A acusação pública estava a cargo do Dr. António de Almeida Moura; a particular coube ao Dr. António Francisco de Sousa Araújo. A defesa dos réus foi assegurada pelo Dr. Francisco de Sá Tinoco, advogado de Braga. Como se esperava, foram todos condenados a oito anos de prisão maior, seguidos de doze anos de degredo, ou na alternativa a vinte e cinco anos de degredo, e 1 800$00 de imposto de justiça cada um, com excepção de Maria Gonçalves, que pagaria 800$00, e todos solidariamente em 10 000$00 de indemnização à queixosa. E desta maneira, inesperadamente, como num filme de terror, famílias honradas transformaram-se em criminosos! (ver NM 62, de 25/7/1930; NM 99, de 1/3/1931; NM 101, de 15/3/1931; NM 102, de 22/3/1931; NM 107, de 3/5/1931; NM 114, de 21/6/1931).

 

Dicionário Enciclopédico de Melgaço II

Joaquim A. Rocha

Edição do autor

2010

Pág.s 256, 257, 258