CRIME DE CASTRO LABOREIRO
Por mais voltas que se dê à nossa imaginação, jamais algum dia esperaríamos deparar com um assassínio numa aldeia remota do país, onde todos se conhecem, se respeitam, ou se temem, onde todos, ao fim e ao cabo, são uma família. Porém, naquele dia fatídico, a insaciável esposa de Belzebu, já cansada de aguardar, reivindicou a sua presa. Aquelas pessoas, os assassinos, não eram gente má. A sua vida, marcada pelo labor duro e ingrato, estava isenta de máculas. Iam todos os domingos à missa, e confessavam ao cura os seus pecados – coisas de somenos. Davam o seu melhor à comunidade, cumpriam escrupulosamente os seus deveres, recebiam em troca apenas aquilo a que tinham direito. Para quê matar, se os conflitos surgidos se resolviam com uma simples discussão, uma pequena cedência, ou por vezes – raras – com umas pauladas, ou vergastadas, dadas naqueles lombos habituados a sofrer até à exaustão. Longe iam os tempos da Inquisição, em que os membros da igreja católica, todo-poderosos, metiam nos cárceres, ou queimavam na fogueira, aqueles que se lhes opunham, ou de quem não gostavam. Os tempos eram outros. Contudo, os actos menos nobres dos seres humanos são como as tempestades: surgem de repente, tudo arrasam, e logo o seguir tudo acalma, a mente adormece, nasce o silêncio inquietante, apenas restam os destroços, pequenos fragmentos espalhados ao acaso.
Naquela madrugada do dia 20/5/1930, António José Domingues, mais conhecido por « Soajo », de 50 anos, acorda cedo e chama a sua companheira de escala, Maria Gonçalves, de 23 anos, do Ribeiro de Cima, para juntos irem apascentar o gado. Antes de partirem, manjam a habitual água de unto, com aquele delicioso pão castrejo, mantendo em sossego aqueles estômagos por algumas horas. O corpulento cão de raça já acordara e mostrava-se impaciente por partir para aquelas pastagens com o « seu » rebanho. Habituara-se àquele ritual: todas as manhãs, muito cedo, um homem e uma mulher da comunidade vinham chamá-lo para os acompanhar e para os defender, caso fosse necessário. Especializara-se em guardar o rebanho, em mantê-lo em respeito, não admitia desobediências nem deserções – se levasse cem cabeças para o monte, esse exacto número teria que voltar com ele; às vezes até voltavam mais, pois as fêmeas não iam à maternidade parir, pariam ali, no monte, como se fosse a coisa mais banal do mundo, sem parteira por perto. Há um ditado antigo que diz assim: « o homem põe a divindade dispõe ». Pois é: nesse dia só regressa do pasto a rapariga. Os vizinhos, estupefactos, boquiabertos, perguntam-lhe: « E Antônio? Que é feito de Antônio? »
O tempo foi passando e nada de aparecer o pastor. Alguns habitantes do lugar, inquietos, augurando o pior, decidem ir à procura do desaparecido. Procuram, chamam, nada! Regressam, altas horas, já com luz diurna, deveras desiludidos. Participam o evento à autoridade. São enviados dois cabos da polícia (nessa altura, em virtude de um conflito surgido entre a administração do concelho e a GNR, esta teve que ir embora), sendo um deles o perspicaz « Manuel Pintor ». Inteiram-se imediatamente do que se passou e depressa se apercebem que a jovem pastora devia saber muito mais do que aquilo que timidamente revelara. Obrigam-na a acompanhá-los ao monte; pelo caminho iam-na interrogando. Em princípio negou mas, apertada, entrou em grosseiras contradições. Resolve contar tudo: fora seu primo quem assassinara, à pedrada, o pobre « Soajo ». O corpo da vítima encontrava-se no sítio designado a Cova do Ladrão. Dirigiram-se imediatamente para o local e depressa descobriram o cadáver. Estava coberto de ervas e urzes. Comunicaram o sucedido à sede do concelho, que ficava quase a 20 kmde distância, e logo que foi possível um carro puxado a animais transportou o corpo para o hospital da Santa Casa da Misericórdia de Melgaço, onde foi submetido a autópsia. « Apresentava-se horrorosamente martirizado, com contusões enormes nos braços, no peito e na cabeça, e com 11 facadas, sendo uma no pescoço e outras pelo peito, que atravessaram o coração e pulmões. » Iniciaram-se as inevitáveis investigações, e os agentes policiais chegaram à seguinte conclusão: o « Soajo » andava de relações cortadas, havia já um ano, com Constantino Xavier e esposa, e com Manuel António Bernardo (o Redondo), e com a companheira deste, Rosa Gonçalves. O motivo da zanga era normal: uma questão de águas de rega com os primeiros, e uma servidão com os segundos. António José pedira uma opinião, por escrito, à Direcção das Hidráulicas, e essa entidade deu-lhe razão, pelo que os outros ficaram furiosos e juraram vingar-se.
Elaboraram um hábil plano, mas como sabiam que o adversário era um latagão, teriam que arranjar alguém de fora, um indivíduo habituado a bater, para lhe dar, enfim, um correctivo. Não o queriam matar, apenas aplicar-lhe uma tareia que lhe servisse de lição. Lembraram-se daquele valente da Peneda, o Manuel José de Sousa, cuja fama de brigão correra já aquelas serras de fio a pavio. O Redondo, em Abril, foi ter com ele, mas aconteceu o imprevisto: o Sousa disse-lhe que não dava coças a quem não conhecia nem mal algum lhe fizera; tinha a sua maneira própria de agir, a sua ética, o seu código de honra. O grupo ficou irritado. Tinham que encontrar uma solução: o Domingues não se riria deles. A Rosa abordou a mulher de Constantino, Amélia Gonçalves, e sugeriu-lhe que insistisse com o seu marido para ir convencer o tal Sousa, e se ele recusasse então recorreriam ao Félix da Rosa, também da Gavieira, menos escrupuloso do que aquele. Manuel António dirigiu-se, no dia 18/5/1930, à Peneda e fez novamente o convite ao Sousa, oferecendo-lhe uma nota das grandes. A resposta foi peremptória: não! Regressou ao Ribeiro de Cima com o rabo entre as pernas – a sua diplomacia não fora suficiente para convencer o lutador. Reuniram o grupo e tomaram uma decisão: seriam eles a malhar no conterrâneo. Escolheram o dia vinte desse mês, dia em que o « Soajo » haveria de ir para o monte com o gado. A Amélia combinou com o marido irem à tarde ao monte darem umas pauladas ao seu inimigo. O plano era simples e eficaz. Para encontrar um álibi o Constantino, com o Bernardo e a sua amante, iriam à vila de Castro. O primeiro solicitava uma dispensa para cortar madeira no monte baldio, os segundos pagariam a multa provocada pela desavença. No regresso partiram para o monte. Já lá estava Amélia com a pastora. Dissera-lhe ao que ia. Ela não concordou, até simpatizava com o companheiro de ofício, tinha o seu feitio mas não era mau diabo. Contudo, ameaçada de morte, viu-se obrigada a participar. Foi ela a primeira a achegar-se ao pastor. Este de nada desconfiou. Maria, rodeando-o, como uma especialista no jogo do pau, espeta-lhe duas pauladas na cabeça, ficando o pobre homem a cambalear. Como era forte como um touro, depressa se recompôs. Tirou o pau à moça e tentou agredi-la, assim como a Amélia, pois verificou que elas não estavam a brincar. Estas retiram-se, atirando pedras e mais pedras. Ele, vendo que as mulheres se afastaram, começa a correr em direcção a sua casa, a fim de tratar da cabeça, que muito lhe doía. Porém, quando chega à Lapa do Ladrão, à sua espera estava a matilha. Amélia, que ficara ferida na rixa, tira do bolso uma faca e entrega-a ao marido, exigindo-lhe que mate o « Soajo », pois de contrário ele matá-los-ia. Constantino não hesita: espeta a naifa na garganta da vítima. Este tenta defender-se, mas vê-se manietado, enquanto o agressor o esfaqueia sem dó nem piedade. Quando a vítima já estava a despedir-se deste mundo, numa agonia indescritível, o energúmeno passa a faca a Maria, obrigando-a a dar-lhe duas facadas – assim não haveria ali inocentes, todos, sem excepção, eram culpados e cúmplices daquela chacina brutal, selvagem, sem explicação racional. Depois de levarem o cadáver para o tal buraco, dispersaram; somente Maria, atordoada, incrédula, ficou, a fim de conduzir os animais para a corte. O pobre cão ladrava, quase chorando!
Quando a rapariga chegou ao lugar sem o companheiro, e perguntando-lhe os vizinhos por ele, respondeu meio a brincar, meio a sério, aparvalhada, que fora comido pelo lobo. Ela fugira! Se não fora a persistência do « Manuel Pintor » talvez ainda hoje não conhecêssemos o nome dos canalhas, nem a causa daquela horrível morte. Numa das salas do edifício dos Paços do Concelho, inaugurado em 1931, decorreu o julgamento. Os juízes, Manuel Faria Sampaio, António Baltazar Pereira e Jaime Fontes, depois de um ano de intenso trabalho, preparavam-se para ler as sentenças. A acusação pública estava a cargo do Dr. António de Almeida Moura; a particular coube ao Dr. António Francisco de Sousa Araújo. A defesa dos réus foi assegurada pelo Dr. Francisco de Sá Tinoco, advogado de Braga. Como se esperava, foram todos condenados a oito anos de prisão maior, seguidos de doze anos de degredo, ou na alternativa a vinte e cinco anos de degredo, e 1 800$00 de imposto de justiça cada um, com excepção de Maria Gonçalves, que pagaria 800$00, e todos solidariamente em 10 000$00 de indemnização à queixosa. E desta maneira, inesperadamente, como num filme de terror, famílias honradas transformaram-se em criminosos! (ver NM 62, de 25/7/1930; NM 99, de 1/3/1931; NM 101, de 15/3/1931; NM 102, de 22/3/1931; NM 107, de 3/5/1931; NM 114, de 21/6/1931).
Dicionário Enciclopédico de Melgaço II
Joaquim A. Rocha
Edição do autor
2010
Pág.s 256, 257, 258