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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

CONTRABANDO, GUERRA E DITADURA

melgaçodomonteàribeira, 02.12.23

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 ribeiro de cima, castro laboreiro

O CONTRABANDO NO TEMPO DA GUERRA E DA DITADURA

 

(…) a atividade do contrabando atinge o clímax num período marcado por dois acontecimentos históricos que influenciaram – direta e indiretamente – a vida económica e social das populações raianas, nomeadamente a Guerra Civil Espanhola (1936-1939) e a IIª Grande Guerra (1939-1945). O primeiro confronto é contemporâneo da afirmação da ditadura Franquista em Espanha e da consolidação do Estado Novo em Portugal, regimes que, com as suas políticas segregadoras e opressivas, marcaram indelevelmente a vida nas zonas de fronteira.

A Guerra Civil Espanhola acabou, antes de mais, por gerar uma extrema carência de bens e dificuldades de subsistência dos dois lados da raia, provocadas por medidas de contenção impostas, vigiadas e fiscalizadas pelas organizações corporativas estatais. Mas, além disto, a consolidação dos regimes ditatoriais ibéricos, também provocou um reforço das medidas de controlo fronteiriço, contra as quais as populações raianas tiveram que lutar, recorrendo a métodos de resistência ilícitos, como é o caso do contrabando (Táboas, et al., 2009).

O conflito que assolou Espanha acabou por ser encarnado pelas populações raianas como uma oportunidade comercial e isso também se verificou no caso da sociedade melgacense. As guerras, segundo Luís Cunha (2006: 180), tornaram “a fronteira num espaço mais preenchido e, nesse sentido, mais dinâmico”, levaram a um movimento permanente de pessoas e mercadorias, constituindo também um recurso fundamental para a sobrevivência condigna das populações, pois os tempos da guerra foram, sobretudo, tempos de miséria e indigência. Relativamente a esta última consideração, é importante salientar que, neste período, a fronteira também foi encarada como um refúgio para refugiados espanhóis, os quais, pelas vicissitudes políticas, procuravam evadir-se à repressão do regime franquista, procurando abrigo também em Melgaço, mormente na zona montanhosa de Castro Laboreiro.

O impacto da guerra civil está bem presente na memória dos melgacenses. Para uns, este foi um tempo de oportunidades, sobretudo de exportação de bens que faltavam no país vizinho, transformando-se a conjuntura de carências numa ocasião de obtenção de maior capital económico; para outros, foi um tempo assombrado pela miséria e pela rarefação de bens, e também pela conivência das forças de poder protagonizadas pelos seus líderes locais e autoridades policiais. Os dois relatos a seguir transcritos são exemplo claro deste duplo entendimento:

 

… havia o rescaldo da guerra espanhola, da Guerra Civil de Espanha com o Franco e, ficou o rescaldo da guerra. Depois, havia muitas coisas que falhavam na Espanha e muitas coisas que falhavam a Portugal. Às vezes, falhava o azeite, pronto, havia o contrabando do azeite. Levávamos o azeite nuns odres ainda, chamam-lhe odres, que era peles de animais nuns odres. Sabão, sabão de potassa, café Sical, café sem torrar, café cru.   (José, Paços)

 

…as pessoas tinham pouco dinheiro, tinha acabado a Guerra Civil Espanhola, nós aqui ficámos muito mal, porque tudo o que havia foi para Espanha, porque o Salazar era amigo do Franco e ajudou-o, porque ele teve a Guerra Civil, que começou em trinta e seis, acabou em trinta e nove e a Espanha ficou destruída. Em trinta e nove começou a Segunda Guerra Mundial e, depois, tudo o que havia aqui passou para a Espanha, o contrabando. Pagavam o milho muito caro, o milho vendia-se para a Espanha e aqui passavam muita fome.   (Matilde,Paderne)

 

Como é possível depreender, o contrabando foi, no tempo muito preciso da guerra e da ditadura, uma alternativa viável ao isolamento e à pobreza da população melgacense, uma forma de resistência à marginalidade política, social e económica a que estava votada pelo poder. Além disso, o contrabando era, sobretudo, uma atividade legitimada pela necessidade e é dessa forma que os informantes ainda hoje entendem a sua prática, como uma atividade não danosa, mas necessária.

 

 

MARIA SALOMÉ ALVES DIAS

 

A FRONTEIRA ENQUANTO ESPAÇO DE PARTILHA IDENTITÁRIA, CULTURAL E LINGUÍSTICA: UM ESTUDO INTERPRETATIVO DA ZONA RAIANA DE MELGAÇO

UNIVERSIDADE DO MINHO

INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS

OUTUBRO DE 2017

CONTRABANDO NO CONCELHO DE MELGAÇO

melgaçodomonteàribeira, 18.11.23

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TIPO E PRODUTOS CONTRABANDEADOS EM MELGAÇO

 

DEPOIMENTOS

“De um modo geral, aquele contrabando, que a gente chama contrabando mais visível, eram os homens que o faziam, era contrabando, por exemplo, de prata, do ouro, do cobre, de tripa, de sabão, isso implicava carga, risco, noite e ligação com os guardas e tudo. Esse, normalmente, eram os homens que o faziam. Se tu quiseres, o contrabando vinha de baixo, às vezes vinha de longe, às vezes vinha de Lisboa e havia as cargas, haviam poucos camiões, portanto, eram sempre dois ou três que andavam nisso, não havia mais e, as pessoas, punham-se em determinado sítio à espera que chegasse um camião, para fazer a descarga, fazer a descarga era pegar nas coisas e levá-las à Espanha, não é? Esse, eram sempre homens, sobretudo homens. As mulheres faziam outro tipo de contrabando, que era um contrabando mais de galinhas, de ovos e essas coisas todas assim, que acabava por ser um contrabando mais arriscado do que o outro, sabes porquê? Porque o outro contrabando, normalmente, estava almofadado, isto é, os guardas… eram coniventes. Recebiam um tanto por atravessar, recebiam outro tanto ao mês. De uma maneira ou de outra. Portanto, era mais almofadado. Quando os guardas apanhavam alguém lá com os ovos, com as galinhas, ou com nada, aí é que exerciam a autoridade toda e tu podias ter circunstâncias em que, uma mulher, por estar a passar ovos, ir para a cadeia, por exemplo.” (A. Gonçalves)

 

“Eu mesmo, quando vinha cá à terra, ia buscar as coisas à Espanha. Eu não estive envolvido no contrabando, mas estava bem ocorrente de como funcionava o contrabando, porque isso era o florão da nossa terra. Era um passar em contrabando de coisas importantes para Espanha e da Espanha para Portugal. De Portugal para a Espanha, era sobretudo o café, adepois, o cobre, o ouro, o volfrâmio, que nós tivemos aqui, uma coisa importante em Castro Laboreiro foi o volfrâmio. Eu sei que o meu pai e uma tia minha trabalharam lá, foi mesmo difícil, você imagine que iam daqui para Castro Laboreiro para trabalhar e ficavam lá, sabe Deus a dormir como, na estação do volfrâmio.” (António, Paderne)

 

A FRONTEIRA ENQUANTO ESPAÇO DE PARTILHA IDENTITÁRIA, CULTURAL E LINGUÍSTICA: UM ESTUDO INTERPRETATIVO DA ZONA RAIANA DE MELGAÇO

MARIA SALOMÉ ALVES DIAS

UNIVERSIDADE DO MINHO

INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS

OUTUBRO 2017

CONTRABANDO E GUARDA FISCAL

melgaçodomonteàribeira, 14.10.23

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fronteira de s. gregório

 

DO DEVER DA FRADA À CUMPLICIDADE OCULTA –

A POSIÇÃO DAS FORÇAS POLICIAIS PERANTE O CONTRABANDO

 

O Estado impunha medidas para conter as redes de comércio clandestino, cercando as populações da fronteira com mecanismos e recursos humanos e materiais de vigilância, que permitiam fiscalizar o vaivém de mercadorias e pessoas. Apesar de este controlo já ser feito anteriormente, tornara-se mais intenso após as crises económicas e as guerras, exigindo nestes períodos cuidados adicionais, como controlar a passagem de refugiados espanhóis para o território português e evitar a passagem de armamento e, também, o intercâmbio ilegal de mercadorias (Táboas et al., 2009: 66). O Estado apostou, então, na criação e no reforço de infraestruturas de controlo fronteiriço, entre elas postos de vigilância da Guarda Fiscal. Aqui, convém realçar que Melgaço, pela variedade e valor da prática do contrabando tinha, em 1961, o maior contingente de Guarda Fiscal do Vale do Minho, com “2 sargentos, 16 cabos, e 74 soldados distribuídos por 17 postos” (Gonçalves, 2008: 245).

Os postos distribuíam-se por “quase” todas as freguesias: Via, Prado, Paços, Remoães (Mourentão), Paderne (S. Marcos), Alvaredo (S. Martinho), Chaviães (Louridal e Porto Vivo), Castro Laboreiro (Ameijoeira, Portelinha, Castro Laboreiro, Ribeiros de Cima e de Baixo), Cristóval (S. Gregório e Cevide), Lamas de Mouro (Alcobaça) e Fiães.

As forças do poder procederam, também, à reestruturação dos organismos de vigilância e de controlo da autoridade, que incluíam a Guarda Fiscal, a Guarda Nacional Republicana (GNR) e a Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE), posterior Polícia Internacional de Defesa do Estado (PIDE), sendo esta última responsável pela gestão, prevenção e contenção de crimes políticos e, em consequência, pelo agravamento de sanções penais referentes à prática de contrabando e ao auxílio à emigração clandestina.

Relativamente à prática do contrabando, a figura que mais se destaca nas narrativas dos informantes é, sem dúvida, a do Guarda Fiscal, com a qual tiveram uma experiência ou relação mais próxima. Nos seus discursos, como já referi anteriormente, a figura do Guarda Fiscal assume uma posição dual: por um lado, reprimia a prática do contrabando, zelando pelo seu dever profissional; por outro lado, devido ao seu passado antes da inserção nas forças policiais, que muitas vezes passava pelo contrabando e pela sua ligação às comunidades em que prestava serviço, onde muitos dos contrabandistas eram seus vizinhos ou parentes, acabava por conscientemente aceitar e tolerar esta prática clandestina (Amante, 2007; Fonseca &Freire, 2009).

O excerto que a seguir reproduzo foi transmitido por um antigo Guarda Fiscal que, no passado, também havia tido experiência enquanto contrabandista. Nele se reflete de forma muito clara a postura de conivência advinda das forças do poder, justificada pelo informante pela experiência do passado:

Haviam aqueles jovens, os matrimónios, que tinham casado de novo, que levavam dez quilos de Sical, iam nos barquinhos, traziam dez kilos de Sical para cá. Sempre se ganhava cinquenta escudos, cinco escudos cada, aquilo era muito dinheiro, mas claro, tinham uma família assim. Não é que eu entro das oito à meia-noite e não vou apanhar dois rapazes com vinte kilos de Sical? Porque dei-lhe o Auto! E não pararam, claro, era normal, fugiram. Atiraram com o café dentro do barquinho, mas um tinha a corrente e o barco atado num amieiro, era de noite, não abriram a tempo e eu puxei-lhe a corrente e prendi-os.

Chegámos ao Posto: ó senhor Guarda, deixe-nos ir embora, deixe-nos ir embora! (um até já chorava). Eu: pousem aí! Vão-se lá embora, pronto!

Já iam embora e deixavam o café, eles queriam era ir embora, porque o cabo, além de perderem o café, ainda os fazia pagar a multa, que era um a dez vezes o valor da mercadoria!

- Levem o café! – eles até ficaram assim admirados; e eles: ó senhor Guarda levámos para casa ou para onde imos?

- Para onde quiserdes!

Eu a primeira noite não os conhecia, tive pena deles.

Um, tinha dois filhos e tinha a mulher grávida (…) e o outro… tinham a vida deles, coitados! Então, quando vinham e eu estava de serviço, deixava-os passar. (José, Paços)

Outros casos houve em que a conivência partia de uma oportunidade de grupo, ou seja, o Guarda Fiscal, cooperando muitas das vezes com grandes redes profissionais de contrabando, impunha determinadas condições para a sua benevolência, entre elas, parte dos lucros da mercadoria transacionada, enriquecendo “à manjedoura da actividade, sem qualquer ética ou sentido de classe” (Domingues&Rodrigues, 2009: 231). Como reforçou o Guarda Fiscal que anteriormente referi, “os contrabandos, ao fim, já acabavam por não ser contrabando, porque o tenente, o comando da secção sabia tudo, deixavam e levavam!” (José, Paços). Além do referido, o posto da Guarda Fiscal e alfândega também eram, muitas das vezes, o último “refúgio” dos bens apreendidos, que depois acabavam ou por ser leiloados, ou repartidos pelos próprios soldados ou até destruídos, como um trabalhador da alfândega me acabou por confidenciar:

Jesus, nem queira saber! Eu atropelava nas apreensões da alfândega, que a Guarda Fiscal prendia, quando prendia; sabe que os maiores corruptos eram aqueles gajos que empregavam a farda, não é? Quantas vezes nós nos atiramos aí! Aqui o contrabando era uma razia. Eu queimei muita carninha vinda de Espanha. Aqui, um dia fui queimar carne a Monção, no jipe da Guarda Fiscal; não era Guarda Fiscal, era da alfândega, mas (…) no meio daqueles penedos, em Monção, só se via carne a arder. Deu-me tanta pena! Vinham aquelas pessoas com criancinhas cheias de fome! “Oh, deixe-me, dê-me (…) kilos de carne!”; “Oh, minha senhora, deixe-me ir embora e depois vocês arranjam-se!”, mas queimei muita carninha, pá! (Fernando, Cristóval)

Por fim, não se podem ignorar os episódios de repressão e abuso da autoridade por parte das forças policiais. Normalmente as ideias de dureza e repressão são mais associadas pelos informantes à figura do “carabineiro”, mas também se contam episódios de transações que acabaram em situações de extrema violência protagonizadas pelas autoridades portuguesas, como me contou um dos informantes:

… tive problemas na vida, tive problemas graves. Tive um rapaz amigo que morreu como daqui ao tribunal, levou um tiro, entrou-lhe aqui num braço e saiu debaixo do outro braço, nem ai Jesus disse! (…) nessa vez já fui preso. Levava um saco de noventa quilos às costas de café cru (…). (Mateus, Vila)

O contrabando era, de facto, uma prática clandestina de elevado risco para os seus praticantes, podendo culminar em situações mais desfavoráveis como apreensões dos bens em transação, multas, prisões ou, em situações de extrema violência, como a que acabamos de referir, culminando na morte dos contrabandistas (Godinho, 2009).

 

A FRONTEIRA ENQUANTO ESPAÇO DE PARTILHA IDENTITÁRIA, CULTURAL E LINGUÍSTICA: UM ESTUDO INTERPRETATIVO DA ZONA RAIANA DE MELGAÇO

 

MARIA SALOMÉ ALVES DIAS

UNIVERSIDADE DO MINHO

INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS

OUTUBRO DE 2017

CONTRABANDO E CONTRABANDISTAS

melgaçodomonteàribeira, 30.09.23

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CONTRABANDO PELA RAIA SECA DO LABOREIRO

OS TIPOS DE CONTRABANDO E OS CONTRABANDISTAS

 

Américo Rodrigues

 

O contrabando, numa terra que sempre teve dificuldade em dar pão aos seus filhos, num tempo de guerra (36-45) e fascismo (Franco e Salazar), foi deveras importante, desenvolveu localmente o comércio e estatutos sociais.

Aqui praticou-se sobretudo o contrabando “às costas” e o contrabando feito com muares – machos e mulas. Cada homem levava em média 25-30 quilos e as viagens duravam, às vezes, horas, ou mesmo dias e noites. Os animais transportavam uma centena de quilos e normalmente não passavam a raia delimitadora dos dois países.

O contrabando de camião surgiu quando da abertura das estradas em terra, uma na serra do Laboreiro, que ligou Portelinha aos Portos, e a outra, a actual estrada de fronteira, da Vila à Ameixoeira. Tal tipo de contrabando é por isso recente, e contava com a cumplicidade da Guarda-fiscal, que engordava à manjedoura da actividade, sem qualquer ética ou princípio de classe.

Apesar da dificuldade em formatar esta actividade, considero que existem três tipos de contrabando distintos.

Um contrabando familiar, de subsistência, exercido principalmente pelas mulheres e filhos, que esporadicamente deslocavam-se ao outro lado da fronteira, às lojas, para se abastecer de bens de primeira necessidade para a casa: azeite, bacalhau, uns sapatos, pimento, sabão, etc. Podia acontecer até irem trocar batatas por feijões ou milho.

Outro contrabando, já mais profissional, é encabeçado, na maioria das vezes por comerciantes da zona. Compram e vendem de um lado e do outro da raia, com “amigos” do ofício. Para isso, contratam grupos de cinco, dez ou mais pessoas (familiares ou vizinhos) para irem “ao outro lado” ou à raia, a pé, por vezes com animais de carga, buscar e levar os produtos. Para os locais é um contrabando de subsistência que ajudava a enganar os tempos de miséria e privações. Homens, mulheres e rapazes, depois dos trabalhos do dia a dia, no campo e no monte, levam as cargas pela calada da noite aos locais combinados.

O mais famoso e o mais bem sucedido dos contrabandistas foi “O Mareco” de Várzea Travessa. “O Frade” das Coriscadas talvez seja o segundo da hierarquia, no entanto são conhecidos de todos: “O Carqueijo” de Padresouro, com loja em Padresouro e depois na Vila, “O Mochena” das Eiras, com loja nas Cainheiras e depois na Vila, “O Chimpa” de Várzea Travessa, “O Albano” “Pereira” com loja nos Antões e depois na Vila, “O Varanda” de Portelinha, ou o “Nicho” da Vila.

Estes homens não fizeram vida de emigrante (alguns partiram à aventura mas regressaram novos) como era moda na sua geração. O contrabando é a sua profissão desde muito cedo. Alguns já contrabandeiam em plena guerra civil espanhola. Melhoram bastante a sua condição de vida, poupam e compram quintas por todo o alto Minho. Chegam a investir na banca portuguesa. A maioria dos Castrejos formados (os primeiros), por universidades portuguesas, estudantes no final dos anos 50, é descendentes deles. Estes homens gozam de um estatuto social superior e pela primeira vez os seus filhos passam a pertencer à classe média portuguesa. O Mareco é mesmo um dos homens mais ricos entre o rio Lima e Minho (norte de Portugal).

Ao longo do século vinte, nos lugares mais próximos da fronteira são referenciadas muitas lojas de contrabando. Recordo aqui a loja do “Chastre” em Dorna, a do “Bernardo” na Assureira, a do Manuel “Maceira” no Rodeiro, natural de Várzea Travessa, a loja dos Antões de António “Carrapiço”, a loja do Outeiro de Domingos “Bernardo”, natural das Falagueiras, mais tarde comerciante na Vila, ou a loja das “Cordas” (que foi para o Brasil) no Outeiro, sita no prédio com o nome de Casino. O negócio era com galegos, e era vê-los curvados de sacos de café às costas em direcção à raia.

O contrabando dos anos setenta e oitenta é em grande escala. Gado e bananas são os produtos mais conhecidos. Da velha guarda restam “O Frade” e “O Albano”, que ainda contrabandeiam, quase por gosto e obrigação, mas com eles, estão reformados da França ou ex-emigrantes jovens, que disto fazem modo de vida. Há mesmo contrabandistas de outras paragens, como o Salvador da Gave. Na estrada asfaltada fazem uso de camiões e as vacas entram aos milhares pela fronteira, com destino a todos os matadouros do norte e centro do país. As bananas abastecem todo o mercado nacional.

Confessa um contrabandista: “em 1984, numa noite normal podia ter de lucro 2000 euros”. As famílias mais pobres e até alguns estudantes jovens ganham dinheiro todas as noites “a passar vacas” ou a carregar caixas de bananas. Os Guardas-fiscais reclamam parte dos lucros. O dinheiro circula a rodos.

Na maior parte das vezes os produtos eram enviados, recebidos e geridos por redes situadas em muitas vilas e cidades da Espanha e de Portugal. Estas redes faziam acordos com estes homens, conhecedores do terreno, das pessoas e das forças militares.

Tudo acabou nos inícios dos anos 90. Os últimos foram “Os do Ribeiro”, família Pires, do Ribeiro de Baixo.

Deixo aqui uma nota de nostalgia para a contrabandista a retalho, “Tia Resaura”, de nome Rosana, galega, que viveu sozinha até ao final da vida, no lugar da Assureira (inverneira de Castro Laboreiro), que de manhã ia comprar “peças” de trigo, chocolate, azeite, galhetas, e mais, à loja da amiga Luiza no lugar galego de Pereira, para venda aos Castrejos, e à tarde deixava algum guarda fiscal em turno, quentar-se em dia frio, ao lume da sua lareira, oferecendo-lhe copa ou café acompanhado dos deliciosos e açucarados doces galegos.

 

NEPML – NÚCLEO DE ESTUDOS E PESQUISA DOS MONTES LABOREIRO

 

Boletim Cultural nº 8

Melgaço, 2009

CONTRABANDO DE GADO NA HISTÓRIA

melgaçodomonteàribeira, 15.07.23

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A PASTORÍCIA E “PASSAGEM” DE GADO NA SERRA DE LABOREIRO

 

A relação de vizinhança dos castrejos com os galegos de Milmanda e Araújo já estava consagrada numa carta de privilégio que D. Afonso V lhe tinha outorgado em Monção, a 4 de Julho de 1462. Desde o tempo dos reis D. João I e D. Duarte, pelo menos, que o concelho e homens bons de Castro Laboreiro tinham por costume vizinhar bem com os galegos, nomeadamente trocando pão e vinho e apascentando pacificamente os seus gados em Galiza, tal como os galegos em território do reino de Portugal. Queixando-se a D. Afonso V que os guardas dos portos os importunavam neste privilégio, o monarca “vendo o que nos asi rrequeriam e querendo lhes fazer graça e merçee a nos praz de elles vizinharem com os da dicta comarca asi como sempre fezeram atee ora”.

Esta conjuntura documental remete para uma particularidade interessante, a relação entre a pastorícia e o contrabando de gado, que vem a talhe de fouce, uma vez que este ano (no passado dia 27 de Abril) foi inaugurado em Melgaço o Espaço Memória e Fronteira, espaço museológico dedicado à recuperação da inestimável e multifacetada memória raiana melgacense, sobretudo de contrabando e emigração.

Desde a formação de Portugal, no século XII, que os Montes Laboreiro foram seccionados por uma linha de fronteira, formando uma raia seca de muitos quilómetros. Lagos Trindade afirma categoricamente que “a criação de uma fronteira entre os dois reinos não teve influência nos movimentos pastoris” e dá-nos uma perspectiva clara e bem documentada desses movimentos. Sobre o Laboreiro a autora regista, “por um foral manuelino temos conhecimento de uma ida de gados para Castro Laboreiro, embora não possamos falar do papel desta serra na transumância dos rebanhos dos nossos reinos, conquanto saibamos que foi de relevo o papel que desempenhou em relação aos rebanhos transumantes de Castela”.

Em Castro Laboreiro, vinda de tempos ancestrais, ainda perdura a muda das brandas para as inverneiras e vice-versa. É plausível que essas deslocações tenham a sua origem em migrações pastoris, com a singularidade que aqui se mudam animais, pessoas e utensílios. Mas estas deslocações sazonais no interior da freguesia de Castro Laboreiro não se enquadram no conceito de transumância, que pressupõe deslocações de longas distâncias, em busca de pastagens alternativas e fuga aos Invernos rigorosos.

Existe, no entanto, um documento que pode testemunhar um certo movimento de transumância do Laboreiro para o litoral, para utilização de pastos de Inverno. Trata-se de uma sentença de D. Afonso V a favor do mosteiro de Santa Maria do Carvoeiro, onde se refere o arrendamento dos montados das terras de Neiva e Aguiar aos vaqueiros da Galiza, Laboreiro e Monção. A deslocação dos gados de Castro Laboreiro, durante o Inverno, acaba por ser confirmada no foral da terra de Penela, outorgada por D. Manuel, em Lisboa, no dia 20 de Junho de 1514:

Os montados da terra sam comuns aos vezinhos soomente no monte dazevelhe estaa por nos mordomo que aRenda o dito monte no Inverno aos pastores de fora segundo se com elle comcertam. a saber. aos gaados de Crasto Leboreiro E outro tanto fara no monte que dizem das Santas e nos outros montes os outros gaados paçerão livremente”.

Os gados de Castro Laboreiro iam pastar ao monte de Azevelhe e ao monte das Santas, terra de Penela. Validando, de certa forma, as deslocações nesta zona setentrional, no foral afonsino do concelho de Melgaço, datado de 1258, ficou registado que “nullus accipiat montaticum de ganatis de Melgazo”. O montado é o tributo que recai sobre o gado transumante, cobrado em cabeças de gado, de forma proporcional ao tamanho de cada rebanho ou manada que pastasse no local. Se o monarca isenta o gado de Melgaço de todo o montado é porque se trata de gado transumante.

Em relação aos rebanhos que vêm da Galiza, entrando e saindo pela raia seca do Laboreiro, os sedimentos documentais também não abundam ou não são conhecidos. Chamou-me particular atenção o micro-topónimo de Porto Mesta, nas proximidades do lugar da Seara. Será que tem alguma relação com a Mesta de Castela e a passagem de seus rebanhos transumantes?

A verdade é que nesta zona fronteiriça, sobretudo no planalto do Laboreiro, basta uma pequena passada para, em qualquer sítio, se atravessar de um reino para o outro, sem qualquer dificuldade – a fronteira é uma mera linha limítrofe imaginária marcada por alguns afloramentos rochosos ou outros elementos naturais salientes na paisagem agreste. Desta forma estão criadas as condições propícias, não só para a passagem lícita do gado transumante, mas também para o contrabando de animais e outros produtos. No longínquo século XV por aqui se contrabandeava sal, cera e manteiga, entre outras mercadorias.

Ao longo da raia seca, o ponto nevrálgico de trânsito medieval de pessoas, mercadorias e animais, entre Galiza e Portugal, foi sempre o Porto dos Asnos, lugar meeiro das freguesias de Lamas de Mouro e Castro Laboreiro. Desde a recuada Idade Média que, vindo directamente de Galiza ou por Castro Laboreiro, todos os caminhos, praticamente, passam por esse Porto. Daí aparta-se uma via para Melgaço, pelo vale do rio Trancoso, e outra atravessa a freguesia de Lamas de Mouro, bifurcando-se, mais à frente, em direcção a Valadares e aos Arcos de Valdevez.

Desde o tempo do rei D. Pedro I se contrabandeava em força pelo Porto dos Asnos, ao ponto de o monarca, por diploma de 28 de Maio de 1361, interditar este caminho de Lamas de Mouro, desde o dito Porto dos Asnos até à Ponte do Mouro, obrigando os mercadores a passar com os seus produtos por Melgaço. O caminho alternativo para Melgaço, referido por este monumento, só pode ser o que vai pelo vale do rio Trancoso, passando nas proximidades do mosteiro de Santa Maria de Fiães. Deste cenóbio até à vila de Melgaço foi traçada uma via medieval por Ferreira de Almeida, com base no testemunho do cronista Fernão Lopes: “E depois se veio a Rainha ao mosteiro de Feãees, huma leguoa de Melguaço”. Mas este autor não fez a ligação com o Porto dos Asnos. No entanto, não há dúvida que este caminho alcançava o Porto dos Asnos e continuava até à vila de Castro Laboreiro, conforme testemunhou Pero Mouro, criado alguns anos em Castro Laboreiro, à demarcação do termo de Melgaço, em 1538.

O Porto dos Asnos e o de Meijoanes são referidos, por este testemunho, como pontos frequentes de passagem de bestas e gado: “que d’anos pera qua os galegos se lhe metem por dentro do termo a lugares tyro de besta e a lugares dois e ao Porto de Mey Joanes e dos Asnos ahi tomam bestas e gado que por hy pasa contra direito e isto faz o concelho de Milmanda que come disso e roubam hy os portugueses por o qual lugar pasa a estrada que vay desta villa de Mellgaço pera Crasto Leboreyro e isto sabya pasar da dicta maneyra por o elle ver vyvendo em Crasto muitos anos”.

O contrabando, susceptível de gerar conflituosidades, preocupa ambas as monarquias e necessitava de ser contrado de ambos os lados.

 

A PASTORÍCIA E “PASSAGEM” DE GADO EM CASTRO LABOREIRO

José Domingues

Boletim Cultural nº 6

Melgaço, 2007

 

CONTRABANDO DO CARO, DO ALTO

melgaçodomonteàribeira, 11.03.23

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UMA CARGA DE COBRE

Tanto o estanho como o cobre vinham em barras com a forma de um jugo das vacas, pesando cada uma vinte e cinco quilogramas. Conforme nos informou o nosso interlocutor de Caballeiros (San Martiño) ia adquiri-las à Vila, em Castro Laboreiro, ou, à fronteira, ou então, a um sítio combinado com os homens de Castro, onde eram escondidas, para em Caballeiros, ou, no Valoiro serem colocadas, durante a noite, num camião, que as transportava para Ourense e outras cidades.

Desconhecia os verdadeiros mentores deste esquema de contrabando, que intitulou como um contrabando caro, do alto, quer em Portugal, quer na Espanha, mas, o responsável pelo “negócio” em Castro “acertava” com a guarda fiscal uma determinada quantia por cada carga efectuada, eliminando, deste modo, os perigos da “transferência”.

Contudo, houve percalços, como o caso da noite em que os Carabineiros surpreenderam na Cabeça Vella, próximo da Terracha (Entrimo), uma carga de barras de cobre, transportada por vinte e duas mulas, que nos foi mencionada, de forma espontânea, pelos residentes, quer no vale do Grou, quer no de Pacín, preocupando-se, contudo, os nossos interlocutores da Illa em esclarecer que a apreensão se tinha verificado devido a uma denúncia, por represália.

Mas, voltando, propriamente ao caso das barras, eram transportadas em mulas (cada mula carregava 100 Kgs), ou então, pelos rapazes novos e fortes (um rapaz conseguia carregar 50 Kgs).

O nosso interlocutor de Caballeiros, por exemplo, conduzia catorze mulas vazias para a Vila, em Castro, sendo duas mulas “controladas” por um homem, que recebia 400 pesetas por dia, ou melhor, noite.

O estanho e o cobre eram matérias-primas utilizadas nas fundições. Contudo, se o “escoamento” do cobre em barra predominou na década de cinquenta, com a implementação e alargamento da rede eléctrica, a procura “voltou-se”, na década de sessenta, para o fio de cobre.

 

LIMA INTERNACIONAL: PAISAGENS E ESPAÇOS DE FRONTEIRA

Volume I

Elza Maria Gonçalves Rodrigues de Carvalho

Tese de doutoramento em Geografia

Ramo de Geografia Humana

Universidade do Minho

Instituto de Ciências Sociais

Julho de 2006

 

GUARDA FISCAL E CONTRABANDO

melgaçodomonteàribeira, 08.10.22

838 b Castro Laboreiro - Perto do Ribeiro de Baixo

 perto do ribeiro de baixo castro laboreiro

 

CONTRABANDO PELA RAIA SECA DO LABOREIRO

A GUARDA-FISCAL

 

Américo Rodrigues

 

“Os Carabineiros” (na realidade Guarda-civil) e a Guarda-fiscal (“os guardinhas”) vigiavam uma das fronteiras mais velhas da Europa. Em Portugal dependiam do Ministério das Finanças, e a sua profissão estava quase totalmente vocacionada para a apreensão dos produtos contrabandeados, ou seja, ela existia em parte devido ao contrabando e aos contrabandistas.

Os três postos do guarda-fiscal existentes na freguesia tinham uma basta área de vigilância à sua guarda. Os meios de que dispunham eram escassos.

Os guardas eram na sua maioria de terras distantes, Trás-os-Montes, Beira Alta, etc. Muitos chegavam jovens e tinham baixo índice escolar. Alguns, poucos, até casaram na terra e aqui fixaram residência.

Os postos ofereciam condições mínimas de habitabilidade permanente para o corpo, principalmente para os jovens guardas, que não tinham família constituída. Outros alugavam casa na localidade, botavam horta e tentavam viver normalmente com a sua família.

A vigilância do território era feita a pé, normalmente por patrulhas de dois, percorrendo longas distâncias e focavam-se nas áreas mais sensíveis, principalmente em encruzilhadas, pontos altos e passagens mais ou menos conhecidas, onde fosse possível controlar alguns dos caminhos que se dirigiam à Galiza.

A apreensão dava um processo burocrático, uma multa e por vezes cadeia. Os produtos eram retidos e leiloados. Os guardas recebiam uma parte da verba. Da fama que ficavam com alguns também não se livram.

Mais tarde vigiavam as estradas onde tinham de passar os camiões de gado e bananas. Nesta altura recebiam quantidades chorudas, apesar de muitas vezes serem enganados, principalmente nas quantidades. Taxavam à cabeça, ao quilo ou à “passagem”. Recebiam em grupo ou individualmente, conforme a patente ou o peso junto dos contrabandistas. Alguns construíram “casas de emigrantes” e todos melhoraram as suas vidas, neste período de transição pós 25 de Abril.

Ao contrabando familiar pouco ou nada ligavam, no entanto, o povo ainda se escondia deles como do lobo, com medo que lhe apreendessem o azeite, o bacalhau, o polvo do natal, o pimento e outros bens apreciados no consumo da casa.

O povo nunca gostou de guardas. Alguns deles eram maus e ganharam fama disso. O Zé Carteiro dos anos 50/60, era disso exemplo. Parece ser mesmo perverso. Maltrata os galegos, bata-lhe e tira-lhe o contrabando. Muitos destes homens são pobres coitados que tudo temiam.

Apesar de serem funcionários públicos (sem grandes privilégios), eram descriminados localmente e colocados em nível social inferior. Em Castro Laboreiro toda a gente tinha o seu bocado de terra e os homens havia séculos que emigravam.

Os guardas na sua maioria eram considerados mandriões, e gente a evitar.

 

Boletim Cultural nº 8

Melgaço 2009

 

Eu privei de muito perto com o Zé Carteiro. Morávamos na Vila de Melgaço, porta com porta. O Zé Carteiro era um homenzarrão de 1,90 metros de altura, 120 ou 130 quilos de peso, quase todo careca. As mãos pareciam umas barbatanas de natação. Era casado com a Ritinha, poveira de nascimento, 1,60 metros de altura, 50 quilos de peso. O homem era um monstro, não só de aparência como de espírito. Quando li a referência feita pelo Dr. Américo a este energúmeno, na minha cabeça rebentaram os gritos de dor da Ritinha das coças que levava. A besta chegava, batia, comia e ia dormir. Amanhã é outro dia, mais do mesmo. Volta e meia recebia em casa visitas de rapazes, na casa dos 20 anos, que vim a saber serem filhos dele. A tática do fdp era: a carga ou as cuecas. Eram uns dois ou três e vinham de diferentes partes do concelho.

Um fim de tarde, teria eu os 6 anos de idade, rebenta guerra brava na casa do Zé Carteiro. Aos gritos da Ritinha, lá acudiram as vizinhas a tentar botar água na fervura. Desta vez a Ritinha era acusada de ter deixado queimar o bolo que cozia na pedra da lareira. As vizinhas diziam que não, não está queimado e ele gritava o contrário quando se vira para mim e grita – prova aí Ilídio. Dei uma dentada no bolo e disse – está queimado e bem queimado. Coitada da Ritinha, nesse e em todos os outros dias.

Pelos meus 12 anos fui passar 2 semanas a uma quinta, em Nine, que ele dirigia. Não tenho palavras para descrever o local, só sei que cheirava a riqueza antiga. O dono tinha que ser muito rico. Chamava-se Manuel Domingues, o Mareco.

Ilídio Sousa

 

CONTRABANDO DE CAFÉ EM CASTRO LABOREIRO

melgaçodomonteàribeira, 04.06.22

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castreja - 1907

CONTRABANDO EM CASTRO LABOREIRO

 

Comecemos pelo tabaco e com o exemplo de Castro Laboreiro, precisamente para o período dos finais dos anos sessenta e durante toda a década de setenta, época identificada por um movimento intenso em direcção a Espanha.

Transportado para a costa em pequenos barcos, que em autêntica cabotagem, o distribuíam pelo litoral e, em situações particulares, nas próprias margens do rio Minho. Uma vez recolhido nos camiões, que circulavam em vias pouco frequentadas, em terra batida, transpunham Melgaço, para através do vale do Trancoso atingirem Castro Laboreiro, onde as mulas o transportavam a vários sítios da fronteira em direcção a Espanha.

Se o comércio do tabaco adquiriu notoriedade, nomeadamente, no planalto castrejo, o movimento de maior impacto teria sido, sem sombra para dúvidas, o relacionado com a transacção do café, cuja importação, desde sempre, foi dificultada pelas autoridades espanholas.

Embora o fluxo fosse intenso e sensivelmente constante, a travessia do limiar político era efectuado, sempre a pé, em pequenas quantidades, pois o cheiro activo que exarava traía o processo mais suis generis utilizado pelo transportador.

Mas, quando na década de sessenta a torrefacção passou a efectuar-se em localidades espanholas, como Ourense, iniciou-se um novo ciclo, em virtude do café em cru, ou seja, não torrificado, não exarar cheiro e, portanto, ser muito mais fácil iludir as autoridades fiscais.

Este facto coincide com o aumento da produção em Angola e a abertura de novos acessos, principalmente em Espanha, pelo que, se por um lado, os “passadores” a título individual proliferaram, por outro, implementaram-se novos esquemas, com o predomínio dos “patrões locais”, que em coordenação com os principais gestores sediados em Lisboa e em Ourense, faziam chegar à fronteira camiões de grande porte carregados com toneladas do produto, que se armazenava, enquanto se aguardava pelos momentos mais oportunos para que grupos de homens, lusos e espanhóis, a pé, fizessem o seu transporte, através da fronteira em direcção ao país vizinho.

O negócio do café envolveu a grande maioria dos limianos de raia, pelo que desde as mulheres e homens galegos e lusos, a título individual, ou, debaixo de ordens do “patrão”, aos donos de tendas, que acompanhavam as suas mulas e os seus homens, quer até aos marcos da fronteira, quer até aos comércios, ou, então, aos bandos de homens oriundos de Xinzo de Limia e Celanova que, durante anos, a pé, transportaram muitos milhares de toneladas, incrementando-se, assim, um fluxo que se iniciava na região de Lisboa, para terminar nas torrefacções espanholas, ou, talvez melhor, no consumidor individual.

 

LIMA INTERNACIONAL: PAISAGENS E ESPAÇOS DE FRONTEIRA

Volume I

Elza Maria Gonçalves Rodrigues de Carvalho

Tese de Doutoramento em Geografia

Ramo de Geografia Humana

Universidade do Minho

Instituto de Ciências Sociais

Julho de 2006

 

CONTRABANDO EM MELGAÇO POR ALBERTINO GONÇALVES II

melgaçodomonteàribeira, 22.01.22

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(continuação)

Os ganhos dos pequenos contrabandistas não davam para conquistar as boas graças das autoridades. Sobre eles incidia, precisamente, o seu zelo. Não lhes perdoavam uma galinha e por uma bagatela eram autuados. Mesmo assim, num ou noutro ano, o volume das apreensões não bastava para mostrar serviço às instâncias superiores. Nestas circunstâncias, a fazer fé em vários testemunhos, os principais contrabandistas chegaram a quotizar-se cedendo as mercadorias necessárias para que a “colheita” dos guardas locais conseguisse encher ou tapar os olhos às administrações centrais.

As memórias do contrabando costumam encantar-nos com narrativas que parecem retiradas de romances picarescos: as mil e uma artes de ludibriar as autoridades, as reacções de esperteza face a desafios imprevistos, a passagem de camiões desmontados nas pequenas embarcações do rio Minho, as solidariedades espontâneas ou as bizarrias de um companheiro, Mas existe uma outra face que espreita por entre estas palavras. O contrabando implicava uma vida de risco, de esforço e de sacrifício. As cargas eram pesadas e mal jeitosas. Uns não se davam bem com o sabão, outros com a chapa, outros com os couros, outros com a amêndoa, outros, ainda, com a tripa. Os sustos de outrora ainda agora arrepiam: uma turbulência no rio escuro ou a intercepção brusca de um agente da PIDE. Apesar da boa organização e do estreiro entendimento com as autoridades, não deixava de haver apreensões, multas, dívidas, humilhações, perseguições, prisões e, até, mortes. Mulheres foram encarceradas em cadeias tão distantes como a de Orense. As mortes no rio Minho, às mãos da natureza ou das autoridades, portuguesas ou espanholas, não eram raras. Atente-se na notícia que segue, publicada na década de 1950 num jornal de Melgaço:

Aparecimento de cadáver – Em 27 do mês findo, apareceu na Valinha, a boiar nas águas do rio Minho, o cadáver de José Fernandes, mais conhecido pelo “Zé do Diabo”, de Penso, que uns quinze dias antes, quando pertendia passar uma pequena porção de café para a Galiza, foi abatido a tiro pelos carabineiros.

Uma entre muitas tragédias. Por exemplo, dois jovens foram mortos a tiro, vítimas, segundo testemunhos, de uma denúncia que os descreveu, ao arrepio da verdade, como perigosos e armados. As denúncias, as ganâncias, os conflitos e as rivalidades também eram fruto da época. Acrescente-se que havia quem se sentisse, directa ou indirectamente, prejudicado nos seus negócios, por sinal legais, com os efeitos do contrabando. A memória desses tempos tem sombras.

O contrabando é uma actividade oportunista que tira partido das vicissitudes da fronteira. Constitui, portanto, um fenómeno bastante instável. Depende do muito que acontece, perto e longe, em Espanha, em Portugal e na relação entre os dois países. O mundo do contrabando é feito de mudança. Em poucos anos, sofre transformações radicais. Ora é mais num sentido, ora se inverte. Um dado produto, como o azeite, ora vai, ora vem. Tal produto ora dá, ora deixa de dar, ora volta a dar. Uma fase, como a do gado, sucede a outra, como a do café. Entretanto, os locais privilegiados de passagem deslocam-se do rio Minho para a raia seca. As vacas, antes “cordeadas” através do rio, caminham, agora, pelos planaltos. Num canto, fecham-se as pequenas lojas, no outro, proliferam as garagens para estacionamento de gado. Mudam os próprios protagonistas: os “patrões”, os “lugar-tenentes”, os “transportadores”, os fornecedores e os clientes deixam de ser os mesmos.

Qualquer reflexão sobre os efeitos do contrabando ganha em atender a estas alterações, tornando-se sensato admitir que a épocas distintas podem corresponder realidades e consequências distintas. No que me diz respeito, vou-me cingir, em jeito de conclusão, a um breve apontamento genérico.

O balanço dos efeitos do contrabando suscita um consenso bastante alargado. Apesar de lucrativo, o negócio do contrabando gerou poucas riquezas. E estas, tal como os filhos, acorreram às cidades e às áreas metropolitanas. O investimento produtivo local resultou deveras escasso (insisto no facto de o contrabando ser uma actividade económica oportunista e, como tal, poder estar pouco vocacionada para o investimento produtivo racional). O contrabando não sustentou a descolagem do desenvolvimento económico local, mas garantiu a sobrevivência condigna a uma população ameaçada pela miséria.

Esta espécie de balanço global não deve, no entanto, menosprezar o impacto local do contrabando. Basta percorrer a paisagem para o sentir. Antes da quebra recente, vários “oásis” do contrabando, como S. Gregório (na freguesia de Cristóval), eram animados por um rodopio de pessoas em busca de algum negócio ou de alguma oportunidade. Entretanto, a azáfama desertou, os comércios fecham, as propriedades vendem-se e a população diminui.

Convém não dissociar o contrabando da emigração. Por um lado, como reparou um entrevistado, ‘’mal o contrabando dava sinais de esmorecer logo a emigração recrudescia. Todos os dias, partia alguém.’’ Por outro lado, o contrabando, tal como a febre do volfrâmio, preparou o terreno para o surto emigratório dos anos 1950 e 1960. Ambos contribuíram para retirar parte da população da rotina do trabalho agrícola. Independentemente desta ou daquela lufada de prosperidade, ambos acalentaram ambições, abriram expectativas e alargaram horizontes. Uma vez dado o passo, ninguém concebia regressar ao antigamente. O volfrâmio e o contrabando propiciaram, também, vivências, conhecimentos e relações passíveis de mobilização noutros contextos e noutras paragens. Proporcionou-se, em suma, um sentimento de inquietude com asas de esperança, uma das molas mais decisivas da emigração. Não é, certamente, por acaso que Melgaço primou, ao nível do país, tanto pelo contrabando como pela emigração. E, cada um a seu modo, ambos semearam a realidade actual.

 

contrabando albertino.pdf

repositorium.sdum.uminho.pt

http://hdl.handle.net/1822/36693

CONTRABANDO EM MELGAÇO POR ALBERTINO GONÇALVES I

melgaçodomonteàribeira, 15.01.22

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dr. albertino gonçalves homenageado pela cmm

 

CAMINHOS DE INQUIETUDE.

A ORGANIZAÇÃO DO CONTRABANDO NO CONCELHO DE MELGAÇO

 

ALBERTINO GONÇALVES

PROFESSOR ASSOCIADO DO DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA E INVESTIGADOR DO CENTRO DE ESTUDOS COMUNICAÇÃO E SOCIEDADE, AMBOS DA UNIVERSIDADE DO MINHO.

 

Desde que há memória, o contrabando sempre constituiu, a par da emigração, uma das actividades económicas mais importantes da população de Melgaço. Mobilizou todo o tipo de pessoas: carenciados e remediados, homens e mulheres, adultos e crianças.

A figura da mulher contrabandista é consagrada em vários textos literários. Recorde-se, por exemplo, o conto de Miguel Torga, “A fronteira” (Novos Contos da Montanha, 1944), dedicado ao amor dilacerado entre um guarda republicano e uma mulher contrabandista. As mulheres ajudavam nas cargas, por vezes, tanto quanto os homens. Algumas ocuparam lugares destacados nas redes de contrabando e da emigração. E alguns dos processos mais volumosos arquivados no Tribunal da Comarca de Melgaço dizem-lhes respeito. Muitas entregavam-se ao pequeno contrabando, por conta própria, de ovos, galinhas, café e outras mercadorias. Recorriam, inclusivamente, a peças de vestuário adaptadas para disfarçar o transporte.

Quanto à participação das crianças, os próprios professores se queixavam das faltas às aulas por motivo de trabalho no contrabando. O seguinte ofício, de 2 de Junho de 1941, dirigido ao Director do Distrito Escolar de Viana, é, a este propósito, deveras elucidativo:

Tenho a honra de comunicar a V. Exa. que, como o demonstra o mapa mensal referente a Maio, a frequência média da 3ª classe desceu de 33, em Abril, para 27. A causa desta anormalidade filia-se na razão de os pais de muitas crianças as mandarem para a “frota” - por que é conhecido o contrabando de ovos e sabão para a Espanha. Tenho empregado os maiores esforços desde o pedido servil até à intimidação, mas como os lucros são fabulosos – uma criança chega a ganhar por dia 30 e 40$00, e a miséria é grande, nada tenho conseguido. Sei que não é esta escola a única a sentir estes perniciosos efeitos do contrabando, pois o mal é geral.

Nos picos do contrabando, todos os braços eram, efectivamente, poucos! Os homens acorriam de longe, desciam as montanhas para locais como o Peso, face a Arbo, onde ficavam à espera da próxima carga ou descarga, normalmente nocturna, para ganhar algumas “senhas”. Era, de facto, costume os transportadores receberem senhas em função das cargas, senhas que trocadas, nos dias seguintes, por dinheiro. Ainda recentemente foram descobertos, num cofre privado, alguns blocos com senhas que sobraram desses tempos.

Melgaço é um dos concelhos portugueses com maior proporção de fronteira: três quintos do território confinam com a Galiza, num percurso que se estende por 61 Km: 22 Km de fronteira terrestre e 39 de fronteira fluvial (incluindo os 19 Km correspondentes ao rio Minho). O traçado e a extensão da linha de fronteira, associados à intensidade e à diversidade do contrabando e da emigração clandestina, justificaram que Melgaço tivesse a maior secção da Guarda Fiscal de todo o Vale do Minho. Em 1961, serviam, neste concelho, 2 sargentos, 16 cabos e 74 soldados distribuídos por 17 postos.

Neste contexto, o contrabando, para ser bem sucedido carecia de boa organização. Havia vários “patrões” do contrabando. Alguns juntavam-se constituindo uma espécie de consórcios, como, por exemplo, o do “Eixo” composto por meia dúzia de “patrões”. Havia os lugar-tenentes, homens de confiança que se destinguiam tanto pela sua capacidade como pela sua lealdade, os capatazes, os condutores, os bateleiros, os transportadores, os informadores… Mais os fornecedores, os intermediários e os clientes. Para além dos recursos humanos, eram ainda necessários meios logísticos: barcos, carros e camiões, para o transporte; meios de comunicação (por exemplo, radiotransmissores); armazéns e esconderijos (visíveis em muitas casas construídas nos anos de 1950 e 1960). Algum investimento em negócios de fachada também era conveniente para encobrir e branquear a actividade do contrabando. Tão pouco podiam faltar os meios financeiros. A candonga e o mercado negro atingiram dimensões extrordinárias. Multiplicaram-se os postos de câmbios. Devido à emigração e contrabando, Melgaço desfrutava, em 1975, de uma das melhores coberturas bancárias de todo o País.

Tamanha complexidade não impedia que as redes de contrabando fossem ágeis e flexíveis, capazes de responder, de imediato e sem falhas, às urgências e pressões do momento: um carregamento imprevisto, uma alteração do plantão da guarda, uma troca de itinerário ou a trasladação da mercadoria de um armazém para outro ditada por uma ameaça de busca…

De qualquer modo, dois ingredientes permaneciam cruciais para o sucesso do contrabando: a confiança recíproca e o saber prático. Interdependentes, os “trabalhadores do contrabando” tinham que confiar uns nos outros, fosse qual fosse o lado da fronteira. Era um jogo muito sério em que competia a cada um (chefe, fornecedor, cliente, transportador, informador e, até, vizinho) comportar-se segundo as expectativas, ou seja, em conformidade com os seus comprimissos e as suas responsabilidades. Caso contrário, a cadeia rompia-se e, sem ela, pouco ou nada se conseguiria. É certo que, aqui e além, sobrevinham pequenos abusos e algumas picardias. Contam-se, por exemplo, histórias de água nos odres de azeite e de excesso de peso nas amêndoas humedecidas. Nada, porém, que ultrapassasse os limites ou fizesse perigar a continuidade do negócio.

O saber prático, transmitido de geração em geração ou conquistado pela experiência, orientava, por sua vez, as decisões e as acções quotidianas, referindo-se aos produtos, ao rio, à metereologia, aos trilhos, aos animais (evitar, por exemplo, o ladrar dos cães) e às pessoas. Saberes que davam azo a uma linguagem própria. Sob risco de esquecimento e de perda irrevogável, urge recolher e estudar os contornos e os conteúdos destes saberes inerentes à lide do contrabando.

Toda esta panóplia de recursos, de posturas e de saberes de pouco serviria sem a conivência das autoridades. Importava assegurar e custear a sua cumplicidade. Cobravam à carga ou, mais raro, ao mês. Era, assim, normal a peregrinação de guardas fiscais pelas casas dos “contribuintes” ou, então, a sua presença, discreta mas vigilante, durante o despacho “contabilizado” das cargas. Nem todos os guardas aceitavam colaborar. Dos mais renitentes se ocupavam os próprios colegas. Nas rondas, sempre aos pares, um vigiava o outro. Na primeira ocasião, eram destacados para postos, como, por exemplo, o da Ameixoeira, em Castro Laboreiro, onde o incómodo resultava menor.

Mas o transporte das mercadorias não se confinava à linha de fronteira. Alguns produtos vinham de Lisboa e destinavam-se a Madrid. As pessoas abasteciam-se de ovos nas feiras de Ponte de Lima. Os fornecedores de café estavam sedeados em Braga, no Porto e em Lisboa. Por detrás do ouro e da prata estavam bancos nacionais. Os fios da rede era de tal ordem que, segundo consta, houve períodos em que o comboio parava ou abrandava antes de chegar às estações, como, por exemplo, a da Frieira, para receber ou largar mercadoria. A simples consulta de processos arquivados nos tribunais, minuciosamente instruídos pela PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado), elucida-nos sobre quão extensas e labirínticas podiam ser as malhas do contrabando e da emigração clandestina. Boa parte das apreensões de contrabando não era feita nas imediações da fronteira mas nas estradas que ligavam ao Porto ou a Vigo. Era, por isso, imperativo “trabalhar” as autoridades a montante e a jusante.

 

(continua)