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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, MEMÓRIA E FRONTEIRA

melgaçodomonteàribeira, 21.12.24

930 b museu memória e fronteira (10).jpg

MEMÓRIA DO CONTRABANDO E EMIGRAÇÃO CLANDESTINA EM MELGAÇO:

PATRIMONIALIZAÇÃO E MUSEALIZAÇÃO

MUSEALIZAÇÃO: O CASO DO MUSEU MEMÓRIA E FRONTEIRA

Lídia Aguiar

CIIIC-ISCET

A influência dos fenómenos abordados (Contrabando/Exploração de Volfrâmio/Emigração Clandestina) foram marcantes na sociedade local, pelo que a autarquia, em Abril 2007, entendeu criar e abrir o museu Memória e Fronteira. Por ele pretende representar as vivências de que são feitas as memórias da sua população, mas que igualmente contribuíram para uma nova cultura e identidade.

Reconstruído e ampliado o antigo matadouro, nasceu este núcleo museológico, que desde logo ganha sentido pela sua localização num sítio/território de grande carga simbólica. Junto ao ribeiro que atravessa a vila, simboliza logo a fronteira fluvial (Esteves, et al., 2007).

É objetivo deste equipamento cultural musealizar todo um património (material ou imaterial), baseado nas vivências do contrabando e da emigração clandestina, pelo que o espólio patente ao público assenta nos depoimentos de quem experienciou estas atividades e em documentos: processos de apreensão, autos de contencioso aduaneiro, cartas de chamada, correspondência institucional. Destaca-se a grande colaboração da população que doou ao museu fotografias pessoais da época, cartas particulares e mesmo uma batela que tantas vezes atravessou o rio Minho transportando todo o tipo de contrabando.

Foi criado neste Museu um espaço, com dois pisos, que se articulam através de uma rampa, onde se podem apreciar as várias temáticas relacionadas com a emigração clandestina. No primeiro, um auditório possui alguns filmes com “histórias de vida” contadas na primeira pessoa, relacionadas com toda a temática do museu.

O piso inferior está vocacionado para descrever o fenómeno do contrabando, podendo-se apreciar réplicas de produtos contrabandeados, algum vestuário e artefactos associados a esta temática.

O museu Memória e Fronteira permite a compreensão do significado destas atividades para o concelho de Melgaço, bem como proporciona a oportunidade de musealizar e patrimonializar as memórias devidamente preservadas das populações melgacenses.

Ilustra ao mesmo tempo, um processo significativo de institucionalização de bens culturais (bens históricos e simbólicos), isto é, de patrimonialização e musealização em que a história recente é recriada e contada não só através de documentos escritos, mas também de memórias e testemunhos.

 

Desde tempos remotos, os melgacenses souberam tirar partido das vantagens que a raia lhes oferecia. A atividade do contrabando, intrinsecamente ligado à fronteira, ora se torna obstáculo ora se oferece como oportunidade. Pão, ovos, café, tabaco e muitos outros produtos passaram pela mão de contrabandistas, ora inseridos em consórcios, ora trabalhando isoladamente.

Mas quando surgiu a nova oportunidade de explorar o minério, tão valioso em tempo de guerra, como foi o volfrâmio, muitos deles não se pouparam a esforços e conseguiram alcançar rendimentos até aí nunca obtidos. Como se demonstrou continuaram caminhando, agora rumando à Europa, designadamente a França. Melgaço, tem, por isso, na sua identidade das marcas profundas de um povo itinerante.

Constatou-se, deste modo, a importância de recolher e preservar as memórias deste povo, para bem das gerações futuras, para conhecimento de todos os que visitam o Concelho e o que querem compreender e vivenciar com autenticidade. O museu Memória e Fronteira é atualmente o único representante destas identidades. Impõe-se alargar o seu espólio, aumentar a recolha de histórias de vida, pois “cada ser humano que morre é uma biblioteca que arde”, como sempre afirma o sociólogo Albertino Gonçalves.

REVISTA CIENTÍFICA DO ISCET

PERCURSOS % IDEIAS

Nº 7 – 2ª SÉRIE

2016

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emigrantes clandestinos naturais de melgaço

FELIZ NATAL

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MELGAÇO, HISTÓRIAS DE VIDA III

melgaçodomonteàribeira, 05.10.24

937 c 80--Foz do Rio Trancoso.-105.JPG

foz do rio trancoso

OS PATRIMÓNIOS ALIMENTARES NAS ROTAS DO CONTRABANDO

Lídia Aguiar

Através de mais esta história de vida se pode confirmar a distribuição dos patrimónios alimentares desde a fronteira até às grandes cidades. Clarifica-se, também, a colaboração dos guardas fronteiriços e dos problemas que começavam a surgir quando os camiões se afastavam geograficamente das zonas de fronteira para se dirigir nomeadamente à cidade do Porto, apesar de levarem sempre batedores a verificarem se a estrada estava livre. Porém, as autoridades longe da fronteira já não tinham a mesma conivência com estas redes. Contudo, quando se entrou em contacto com um patrão espanhol com uma grande rede montada em Portugal, logo se percebeu que não seria bem assim:

Aqui o contrabando passava tudo pelo Trancoso. O café foi a primeira mercadoria mais importante. Nós depois vendíamos tudo para Ourense. Eu trabalhava muito com o Mareco de Portugal. Tinha todas as noites muitos homens aqui a carrejar para os camiões. Numa só noite carregava uns 20 a 30 mil quilos de café.

Daqui para lá cheguei a mandar amêndoa e muita pescada. Nem imagina os camiões de pescada que eu mandei. Cada camião de 20 mil quilos dela e não ia só um por noite. Era os do Eixo que me compravam.

Aqui só se vivia do contrabando. E os guardas também viviam do mesmo, recolhiam a nota e marchavam, tanto os portugueses como os espanhóis. Aqui não se vivia de outra coisa, era a única indústria que existia. Aqui costumava-se dizer que “todos os porcos gostavam de farinha”.

Agora já morreram quase todos, do lado de cá estou eu e um moço que mora ali adiante. Dos portugueses acho que morreram todos. Espere, acho que ainda é vivo o João da Esquina, mas que foi morar para o Porto.

Henrique Piña – Notaria – Galiza – 18-2-2014

O senhor Henrique sempre viveu em Notaria, Espanha, geograficamente situa-se, também, na margem do rio Trancoso, bem ao lado do Posto de Fronteira de S. Gregório, este, do lado de Portugal. Como se pode verificar as grandes redes sabiam como ultrapassar mesmo longe das fronteiras. Pelas quantidades que são referidas pode-se concluir que tudo era vendido nas grandes cidades, com larga predominância na cidade do Porto.

Quem finalmente nos esclarece sobre esta questão, sem deixar qualquer dúvida como era possível fazer seguir os camiões até ao seu destino é a descrição seguinte:

(…) Também cheguei a andar com o meu carro a abrir caminho aos camiões que iam carregados. Tentava-se ir pelas estradas da serra, mas uma vez mandaram-me parar; viram-me os documentos, abriram-me a mala, o capot do carro, já estava a ferver:

- Querem que eu vire o carro?

Lá me mandaram embora, mal cheguei à frente dei a volta e voltei no sentido contrário, tinha de avisar os camiões. Mandaram-me parar outra vez:

- Então o senhor volta para trás?

- Ora essa, eu vou para onde quero, ou é proibido?

Lá me deixaram ir. Toca de abrir a toda a velocidade para avisar os rapazes que vinham nos camiões. Todos se esconderam como podiam para os montes. Um, coitado, entrou lá num sítio tão apertado que nem podia abrir as portas. Era vê-los a fugir que nem ratos, coitadinhos. Mas o jeep que viera atrás de mim ainda apanhou alguns, mas foi fácil, umas notitas e tudo se resolveu, tinha de ser.

José Avelino Castro – Alvaredo – 10-12-13

A história de vida do senhor Avelino está recheada de memórias do contrabando. Impossível aqui transcrevê-las todas, fica, no entanto, a nota, embora já falecido, deixou o seu testemunho de vida gravado em vídeo e representa na atualidade um instrumento fundamental para a recuperação de rotas do contrabando, muito em particular a rota do café, pelo rio Minho. Foi, ainda, fundamental na ajuda que prestou às mulheres contrabandistas que arriscavam a vender os produtos alimentares. Deslocavam-se a Espanha para os comprar e depois vendiam porta a porta em várias áreas de Melgaço.

Comecei com 29 anos, logo que me casei. Ia eu e mais umas colegas a Espanha, trazíamos umas coisitas que depois andávamos a vender pelas portas. Era muito longe. Era mesmo um contrabando de subsistência. Quando acabava aquela carga lá íamos buscar mais. Outro trabalho não havia, aqui não havia fábricas nem mais nada, além da lavoura que se fazia para o gasto da casa. Trazia então, chocolates, bacalhau, arroz, umas bolachas de baunilha. E era muito fácil vender cá, porque nem toda a gente lá ia, pois que julga, isto era trabalho para pessoas que não tinham medo à vida, aí que levávamos cada corrida dos guardas!

Lá em cima em Alcobaça, já se via bem ao longe e logo os víamos, havia que esconder no meio dos tojos e das giestas e fugir pelos carreiros. Por vezes fazíamos mais quilómetros só para fugir deles, não era nada fácil a vida. Nós não lhe pagávamos, porque o nosso ganho não dava para repartir com eles, como faziam os grandes patrões, para isso o nosso contrabando não dava não. Mas devo dizer que mesmo nos guardas havia pessoas compreensivas e boas. Por vezes alguns mandavam a gente não andar na estrada, para não os comprometer.

Assim este contrabando foi dando para sustentar a casa e criar os filhos.

Emília Domingues – Cousso – 7-1-2014

Emília Domingues representa a emergência da mulher no contrabando. Alheias às grandes redes, iam por conta própria e vendiam a quem lhes encomendava, pois como ela própria afirma, ir a Espanha era na altura para quem tinha coragem. No período de verão, as encomendas aumentavam, fruto dos hóspedes que se alojavam nas termas de Melgaço e ansiavam por chocolate espanhol ou pelas bolachas baunilha, inexistentes em Portugal nessa época. Era pelas lavadeiras de roupa dos hotéis que estas mulheres faziam chegar estes produtos tão ansiados a quem vinha das grandes cidades.

Era lavadeira, lavava a roupa dos hóspedes dos hotéis. Onde eu levava o contrabando era no meio da roupa lavada dos hóspedes. Eu lavava no rio Minho, comprava a mercadoria às contrabandistas e vendia um pouco mais caro aos hóspedes, a diferença era o meu ganho. A minha mãe ia à raia, levava ovos, café. O meu pai fora para Buenos Aires e deixou-a. Também ajudei a cordear café, aqui no rio Minho, para Espanha. Foi assim que ajudei a minha mãe a ir sustentando a casa.

Graças a Deus tive sempre sorte, quer no trabalho de lavadeira quer nos negócios de contrabando. Naquele tempo bem se governava a vida. Era uma alegria.

Maria Martins – Peso – 14-11-2013

Através da história de vida de Maria, contata-se o engenho e a arte das mulheres em fazer chegar os produtos de contrabando aos seus clientes. Todos ficavam a lucrar e encaravam a vida com maior alegria.

Chegados às grandes cidades, nomeadamente no caso do Porto, conseguiu-se uma entrevista que nos explicou o difícil circuito nesta cidade. Áurea, foi morar para a então vila de Valongo, a cerca de 15 km da grande cidade, com os seus padrinhos, em casa alugada, por cima de o que na década de 50 do século XX se designava de “loja”.

Foi aí que conheceu a D. Maria, dona da “loja”, mulher de grande despacho e empreendedora. Para ali se tinha mudado, após o falecimento do marido, tendo ficado a cuidar de três filhos. Abandonou a mercearia da Foz do Douro, na rua Padre Luís Cabral, repleta de bons clientes e foi morar para Valongo, terra de mineiros e de pão.

A necessidade de criar os seus três filhos, obrigou-a a procurar um lugar mais discreto para receber as mercadorias que lhe chegavam dos contrabandistas da fronteira. E recebia de tudo. Bacalhau, bom óleo, passas, arroz, farinha branca. Daqui enviava aos clientes da Foz do Douro, que, entretanto, tinham deixado as encomendas na mercearia da Foz que ficara ao cuidado do seu irmão. Por outro lado, Valongo começava a crescer industrialmente, pelo que aí criou outro ciclo de clientes, nomeadamente padeiros, ansiosos por aceder à farinha branca para cozer o pão de boa qualidade e que grande procura tinha.

Ahh, como ainda me lembro de ir buscar a regueifa bem quentinha!!! Entregavam pela janela e depois era sempre a correr pela rua acima.

Áurea Meireles – Valongo – 22-11-2014

Finalmente consegue-se perceber que as pequenas mercearias eram as grandes distribuidoras dos patrimónios alimentares nas grandes cidades. Porém, como D. Maria faria entrar as mercadorias na cidade a partir de Valongo, continua a ser uma incógnita. Sabe-se que ela poderia usar o comboio, ou uma camionete de carreira. Os meios de transporte chegavam ao centro da cidade do Porto. Mas, no entanto, deve-se relembrar que nesses tempos a cidade tinha postos próprios de cobrança de impostos nas principais entradas da cidade. Daí que nos afigura que alguma artimanha existiria que, com a sua morte, não mais foi possível desvendar.

Através de diversas entrevistas e conversas que se proporcionaram pelo trabalho de campo que se desenvolveu no concelho de Melgaço, sabe-se que um supermercado, na esquina da rua Sá da Bandeira, no Porto, há muito encerrado, era propriedade de um dos grandes patrões do contrabando, que assim constituiu, ele mesmo, a sua rede de distribuição na cidade.

Na realidade esta rede de patrimónios alimentares contribui, para que as populações da raia tivessem acesso a um rendimento suplementar, sendo que em simultâneo, foi a única forma que as populações das cidades, com poder de compra, acedessem aos produtos, sendo que se viveu épocas de grandes carências, em que as importações, fruto da ditadura instalada, estavam muito limitadas.

   laguiar@iscet.pt

Revista Turismo & Desenvolvimento

Nº 33

2020

937 b 16-Cevide - Vista da Frieira, Espanha.-26.JP

cevide vista da frieira (galiza)

 

MELGAÇO, HISTÓRIAS DE VIDA II

melgaçodomonteàribeira, 28.09.24

936 c 13-S. Gregório com vista sobre A Notária e

s. gregório com vista sobre a notária e frieira (galiza)

OS PATRIMÓNIOS ALIMENTARES NAS ROTAS DO CONTRABANDO

Lídia Aguiar

A D. Glória Pires transporta-nos para uma dupla realidade. A que ela própria viveu e a que se lembra de o pai ter praticado como grande contrabandista, na passagem de café para Espanha, ainda no tempo da Segunda Guerra Mundial. Nesta fase, por Cevide, pode-se afirmar que os patrimónios alimentares passados para Espanha foram dos mais variados, dadas as carências que o país vizinho vivia.

O marido de D. Glória contrabandeou gado, pela raia seca, pelo que ela nos informa que o gado que vinha era velho e o que ia era novo e de boa qualidade. A população sabedora que a boa carne ia para Espanha, acabava por a ir lá comprar, mesmo tendo de a contrabandear. Porém, o que mais enfatiza é a questão do pão, pois era obrigada a contrabandear, dado que o local onde habitava não tinha padeiro e do outro lado do rio, facilmente acessível se encontrava uma padaria, mas estava já em território espanhol. D. Glória, ainda no presente não compreende a razão de não poder comprar o pão à sua vizinha, de quem até era amiga, só porque estava do lado de Espanha. Revela-se aqui a identidade de fronteira, onde os territórios muitas vezes se confundem e as barreiras alfandegárias pouco ou nada dizem para quem vive na raia.

Este sentimento é comum nos dois povos da zona de fronteira e na linha cronológica em estudo. E isso o podemos confirmar através de quem praticou este ato até bem próximo da abertura das fronteiras. Atente-se na entrevista seguinte:

No tempo do contrabando, vinha muita gente comprar aqui na nossa loja. Tinham de passar a pé pelo rio (Trancoso). Levavam um pouco de tudo. Já foi nos 70/80 que começaram a ir as bananas, os figos, o bacalhau e o marisco. Nós comprávamos grandes quantidades e depois os portugueses mandavam vir os moços carregarem e levarem para lá, mas isso já não era connosco. Sei que levavam para Cevide, onde tinham a carrinha.

Aqui só passava alimentação. Os portugueses vinham e claro, depois tinham de passar a mercadoria pelo rio. A nossa loja esteve sempre orientada para Portugal. Também cá vinha muita gente no tempo de verão, os hóspedes das termas do Peso, e esses levavam muita coisa, faziam mesmo muitas compras. Eu também ia lá buscar o café. Aqui na loja sempre aceitei escudos e francos, pois tinha um senhor de Melgaço que vinha cá e me fazia o câmbio.

Mas as bananas foi mesmo a grande quantidade. Nós comprávamos e guardávamos no nosso armazém. Depois os portugueses é que as iam buscar para carregar pelo regato. Eram muitos rapazes. De Cevide sei que eles as distribuíam para as cidades como Porto e outras. Quem vinha a Cevide não era o grande patrão, era uma filha e dois empregados de confiança, que organizavam tudo.

Cada caixa pesava à volta de 12 quilos. Dependia da força de cada um. Uns levavam duas, outros três, mas havia quem levasse quatro. Amarravam-nas com umas cordas, pois quanto mais levassem mais ganhavam, pois eram pagos por caixa transportada. Começavam ao escurecer e andavam toda a noite a carregar. Os rapazes andavam todos contentes pois ganhavam algum bom dinheiro.

No tempo da fronteira fechada, isto aqui era muito movimentado. Só fechava a loja no dia 25 de Dezembro e no dia 1 de Janeiro. Para passar o regato o mais normal era porem uma árvore deitada e passarem por cima dela. Agora isto morreu. Os dois povos sempre se relacionaram. A fronteira, nada impediu. Aqui não há raças, não queremos saber se somos espanhóis ou portugueses. Claro que com a fronteira fechada sempre havia algum chato, mas nada nos impediu de nos sentir um só povo.

Isabel Fernandez – Frieira. Galiza – 22-1-2014

Isabel Fernandez, relata-nos um contrabando bem mais recente. Espanhola, moradora na Frieira, Galiza, onde ainda mantém a sua loja aberta, mas com uma frequência muito limitada, quando a compara com o negócio do tempo em que a fronteira estava fechada. Realça as boas relações entre os dois povos, que considera que sempre comunicaram como de uma só comunidade se tratasse.

É ainda significativo o seu conhecimento das rotas até às grandes cidades, nomeando a cidade do Porto, sabendo que era em camiões carregados em Cevide, que geograficamente se situa frente a Frieira, Espanha, do outro lado do rio Trancoso, precisamente onde se situa a sua loja.

A corroborar a sua afirmação, Antero, foi um dos que muita carga fez entre a loja da D. Isabel e os camiões em Cevide:

Eu trabalhei com as bananas, mas para o Mário da Corga. Esse era um grande contrabandista, mas também um grande senhor. Nos tratava muito bem e era muito justo a pagar e sempre nos tratou de uma forma muito humana. Era um grande senhor. Seríamos uns 30 homens a carrejar. A minha mãe com pena, lá ia com um caneco de limonada e ali se sentava a dar um copo de limonada a cada um que passava. Eu carregava no início da noite 6 caixas amarradas com uma corda, dava uns 75 quilos, estava com muita força, depois só trazia 50 quilos, ou seja, 4 caixas. Quantas mais caixas mais recebia.

Os guardas aí já eram mais livres. Pagavam-lhe um tanto por caixa. Então eles vinham no fim contar todas que estavam nos camiões, se ainda houvesse que carregar, também ajudavam, pois, mais caixas no camião, mais ganhos. No fim levavam o saco com o dinheiro, mais uma caixa de bananas ou bacalhau.

Antero Pires – Cevide – 23-1-2014

Com o testemunho de Antero, ficamos a saber que quem possuía os camiões eram contrabandistas de elevado poder financeiro, que contratavam rapazes novos para fazer o serviço duro de passar a fronteira com a mercadoria às costas. Neste caso, Antero, considera o seu patrão um homem justo, pois lhes pagaria um valor correto pelo serviço que praticavam. Constata-se igualmente que a guarda fiscal estava inserida nesta rede de contrabando. Porém, quando os camiões se afastam das zonas de fronteira torna-se difícil controlar as sucessivas brigadas que se encontra ao longo da estrada. Atente-se na seguinte entrevista:

Eu também ia trabalhar para os contrabandistas espanhóis, que esses pagavam bem melhor, apesar do caminho ser mais longo e sempre a subir. Trouxe para cá muita carne e azeite, sempre tudo ali pelo Trancoso.

O último contrabando que me recordo, assim forte, foi o das bananas. Eram toneladas por dia. Também veio muito gado, mas aí na minha opinião, ficamos a perder, pois vieram muitas vacas velhas e foram vitelos novos para lá.

As bananas eram grandes e boas. Nós carregávamos para um senhor de Penso que depois fazia a distribuição para Braga, Porto e outras cidades. Cada viagem correspondia a uma carrinha de 3500 quilos, o que dá muito perto de 300 caixas. Mas iam sempre várias carrinhas por noite. Era muita gente para carregar, o que dava dinheiro, aos contrabandistas, mas também aos cafés e ao comércio local, pois logo se gastava o que se ganhava, porque nós sabíamos que íamos ganhar mais.

Com a guarda só tivemos problemas na altura do tenente Zeca Diabo. De resto havia que por os homens a descansar, não sei se me compreende. As apreensões só se verificam de Ponte da Barca para baixo, de resto estava tudo controlado. Porque está a ver, eram muitas carrinhas que saiam daqui todas as noites e as pessoas começaram a falar e as autoridades a desconfiar, claro, começaram a mandar patrulhas para as estradas. Apesar de ir um carro à frente a abrir caminho, os guardas não saíam ao carro, porque repare, nas subidas as carrinhas tinham de engrenar terceira, quando não segunda, o que fazia imenso barulho e ao longe eles notavam logo. Assim nas subidas apanhavam-nos logo.

Também ouvi falar ao meu pai que o café até fazia parar o comboio espanhol para carregar. Penso que até o chefe da estação e o maquinista do comboio deviam estar metidos; mas disso só ouvi contar, mas sei que foi verdade, embora não seja do meu tempo. Não sei quantos sacos poderia levar cada batela, mas olhe que para carregar um vagon de um comboio, havia que trabalhar muitas horas da noite, imagino eu, pois que como não é do meu tempo nunca vi. Eu só usava as batelas para ir aos bailes a Espanha. Era normal ir a Notaria, a Espanha ao cinema, custava 5 pesetas. A verdade é que nos tempos livres passávamos mais tempo em Espanha do que do lado de cá. Ainda hoje tenho lá bons amigos.

A verdade é que no meu tempo a guarda já era mais conivente e por isso era tudo mais fácil. Por vezes faziam apreensões fictícias, eu próprio cheguei a ir à Alfândega levar 20 quilos de café, para depois passar toneladas para a Notaria. Era assim, agora é tudo livre, mas também não se ganha dinheiro.

José Abreu – Paços – 2014

    laguiar@iscet.pt

REVISTA TURISMO & DESENVOLVIMENTO

Nº 33

2020

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batela

 

MELGAÇO, HISTÓRIAS DE VIDA I

melgaçodomonteàribeira, 21.09.24

935 b Castro Laboreiro - Perto do Ribeiro de Baixo

montes laboreiro

OS PATRIMÓNIOS ALIMENTARES NAS ROTAS DO CONTRABANDO

Lídia Aguiar

Rosalina, pacatamente, fazia renda na biblioteca de Castro Laboreiro. Com 77 anos, para lá se desloca nos dias frios de inverno, já que em sua opinião, aí está mais quentinha. Fez questão de dar o seu testemunho, frisando bem que nunca foi contrabandista, embora, como todos os habitantes desta freguesia, foi muitas vezes às compras a Espanha, tendo por isso sido vítima da violência dos guardas, principalmente dos carabineiros. Sublinhou que quando ia nunca retornava pelo mesmo caminho. Era uma questão de segurança, a guarda podia ter visto ela a passar para Espanha e aguardar o seu regresso. Deste modo, quando encetava a volta a Castro Laboreiro escolhia um caminho alternativo.

Eu nunca fui contrabandista pois tinha muito que fazer nos campos e que tratar do gado. Mas claro que ia a Espanha comprar umas coisitas que nós procurávamos sempre o mais barato. Lembro-me bem do azeite, que era mais óleo, aquilo até era branco, mas era barato. Lá íamos então ao Pereiro, à Luísa, vinha em latas de 5l, se nos apanhavam tiravam-nos as coisitas e os guardas espanhóis ainda nos batiam.

(Rosalina Fernandes – Castro Laboreiro – 20-10-2013)

A D. Rosalina indica-nos que nunca entrou em grandes rotas de contrabando. Praticou o ato para sustento da sua própria família. Era hábito as mulheres juntarem-se em grupo, para mais facilmente se furtarem ao controlo das autoridades das fronteiras.

Isolina da Luz, também abrigada do frio na biblioteca de Castro Laboreiro, entra na conversa:

Eu só trabalhei no do gado e mais tarde no das bananas. Mas sei de quem trabalhasse com contrabando de azeite, farinha, milho, ovos (os ovos iam para Espanha em saias especiais que as mulheres vestiam e disfarçavam na sua roupa). Outro contrabando forte foi o do café, esse ia em mulas até à fronteira e depois os galegos vinham busca-lo. De noite eram umas 4h a andar. E também ia dinheiro, muitas vezes escondido nas tranças do cabelo ou na roda das saias. Também fui muitas vezes às compras a Espanha. Mas aí tinha de vir tudo muito bem escondido e havia que escolher bem os carreiros que usar. Era bem difícil. Os guardas, quer os portugueses quer os espanhóis se nos apanhavam tiravam-nos tudo. Mas valia a pena ir lá comprar, pois era tudo muito mais barato.

(Isolina da Luz – Castro Laboreiro – 20-10-2013)

É com D. Isolina que temos acesso a indicações sobre o contrabando alimentar mais antigo e que mais perdurou na fronteira luso-espanhola: o café. Ela descreve a primeira fase deste tráfico, feito por mulheres, dissimulado em coletes costurados de forma especial, vestidos como de roupa íntima se tratasse. Quanto aos ovos disfarçados na roupa, referia-se Isolina a saias rodadas com sacos disfarçados de pregas, onde enfiavam ovo por ovo, até ao máximo de 5 ovos em altura. No que se refere ao café em maiores quantidades, como se verá posteriormente, o primeiro transporte utilizado foram as mulas.

Dada a dificuldade em breve os próprios galegos se deslocavam através do rio Trancoso e o levavam às costas:

No tempo da guerra ia para Espanha muito amendoim, açúcar e café. O meu pai é que foi do tempo mais antigo. Ele sim, fez contrabando de café para Espanha. Lembro-me que vinha muita gente buscar o café e de muito longe, até de Cortegada. Faziam com o saco de café cru, uma mochila para pôr aos ombros, mas tinham muito medo dos carabineiros e dos guardas portugueses também, que naquela altura os guardas eram muito maus. Também levavam do café já embalado, era o Café Sical. Mas por aqui passava muita coisa, que depois da guerra havia falta de tudo em Espanha. Chegou a vir gente de Vigo, eles tinham de procurar pela vida. Quando a vida em Espanha começou a melhorar, então também passou a vir mercadorias de lá. Lembro-me das uvas passas e do bacalhau no Natal. Aqui toda a gente passou a andar nisto, era a única sobrevivência. Mas valha-me Deus, muitos morreram no rio, que às vezes ia alto e as batelas eram fraquinhas e viravam. A carne também se ia lá buscar. É verdade, que vinha muito gado para cá, mas era velho, que o nosso gado novo, esse ia para lá. Isso sei eu bem, que o meu marido ainda andou a ajudar a passar alguns. Então toda esta zona ia lá comprar a carne, mas era contrabando. Até o pão era um problema. Aqui em Cevide não chegava o padeiro, apesar de isto ser muito povoado, não era como agora que a menina vê. Do outro lado do regato havia uma loja que vendia e nós chamávamos a senhora para nos trazer o pão. Atirávamos uma guita e ela amarrava e mandava assim pendurado por cima do regato. Mas os guardas quando viam a guita logo a atiravam ao regato. Por vezes, já estávamos tão habituadas que ela nos atirava mesmo por cima do regato. Mas então, estávamos condenados a não comer pão? É que ir a Melgaço era muito longe e não havia transportes.

Glória Pires – Cevide – 23-1-2014

   laguiar@iscet.pt

Revista Turismo & Desenvolvimento

Nº 33

2020

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fronteira de amenjoeira - castro laboreiro

 

 

NADA A DECLARAR III

melgaçodomonteàribeira, 24.08.24

948 c 20-No centro, o antigo posto da GF-39.jpg

posto da gf em s. gregório  -  ao centro

A GUARDA FISCAL

Em S. Gregório encontramos Avelino Fernandes, um antigo guarda-fiscal. “Vivi naquele período que toda a gente detestava. No dia que abriu a fronteira deitaram foguetes ali no bar. Passados uns anos estavam todos a chorar”. A Guarda Fiscal foi o braço armado do Ministério das Finanças, particularmente da Alfândega Portuguesa. Tinha como principal missão evitar e reprimir as infrações fiscais. O objetivo era a obtenção de receitas, defendendo os interesses da Fazenda Pública. Aos guardas era exigido o cumprimento da lei, independentemente dos atos que tivessem de tomar. Qualquer objeto era considerado suspeito e todas as pessoas que passassem a fronteira eram alvo de fiscalização. Os habitantes de S. Gregório sentem imensa pena de ver a antiga alfândega e as casas dos guardas degradadas. “Na altura, havia imenso movimento. Havia uma senhora que tinha uma taberna. Ela ajudava-os a passar. Tudo se sabia aqui. Quando via que alguém vinha para emigrar fazia um sinal de divisa, para informar que ali estava um guarda”, conta Catarina Oliveira.

Com a implementação em 1992 do Acordo de Livre Circulação de Pessoas e Bens no território da Comunidade Europeia, a fronteira terrestre deixa de ser relevante como marco de defesa do território. A Guarda Fiscal é extinta em 1993, sendo desativados todos os postos. “Não houve drama nenhum Uns foram integrados na Guarda Nacional Republicana (GNR) e outros reformaram-se. O drama não foi por aí. Houve sempre um sentimento da Guarda Fiscal que ainda hoje existe. Ainda hoje fazemos convívios. Aquele sentimento mítico é muito difícil de se apagar. Nós eramos como uma grande família. Fui para a GNR e fui muito bem estimado lá. Integrei-me muito bem. Mas, claro que estive muitos anos na Guarda Fiscal e é difícil”, ouvimos estas palavras de um saudoso Avelino Fernandes. No entanto, a indignação também toma conta da sua voz: “Quantos empregos se perderam na fronteira? Foram milhares! Nós eramos privilegiados. Havia um nível de vida alto. Vivia-se bem. Ganhava-se dinheiro, gastava-se”.

Avelino conta-nos que foi destacado para S. Gregório em 1973, ano em que o Almirante Américo Tomás veio visitar a fronteira. ‘Aqui começa Portugal’, lia-se na pedra recém-inaugurada pelo Almirante. “As letras roubaram-nas, a pedra ainda lá está”, refere o antigo guarda-fiscal e continua: “Quando se deu o 25 de abril, as pessoas que apoiavam o Almirante e apoiavam o regime fascista viraram-se”.

O antigo guarda-fiscal recorda: “Vim para a Guarda Fiscal com o Marcelo Caetano. Verificou-se ali uma abertura liberal. Claro, a mentalidade dos guardas mais antigos era diferente da nossa. O guarda tinha que ter um comportamento muito disciplinar em relação ao contrabando. Eles (os guardas mais velhos) apreendiam qualquer coisa e os mais novos já eram mais passivos”.

Apesar de desempenhar as suas funções como guarda-fiscal, não estava de acordo com muito do que se passava no antigo regime, “chegámos a ter conflitos com a polícia política. Eles eram capazes de nos complicar a vida, no entanto, tínhamos boas relações. Havia determinados assuntos que a gente dizia ‘isto não está bem’” e a resposta não tardava “cale-se que o senhor pode ser incomodado”, recorda Avelino.

A antiga casa da alfândega é feita em pedra com grandes arcos que antecipam a entrada. “Ninguém gosta de ver uma casa destruída, gosta? Uma arquitetura tão linda”. Os edifícios, na grande maioria foram entregues ao abandono, à degradação e à vandalização. “A nossa autarquia devia arranjar aquilo conforme a sua arquitetura original”.

Avelino gostaria de ver este património aproveitado, como por exemplo, um incentivo ao turismo. “Como o Museu Memória e Fronteira. O contrabando foi aqui, não foi lá (Melgaço). Não há nacionalismo nenhum. Como é que se pode abandonar um edifício assim? Como se pode abandonar Portugal? Criou-se ali o Museu do Contrabando, mas… abandonou-se um pouco o tema. Era como fazer em Lisboa um museu da agricultura”, partilha connosco.

Entramos na alfândega. Avelino caminha ao longo de todas as salas como se tivesse acabado de entrar em casa. Por momentos, parece estar novamente em tempos longínquos. A secretaria, o sítio de transmissões, a zona reservada aos oficiais, o quarto do oficial, o quarto de banho, a cozinha, a caserna. “Agora já não dá gosto vir aqui porque está tudo destruído”.

No entanto, Avelino Fernandes reflete acerca do impacto que o contrabando tinha na vida dos habitavam estas localidades. “O contrabando na fronteira terrestre era feito pela nobreza, pelo clero e pelo povo”. Corremos contra o tempo para preservar a memória dos tempos dos contrabandistas. Já não são tantas as memórias vivas que nos podem esclarecer sobre aquela época para percebermos que no Alto Minho a fronteira era apenas uma linha invisível. “Foi um sistema de vida. O melhor da minha vida já foi. A vida intensiva que tive aqui, acabou”.

ORIGINALMENTE PUBLICADO EM www.revistarua.pt

medium.com

Fotos: Arquivo do Blog

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NADA A DECLARAR! II

melgaçodomonteàribeira, 17.08.24

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cevide - ponte internacional

ALTO EM NOME DA FAZENDA NACIONAL

“A ‘pareja’ já tinha passado para cima. Havia a hora da muda, que era quando nós atuávamos”, explica o antigo contrabandista. O chamado ‘aguardo’ era feito por dois soldados que percorriam os locais por onde poderiam passar os contrabandistas. Havia um pacto de cavalheiros: quando o guarda avistava alguém, gritava “larga!” ou dava alguns tiros para o ar. O contrabandista devia deixar a mercadoria e fugir sem que os guardas fossem no seu encalço. “Os contrabandistas têm histórias de como nos conseguiam enganar e nós temos as nossas histórias. Às vezes, juntamo-nos e até vamos tomar um café. É uma forma de revivermos um pouco esta vida e esse tempo que aqui se passou”, conta Avelino Fernandes, conta o antigo guarda-fiscal.

Evitavam-se os guardas-fiscais do lado de cá e os carabineiros do lado de lá. O contrabandista socorria-se de truques e artimanhas para passar a mercadoria. O guarda-fiscal fazia o mesmo, mas no sentido inverso. Era o jogo do gato e do rato que fazia parte do quotidiano e que serve hoje para confraternização nesta zona. Era uma fronteira de oportunidades onde familiares, amigos e vizinhos partilhavam o dia-a-dia. Hoje, a zona raiana está isolada, desertificada. O antigo guarda-fiscal explica que a força tinha mais deveres do que fiscalizar os bens que atravessavam a fronteira, sendo a vigia e a segurança nacional uma das missões mais importantes. “Isto era a sentinela da nação. A Guarda Fiscal fazia apreensões aonde os apanhava. Havia aqueles mais habilidosos que diziam: ‘deixa-me ir embora e tal’. Hoje, se vai na estrada e a guarda quer multá-lo, o que é que faz? Se ele tiver um coração mais mole, diz: ‘vá, vá-se lá embora’. Se encontra um com o coração mais duro vai multá-lo e acabou! Aqui era igual”.

A gradual abertura à livre circulação provocou a extinção do contrabando tradicional. Em Melgaço, encontrámos S. Gregório, na freguesia de Cristóval, que outrora vivia sob uma azáfama de pessoas à procura de um negócio ou de uma oportunidade. Quando as fronteiras abriram os comércios fecharam e hoje é uma localidade deserta marcada pelos vestígios da antiga alfândega moribunda e das casas dos guardas.

Catarina Oliveira recolhe testemunhos de contrabandistas e de passadores pela região de Melgaço. “Conheci vários tipos de contrabandistas, desde aqueles que o praticavam para sobreviver, porque as famílias eram numerosas na altura e viviam principalmente da agricultura; os outros eram os patrões, os detentores do monopólio. Havia hierarquias dentro do contrabando”.

“Vivia-se na miséria”, conta Catrelo. Ser contrabandista era ter uma vida de perigos. A possibilidade de ser preso pela Guarda Fiscal, quando ainda em Portugal, ou, bem pior, ser-se preso pelos carabineiros, quando já dentro de Espanha, era real. Havia ainda o perigo de cair em algum poço de água. No entanto, o maior medo dos contrabandistas portugueses era ser apanhado por uma bala perdida dum carabineiro. Catarina Oliveira, socióloga na Câmara Municipal de Melgaço, conta-nos que “os carabineiros atiravam a matar! Sem dó nem piedade. Os guardas-fiscais eram mais fáceis. O ordenado deles não era excecional”. Catrelo acrescenta: “Os carabineiros, havia alguns que comiam, outros que não. Eu tinha muita confiança lá. Na zona raiana tenho mais amigos na Espanha do que cá. Quando o Vaqueiro e o Gaúcho dissessem pára, tinha-se mesmo de parar”. Para exemplificar conta-nos uma história: “Num dia que não pude ir aconteceu a tragédia. O meu colega, (José Maria Pereira, o Ratinho) levou um rapaz novato. O carabineiro gritou: Alto! Mas o rapaz não parou. Se ele parasse não lhe acontecia nada porque ele não tinha nada. Mas assustou-se e começou a correr. Aconteceu a desgraça. Matou. Matou”. Não vemos lágrimas nos olhos do antigo contrabandista mas a exaltação revela desconforto e angústia ao recordar a situação. A socióloga explica que, “a miséria era para todos e assim todos tinham a ganhar. Cada um recebia a sua parte. Em dinheiro ou em mercadoria. Temos registos de apreensões, tanto da Guarda Fiscal como da Guardia Civil”.

Normalmente, o contrabandista era pessoa conhecida. “Os criminosos, nós não sabíamos o que ali estava. Podiam ser assaltantes de bancos. Pessoas à mão armada que tentavam fugir pela fronteira, clandestinamente. Chegamos a prender alguns indivíduos”. Na zona fronteiriça, era obrigatório passar na alfândega quando se queria ir a Espanha. Segundo Avelino Fernandes, as pessoas tinham de pagar para passar. “Havia de tudo. Havia malfeitores. Havia pessoas que pediam para ir a Ourense porque estavam doentes. Era a vida da fronteira”. “Íamos para lá ganhar seis escudinhos”.

“Desmontámos um camião Volvo no meio de um campo de milho. Para a cabine, eram nove homens. Quem trouxe o saco das ferramentas fui eu, centenas de chaves que até arriava. Eu era espia, eles iam no barco e eu ficava a vigiar. Havia os guardas, uns enfiavam o barrete e outros não. Cada um safava-se”, conta.

Nascido em 1937, João José Costa Oliveira foi para Melgaço em 1957. “Foi lá que aprendi com o Manuel da Garagem, o maior contrabandista que houve na zona norte. Era o chefe da equipa daqui da zona do contrabando: lingotes, cobre, emigração, café”. Era à hora combinada, sempre à “primeira hora”, quando o dia adormecia que o grupo se juntava e ia buscar a carga, tomando conhecimento do percurso e do destinatário. “Diziam-nos: precisas de estar ali em tal sítio. Não há que falhar! Mais tarde é que abri os olhos e trabalhei por minha conta. Mas antes é que foi o duro do contrabando”. Quando interrogado acerca da sensação que sentia, Catrelo não hesita em responder: “Não sentia medo nenhum porque a gente já estava viciado naquilo e o serviço tinha que se fazer sem prejudicar o patronato. Nunca falhei aos meus patronatos!”

O contrabando não era só de mercearia. Pelo rio Minho passava também gado. Catarina Oliveira fala-nos que os porcos levavam-se pelo rio. “Há quem conte que também os passavam a nado”. No rio Minho usavam uma batela para fazer a passagem. Quase sempre durante a noite. Havia uma grande conveniência com a Guarda Fiscal, mas havia aqueles que eram mais fiéis ao regime e que não contemplavam a atividade. O contrabandista cerveirense exemplifica: “Cheguei a trazer suínos injetados no barco, de lá para cá. Trouxemos três. Quando vínhamos do barco já estrebuchavam”.

EMIGRAÇÃO

O contrabando de mercadorias também o foi de pessoas. “É engraçado que estas pessoas esquecem-se de muitas coisas, ma não têm dúvidas sobre o dia que marcaram a viagem, o dia que partiram e o dia que chegaram a França”, conta Catarina Oliveira.

Catrelo percorria o Alto Minho como árbitro da Associação de Futebol de Viana do Castelo. Usava-o para ir recrutando pessoas para dar o ‘salto’. “Quando aqui não se podia passar na emigração, arrancava-se com eles nos carros. Telefonávamos para a D. Maria e para os filhos. Ficavam lá numa serração e ia um táxi levar as malas”. Conta-nos que tinha já tudo combinado com os passadores em Espanha e que um dos cafés, próximos da linha do comboio, abrigavam os portugueses até a hora de partir chegar.

Depois do 25 de Abril, o contrabando e a emigração não pararam. “Levei centenas delas. Trabalhava para os outros, ganhava 500 escudos”. Aprendida a arte de passar as pessoas para o outro lado, começou o negócio por conta própria. “Eram 1500 escudos para os por lá na França”. Numa madrugada, pelas cinco da manhã, um táxi parou à porta da sua casa. Ao lado do condutor estava o chefe da polícia de Vila Fria. “Era o senhor Abel”. Catrelo recorda: “Perguntei se havia novidade”. Havia sim, o taxista, Joaquim Vilaça pediu-lhe para levar a filha do senhor Abel para França porque esta ia casar dentro de dois dias. Catrelo teve receio que fosse uma ratoeira e ainda tentou escapulir-se. No entanto, após verificar que o assunto era sério, aceitou fazer o serviço. “Aqui há ratoeira, tive medo! Mas disse que ainda que fosse preso, se ela quisesse ir no dia seguinte, que estivesse na caseta ao dar o meio-dia”. A filha do senhor Abel partiu e nada aconteceu a Catrelo. São muitas as histórias que nos conta e as atuais são sobre as pessoas que regressam e o reconhecem. “Ás vezes, aparecem aqui tantos e tantos que me dizem: “já não me conhece, mas foi você que me levou para a França”.

(continua)

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guarda-fiscal  -  s. gregório

 

NADA A DECLARAR! I

melgaçodomonteàribeira, 10.08.24

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rio trancoso - s. gregório

CONTRABANDO, EMIGRAÇÃO, DESERTIFICAÇÃO. COMO SE VIVE NA FRONTEIRA

DEPOIS DO 25 DE ABRIL?

04/12/2016

Texto: Luís Leite

Foto: Luís Leite & Nuno Sampaio

Apoio: Sofia Moleiro

O contrabando foi o sustento de muitas famílias. Após o 25 de abril e o Acordo de Schengen, a atividade tornou-se obsoleta e a Guarda Fiscal foi suprimida. Percorremos a fronteira em busca de memórias desses tempos. Contrabandistas, guardas-fiscais e passadores eram vizinhos, amigos e até familiares. Hoje, a fronteira está deserta.

 

“Na raia não havia nacionalidade. Este espírito de fronteira era de facto diferente” conta Avelino Fernandes, antigo guarda-fiscal. Hoje, aos 68 anos, sente saudades da confraternização com os colegas de profissão. Mais a sul, entre Caminha e Valença, onde o rio Minho começa a alargar o seu leito em direção à foz, situa-se Vila Nova de Cerveira. “Se não fosse a emigração isto estava tudo muito mal. O que é que faríamos?”, a saga dos contrabandistas que atravessavam o rio Minho é contada por João José Costa Oliveira, mais conhecido como ‘Catrelo’, hoje com 77 anos.

“S. Gregório virou uma localidade fantasma. Havia três ou quatro lojas que vendiam uma barbaridade. Acabou-se o cambio da moeda”, relembra Alfonso Viso, um espanhol apaixonado pela história da região. Em Melgaço, todos dizem conhecer alguém que andou no contrabando, mas poucos são os que têm vontade de falar, quer por receio de represálias antigas, quer por pressões familiares. “Infelizmente, algumas pessoas tem um certo receio de falar porque se sentem reticentes, mas há outros que fazem-no com muito prazer, com muito orgulho”, diz Catarina Oliveira, socióloga e funcionária do museu Espaço Memória e Fronteira.

O Trancoso, um pequeno afluente do rio Minho – que pode ser cruzado a pé – fez desta fronteira uma das mais conhecidas do país. O rio, de curto caudal, também fazia parte da rota do contrabando. Trazer a mercadoria de um lado para o outro era uma arte que poderia ser crime mas que não era pecado. Pão, açúcar, ovos, sabão, café e tecidos eram alguns dos produtos contrabandeados. A fronteira não delimitava a ação de homens e mulheres, adultos e crianças que percorriam a obscuridade para ir buscar ao lado de lá o que fazia cá falta.

Estamos com um pé em Portugal e outro em Espanha na fronteira de S. Gregório, freguesia de Cristóval. Andávamos à procura do marco nº 1, em Cevide, a localidade portuguesa conhecida por ser o lugar mais setentrional de Portugal, quando decidimos dar um salto a Espanha. Nos dias de hoje, quando atravessamos a fronteira para a Galiza não há nenhum guarda para nos pedir o passaporte. Antigamente, para ir comprar alguma coisa ao outro lado – quer porque cá não havia ou porque lá era mais barato -, a adrenalina seria diferente. Parámos no café Frontera, em Ponte Barxas, Padrenda, onde encontramos Alfonso Gómez Viso. O galego conta que anda a promover a localidade de Padrenda e que escreveu um livro sobre a região, ainda à espera de ser editado. Convida-nos a fazer uma visita guiada pela zona da antiga ramboia – o termo galego usado para falar do contrabando nesta zona.

“Eu, com quatro anos, dormia em cima das caixas das bananas”, conta Alfonso Gómez Viso. Com 37 anos, as memórias que tem do contrabando cingem-se aos anos 80, quando o tráfico de mercadorias aparece em grande escala. Gado e bananas são os produtos mais conhecidos, mas também se passavam outras frutas, vacas e porcos de um lado para o outro. Nas aldeias raianas havia uns barracões, as garagens, onde guardavam tudo. Catarina Oliveira conta que “as pessoas que se recordam dessa altura, falam de um contrabando não tanto impactante como o de antigamente”.

Subimos a serra do Laboreiro. Num instante estamos em Espanha e sem dar conta regressamos a Portugal. Parámos na fronteira entre uma aldeia portuguesa e uma galega, Alcobaça e Azureira, separadas pelo rio Trancoso. Para além do tradicional marco fronteiriço nada indica que mudámos de um país para outro, a fronteira não passa de uma linha imaginária entre marcos situados a muitas centenas de metros uns dos outros.

- Para lá fica Portugal, para cá fica Espanha – ouço a voz de uma senhora, vestida de negro. É um sotaque português, vindo de uma senhora toda vestida de preto, com um lenço na cabeça. Eu, do lado português. Ela, do lado espanhol. Dois palmos distanciava-nos.

- Não quer contar uma história do contrabando? –, pergunto.

- Eu não sei nada do contrabando, ainda para mais sou mulher de um guarda. Como é que posso saber? – responde.

A proximidade do comércio espanhol fazia com que a população se deslocasse às terras vizinhas para poupar. “Aqui, o contrabando era de alimentos, televisores, marisco. Era o contrabando de não pagar o imposto. De passar de um lado para o outro sem tirar dividendos disso”, explica Alfonso. Inicialmente, na década de 40, o contrabando começou com o café porque Portugal tinha-o em abundância e era de melhor qualidade. “Também levavam sabão porque as principais fábricas situavam-se no norte. Em compensação, bens alimentares como arroz, açúcar, amêndoa, chocolate, eram mais baratos em Espanha e vinham de Espanha para Portugal”, explica Catarina Oliveira.

“É muito curioso. Aqui dizem que as vacas mudam de cor. Mas o que acontecia é que mudavam de sítio. O vitelo ia para Espanha e a vaca ia para Portugal”, conta Alfonso. É frequente haver terras de cultivo de um mesmo proprietário com metade em Portugal, metade em Espanha. “Era a desculpa perfeita para passar o gado de um lado para o outro. Não era um contrabando mau, era de subsistência. As pessoas têm receio de falar porque não querem assumir que era uma forma de vida que havia”, acrescenta Alfonso.

A ponte é o que marca a zona de contrabando das pessoas desta zona. Uma garagem, outra garagem, mais uma garagem. “A sinalética é típica, quando deixavam uma janela aberta queria dizer que podiam passar. Estava tudo acordado com o guarda”. Hoje em dia, está tudo fechado. Destas garagens saiam e entravam produtos. Um dos locais era a povoação de Cela, onde se construíram enormes garagens nos anos 70 e 80.

Regressamos a Alcobaça, a aldeia onde começa a raia seca. A aldeã conta-nos: “Na Azureira havia ainda aqui três lojas, veja lá, para vender a quem?” Durante as noites, as lojas estavam abertas para se poder conviver, beber cerveja e petiscar. Alfonso continua a nossa visita guiada: “Aqui era mais convivência porque toda a gente conhecia tudo. Agora não há ninguém”. A aldeã remata: “Estavam abertas quando a gente lhes batia à porta”.

(continua)

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fronteira em s. gregório

 

O CONTRABANDO POR AeC

melgaçodomonteàribeira, 20.07.24

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1Consistindo o contrabando em transacções, era incontestável que a natureza e a relevância do que se traspassava fazia, impreterivelmente, que, como na sociedade, o contrabando se dividisse em classes.

O contrabando, como é sabido, é o resultado das fronteiras. Contrabandos houve, há e haverá muitos e, consequentemente, variegados. Hoje as fronteiras são movediças, mas o tráfico, de outras formas e de outros produtos, persiste em quantidades incomparáveis às daquela época.

Mais de quarenta anos antes do petate da banana e utilizando as mesmas veredas – rios Minho e Trancoso e raia seca –, alguns temerários do concelho de Melgaço começaram a enriquecer graças ao contrabando de volfrâmio, ouro, café Sical...

Com o fim da Segunda Guerra Mundial, Salazar que, por ideologia deixara andar, regulou o volfrámio. A Confederação Helvética tornou-se o destino relevante do ouro. A origem das somas consideráveis vindas do estrangeiro passou a ser vistoriada. Para justificar a procedência dos capitais, os contrabandistas melgacenses dominantes, compraram uma padaria, uma pastelaria e uma ourivesaria em Tanger, Marrocos, nessa altura protectorado francês. Os gerentes eram o Alexandre Araújo Lopes e o Manuel Lourenço. As revoltas de 1954 obrigaram-nos a regressar a Portugal, onde os negócios continuaram.

Em 1958, um deles, o Artur Teixeira, o cambista melgacense mais conhecido, por intermédio do Alexandre Araújo Lopes, de S. Gregório, concedeu um empréstimo de 400 000 escudos – o equivalente a 1 milhão de pesetas na altura – a Antonio Piña Antón, um próximo de A Notaria que tinha uma modesta empresa de autocarros. Foi o primeiro empresário da Península Ibérica a efectuar, em 1973, a primeira ligação internacional de autocarro ; saíam de Ponte de Lima com destino a Paris e vice-versa. Os seus clientes eram os emigrantes portugueses e espanhóis

A meio dos anos 60 do século XX, Manuel José Domingues (Mareco), Manuel Rodrigues (Manecas), Alexandre Araújo Lopes, Artur Teixeira e Manuel Lourenço (Manuel da Garagem) eram indivíduos que possuíam fortunas colossais.

Deste bando de contrabandistas de colarinho branco, o Alexandre, uns anos mais novo, foi o postremo sobrevivente, depois do desaparecimento dos quatro associados no meio dos anos 70 do mesmo século. No início dos 80, ainda transpunha vários dias por semana a ponte da Frieira no seu BMW, sempre com a única filha ao lado que, certamente, lhe servia de latíbulo.

Ninguém estava seguramente a par das suas actividades, mas qualquer zé-ninguém de S. Gregório apostaria que a especulação monetária e os metais preciosos não tinham deixado de ser a sua distracção. Segundo um vizinho da rua Verde, em S. Gregório, onde o Alexandre residia, era frequente ver entrar na sua casa indivíduos de maletas na mão a certas horas da noite. O Alexandre era o maior provedor de pesetas e de outras moedas.

Estes indivíduos constituíram a classe alta do petate no concelho de Melgaço.

Uma pequena parte dos comerciantes situados na raia eram a classe média. Aos rendimentos provenientes das vendas nas lojas juntava-se o do contrabando de café e de tabaco americano de contrabando – o tabaco americano chegou a Espanha em 1971 – e que continuou até pouco depois do 25 de abril de 1974. O Jonjom, o Carminé Coelho e o Zé do Rita eram os principais. O segundo e o terceiro davam-se ao luxo de passar a veniaga de dia.

Na base, havia sobretudo mulheres que faziam um contrabando de subsistência e social. Levavam um ou dois quilos de café, toucinho e traziam azeite.  

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rota do contrabando - em s. gregório

 

 

VOLFRÂMIO EM CASTRO LABOREIRO E GAVE

melgaçodomonteàribeira, 06.07.24

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PATRIMÓNIO, MUSEUS E TURISMO INDUSTRIAL:

UMA OPORTUNIDADE PARA O SÉCULO XXI

Em Melgaço, concelho rural, a exploração de volfrâmio, no decorrer da II Guerra Mundial, trouxe algum alento à economia local. A importância do volfrâmio para as populações locais residia no facto de se constituir, a seguir ao contrabando, como o segundo elemento dinamizador das expectativas na melhoria da vida que se viriam a concretizar, ainda através da emigração.

“Durante a Segunda Grande Guerra, por volta de 1942/43, abriu também a exploração do volfrâmio nos montes de Castro Laboreiro. Era um metal muito procurado para armamentos e pagavam-no bem – em quinze dias que passei lá juntei o dinheiro que precisava para pagar as três vacas que tinha “de ganho”. (Virgílio Domingues, memórias de um emigrante pioneiro).

Em 1942, Portugal estabelece um acordo comercial com a Alemanha, em troca de aço, ferro, e vagões de comboio. Os alemães controlavam a exploração de volfrâmio que lhes interessava para armamento tornando-se essencial ao seu esforço de guerra. Este minério metálico, disputado também pelos ingleses, por razões estratégicas e bélicas, era então intensamente explorado nas poucas grandes e muitas pequenas e médias minas na zona norte e centro do país, para além das companhias e empresas estrangeiras e nacionais, exercendo-se também a céu aberto por indivíduos isolados, conforme testemunhado, como se evidenciou atrás, a título de exemplo, por muitos naturais de Rouças da Gavieira, Arcos de Valdevez e Castro Laboreiro em Melgaço.

Daí que a autarquia projecte, actualmente, a requalificação das antigas minas de volfrâmio de Castro Laboreiro, pretendendo-se transformá-las num novo ponto de interesse no concelho, preservando as memórias de um período importante da sua história, relacionada com a exploração deste minério metálico de grande valor estratégico na 1ª e 2ª Guerra Mundiais e na Guerra da Coreia.

Apesar do número de galerias conhecidas ser superior a 40 e a área total da zona mineira ser grande, prevê a autarquia, apenas a recuperação de duas galerias, de forma a não tornar o percurso de visita repetitivo, para além da recuperação da represa de água.

Mas conhecer Gave, onde se localiza a mina de volfrâmio conhecida por “Mina do Pedro” que ainda nos anos 1950 se encontrava em exploração, é também conhecer a Serra da Peneda, desde as suas paisagens, às tradicionais Brandas ou Verandas.

Por exemplo a branda da Aveleira situada a cerca de 1100 m de altitude é uma zona de montanha onde são ainda visíveis os vestígios da era glaciar conhecida como “Glaciação de Wurm”.

Aqui já foi criado, o primeiro trilho geológico português, iniciativa do Instituto Geológico e Mineiro que configura um interessante atractivo turístico.

(…)

Obtinham assim o mineral volfrâmio que conseguiam vender para o contrabando. O contrabandista mais conhecido a quem vendiam era o Mareco, pertencente à bem organizada rede de contrabando “A Companhia”. Com o lucro obtido nesta transacção, a maioria das mulheres comprou fios de ouro com várias voltas, tal como a tradição minhota.

A caminhada até às minas era dura, pelo que as mulheres superavam-na cantando todo o caminho:

(Versos recitados por antiga lavadora de volfrâmio em Castro Laboreiro, D. Angelina Esteves).

Eu hei-de ir ao minério

Trabalhar o filão

Com o dinheiro do minério

Hei-de comprar um cordão

Eu hei-de ir ao minério

Hei-de ir lá trabalhar

Todo mundo anda no luxo

Eu também quero luxar

II CONGRESSO INTERNACIONAL SOBRE PATRIMÓNIO INDUSTRIAL

22-24 MAIO

2014

MELGAÇO, OS SENHORES DO CONTRABANDO

melgaçodomonteàribeira, 18.05.24

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MEMÓRIA DO CONTRABANDO E EMIGRAÇÃO CLANDESTINA EM MELGAÇO:

PATRIMONIALIZAÇÃO E MUSEALIZAÇÃO

O CONTRABANDO

Lídia Aguiar

CIIIC-ISCET

Para o sociólogo Albertino Gonçalves, o contrabando é uma ação intrinsecamente ligada à fronteira, da qual a população de Melgaço soube tirar partido em função da sua situação geográfica. Três quintos deste concelho confinam com a Galiza, sendo 22Km de fronteira terrestre e 39Km de fronteira fluvial.

Certo é que ela, em muitos momentos, constituiu um importante motor económico para o sustento das famílias. Homens, mulheres e crianças, carenciados ou abastados, todos participaram, à sua maneira, nesta atividade. Na vida de fronteira, a profissão mais procurada era a de contrabandista (Gonçalves, 2008).

A verdade é que o contrabando foi evoluindo por ciclos. No arco temporal a que este estudo se refere, inicia-se com o período da Guerra Civil Espanhola (1936 – 1939). Dado o contexto político assumido por Espanha, este país viria a ficar neste período (desde 1936 até alguns anos após o final da II Guerra Mundial), com as suas relações comerciais com o estrangeiro completamente cortadas. Deve-se entender que a Guerra Civil Espanhola, foi um dos mais violentos e cruéis conflitos da história. Opôs os republicanos, então no governo desta nação, aos Falangistas, grupo de tendência fascista e comandado pelo general Francisco Franco. Terminou, em 1939, com a vitória do general Franco, que impôs um regime ditatorial de direita. Entretanto, tinham-se verificado mais de 400 mil mortos; prejuízos enormes na agricultura; a destruição de prédios, igrejas e casas em várias cidades. Neste mesmo ano, iniciou-se a II Guerra. O general Franco tomou uma posição pró nazi, fação que viria a ser derrotada neste último conflito. Por esta razão, a Espanha, vê-se impedida, pelos países vitoriosos, em aceder aos mercados comerciais internacionais, com normalidade.

Foi pois, a economia subterrânea que forneceu o país vizinho de tudo quanto podia e lhe era solicitado: bens de primeira necessidade, café, aço, peças de automóveis; de tudo um pouco passou quer pelas batelas do Rio Minho, quer pela raia seca, diga-se Planalto de Castro Laboreiro.

“Depois da Guerra tudo ia para a Espanha. Eles não tinham nada. Eu era gaiato pequeno, mas lembro-me bem de ouvir a minha mãe e a minha avó contar isso. Depois de 45, finda a guerra, houve muita convivência com os galegos. Isso das fronteiras não afetava nada. Os guardas fechavam os olhos. Ia de tudo para lá: sabão, sal, azeite, imagine que até carros velhos iam, pois eles não tinham nada. Daqui ia muito pão, pois os fornos comunitários trabalhavam todos os dias” Adelino Esteves – Castro Laboreiro – 29-10-2013

O meu pai guardava café. Tinha café cru em sacos grandes e café Sical já embaladinho. Vinham espanhóis de muito longe buscar, mas os guardas eram muito maus. Era a ditadura. Esta gente levava de tudo: café, açúcar, amendoins, até sabão, linhas e velas, tudo lhes servia para levar. Depois da Guerra foi mesmo uma miséria. Até gente de Vigo vinha cá buscar coisas”. Glória de Jesus Pires – Cevide – 23-1-2014

A partir de 1955, Espanha começa a sua recuperação económica. Havia já passado 10 anos após o final da II Guerra, pelo que os mercados comerciais se começaram a abrir a este país, que rapidamente aproveitou as oportunidades oferecidas. O contrabando toma então dois sentidos, já que a diferença cambial começa a favorecer os Portugueses na compra de bens em Espanha. As trocas comerciais intensificam-se. Para que, neste novo contexto, o contrabando seja bem-sucedido a boa organização tornou-se essencial. Aparecem, então, as primeiras redes bem organizadas, conduzidas pelo que a população ainda hoje denomina “Os Senhores do Contrabando”.

“Foi então que vieram os Senhores do Contrabando: Sr. Freitas, Sr. Alexandre, o Rita dos Casais. Esse tinha uma batela no rio e o cunhado Miguel e ainda o Maia de S. Gregório” Glória de Jesus Pires – Cevide – 23-1-2014

Alguns destes “Senhores do Contrabando” organizaram-se em consórcios, criando verdadeiras redes que atingiam todo o país e se alargavam igualmente a Espanha. Estas associações eram bastante complexas. Envolviam muito capital e muitos homens e mulheres a trabalhar para elas (carregadores, condutores, bateleiros, fornecedores, intermediários e informadores). Os meios logísticos também eram fundamentais, como as batelas, carros, camiões, radiotransmissores. Perante esta complexidade, era essencial que a rede fosse flexível e estivesse preparada para agir perante os imprevistos. Um dos mais perigosos, era sem dúvida, a patrulha da Guarda-Fiscal (Gonçalves, 2008).

Tudo poderia estar bem organizado, mas o grande sucesso das cargas esteve sempre dependente de conivências da Guarda-Fiscal. Era, pois, normal os guardas-fiscais fazerem, eles próprios, uma contabilização do despacho das mercadorias, na hora da carga, para depois receberem a sua parte do negócio.

“Eu trabalhei para os Senhores do Contrabando, o Sr. Freitas, o Sr. Alexandre, o Rita dos Casais e o Maia de S. Gregório. As pessoas aqui do regato trabalhavam por uma miséria. Carregava 50Kg a 75 Kg de caixas atadas por cordas. Os guardas chegavam quando o camião já estava quase carregado, para verificar a quantidade e receber o seu. Por vezes ainda ajudavam a carregar. Digo-lhe eu que estava presente”. Antero Pires – Cevide 23-1-2014

Todos os recursos de fuga às autoridades de pouco serviriam sem a conivência das próprias. Neste contexto, verifica-se que estes consórcios vão sofrer mais apreensões longe da linha de fronteira, quando os interessados transportavam as mercadorias para as cidades como Braga, Porto ou Lisboa (Gonçalves, 2008).

“O último contrabando que por aqui existiu foi o das bananas. Carregou-se muita banana. Só na altura em que veio para cá o Tenente Abrantes, o conhecido Zeca Diabo, é que tivemos de cortar um bocadinho, que esse não alinhava. Mas depois tudo continuou. De Ponte da Barca até ao Porto é que era tudo mais complicado. Sabe como é, o pessoal via muitas carrinhas a sair daqui serra abaixo e a coisa dava nas vistas (…)”

João António Abreu – Melgaço 22-1-2014

O contrabando evolui por ciclos. Em Melgaço, o café foi um dos ciclos mais longos, dado Portugal ser excedentário neste produto, devido à produção que lhe chegava das suas ex-colónias. Um outro ciclo importante foi o do gado, que se inicia na década de 60 e perdurou praticamente até abertura das fronteiras. Este tomou os dois sentidos. Para Portugal vinham vacas e para Espanha seguiam vitelos. Este grande ciclo do gado coexistiu com o último grande ciclo, ou seja, o das bananas, tendo este tido início só no início da década de 70.

Juntamente com estes produtos, ao longo dos anos as mercadorias contrabandeadas foram muito diversas. Desde o tabaco, gado suíno e ovino, bacalhau, azeite, ouro, prata, cobre até peças de automóveis inteiros que depois eram montados em Espanha. De tudo um pouco passava ora num sentido ora noutro, utilizando quer a raia seca quer as batelas do Rio Minho.

A mulher contrabandista assumiu um papel importante. São astutas por natureza, ou porque a vida assim as fez. Na sua larga maioria entregavam-se ao contrabando por conta própria: ovos, galinhas, café, e na perspetiva inversa, farinha e azeite para Portugal. Numa época mais tardia, peças de vestuário, perfumes, chocolate e bacalhau. Era normal elas recorrerem a peças de vestuário apropriadas para disfarçar o transporte de mercadorias mais contrabandeadas. Também o uso de longas tranças enroladas lhes permitia esconder no cabelo peças pequenas. O que foi muito usado para o tráfico de divisas e joias (Gonçalves, 2008).

O tráfico de divisas, também conhecido por bolsa negra, era largamente utilizado pelos emigrantes espanhóis, que face à ditadura do seu país, estavam impedidos de enviar as remessas de dinheiro diretamente às suas famílias. Desta forma, este era depositado em Portugal e levantado pelos contrabandistas que em seguida o passavam ilegalmente para Espanha e o distribuíam aos familiares dos emigrantes.

“Ir a Espanha era um trabalho para quem não tinha medo à vida. Por vezes tinha de se fazer mais quilómetros para fugir aos guardas, é que nós não podíamos repartir com eles. Os melhores dias eram os de nevoeiro ou chuva miudinha. Assim eles não andavam pela serra. Fomos ganhando para ter para a casa; ia então buscar, bacalhau, azeite, chocolate, baunilhas e tudo o que me encomendassem, assim ganhava o meu vendendo porta a porta. Lá ia eu com o carrego à cabeça e os meus filhinhos pela mão. Era uma vida bem dura. Mas lá nos governamos com uns tostões. Sim que os nossos governantes só (…)” Maria Emília Domingues – Cousso 7-1-2014

O contrabando foi um negócio lucrativo, mas efémero. Enquanto durou, criou muitos comércios e alimentou muitas famílias. Deve-se compreender que constituindo uma economia paralela, os seus lucros nunca foram orientados para o desenvolvimento local. Permitiram, no entanto, uma sobrevivência condigna a uma população pobre, que vivendo num território limítrofe, dependia de uma parca agricultura e pastorícia de subsistência (Gonçalves, 2008).

REVISTA CIENTÍFICA DO ISCET

PERCURSOS & IDEIAS

Nº 7 – 2ª SÉRIE

2016

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