Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, HISTÓRIAS DE VIDA I

melgaçodomonteàribeira, 21.09.24

935 b Castro Laboreiro - Perto do Ribeiro de Baixo

montes laboreiro

OS PATRIMÓNIOS ALIMENTARES NAS ROTAS DO CONTRABANDO

Lídia Aguiar

Rosalina, pacatamente, fazia renda na biblioteca de Castro Laboreiro. Com 77 anos, para lá se desloca nos dias frios de inverno, já que em sua opinião, aí está mais quentinha. Fez questão de dar o seu testemunho, frisando bem que nunca foi contrabandista, embora, como todos os habitantes desta freguesia, foi muitas vezes às compras a Espanha, tendo por isso sido vítima da violência dos guardas, principalmente dos carabineiros. Sublinhou que quando ia nunca retornava pelo mesmo caminho. Era uma questão de segurança, a guarda podia ter visto ela a passar para Espanha e aguardar o seu regresso. Deste modo, quando encetava a volta a Castro Laboreiro escolhia um caminho alternativo.

Eu nunca fui contrabandista pois tinha muito que fazer nos campos e que tratar do gado. Mas claro que ia a Espanha comprar umas coisitas que nós procurávamos sempre o mais barato. Lembro-me bem do azeite, que era mais óleo, aquilo até era branco, mas era barato. Lá íamos então ao Pereiro, à Luísa, vinha em latas de 5l, se nos apanhavam tiravam-nos as coisitas e os guardas espanhóis ainda nos batiam.

(Rosalina Fernandes – Castro Laboreiro – 20-10-2013)

A D. Rosalina indica-nos que nunca entrou em grandes rotas de contrabando. Praticou o ato para sustento da sua própria família. Era hábito as mulheres juntarem-se em grupo, para mais facilmente se furtarem ao controlo das autoridades das fronteiras.

Isolina da Luz, também abrigada do frio na biblioteca de Castro Laboreiro, entra na conversa:

Eu só trabalhei no do gado e mais tarde no das bananas. Mas sei de quem trabalhasse com contrabando de azeite, farinha, milho, ovos (os ovos iam para Espanha em saias especiais que as mulheres vestiam e disfarçavam na sua roupa). Outro contrabando forte foi o do café, esse ia em mulas até à fronteira e depois os galegos vinham busca-lo. De noite eram umas 4h a andar. E também ia dinheiro, muitas vezes escondido nas tranças do cabelo ou na roda das saias. Também fui muitas vezes às compras a Espanha. Mas aí tinha de vir tudo muito bem escondido e havia que escolher bem os carreiros que usar. Era bem difícil. Os guardas, quer os portugueses quer os espanhóis se nos apanhavam tiravam-nos tudo. Mas valia a pena ir lá comprar, pois era tudo muito mais barato.

(Isolina da Luz – Castro Laboreiro – 20-10-2013)

É com D. Isolina que temos acesso a indicações sobre o contrabando alimentar mais antigo e que mais perdurou na fronteira luso-espanhola: o café. Ela descreve a primeira fase deste tráfico, feito por mulheres, dissimulado em coletes costurados de forma especial, vestidos como de roupa íntima se tratasse. Quanto aos ovos disfarçados na roupa, referia-se Isolina a saias rodadas com sacos disfarçados de pregas, onde enfiavam ovo por ovo, até ao máximo de 5 ovos em altura. No que se refere ao café em maiores quantidades, como se verá posteriormente, o primeiro transporte utilizado foram as mulas.

Dada a dificuldade em breve os próprios galegos se deslocavam através do rio Trancoso e o levavam às costas:

No tempo da guerra ia para Espanha muito amendoim, açúcar e café. O meu pai é que foi do tempo mais antigo. Ele sim, fez contrabando de café para Espanha. Lembro-me que vinha muita gente buscar o café e de muito longe, até de Cortegada. Faziam com o saco de café cru, uma mochila para pôr aos ombros, mas tinham muito medo dos carabineiros e dos guardas portugueses também, que naquela altura os guardas eram muito maus. Também levavam do café já embalado, era o Café Sical. Mas por aqui passava muita coisa, que depois da guerra havia falta de tudo em Espanha. Chegou a vir gente de Vigo, eles tinham de procurar pela vida. Quando a vida em Espanha começou a melhorar, então também passou a vir mercadorias de lá. Lembro-me das uvas passas e do bacalhau no Natal. Aqui toda a gente passou a andar nisto, era a única sobrevivência. Mas valha-me Deus, muitos morreram no rio, que às vezes ia alto e as batelas eram fraquinhas e viravam. A carne também se ia lá buscar. É verdade, que vinha muito gado para cá, mas era velho, que o nosso gado novo, esse ia para lá. Isso sei eu bem, que o meu marido ainda andou a ajudar a passar alguns. Então toda esta zona ia lá comprar a carne, mas era contrabando. Até o pão era um problema. Aqui em Cevide não chegava o padeiro, apesar de isto ser muito povoado, não era como agora que a menina vê. Do outro lado do regato havia uma loja que vendia e nós chamávamos a senhora para nos trazer o pão. Atirávamos uma guita e ela amarrava e mandava assim pendurado por cima do regato. Mas os guardas quando viam a guita logo a atiravam ao regato. Por vezes, já estávamos tão habituadas que ela nos atirava mesmo por cima do regato. Mas então, estávamos condenados a não comer pão? É que ir a Melgaço era muito longe e não havia transportes.

Glória Pires – Cevide – 23-1-2014

   laguiar@iscet.pt

Revista Turismo & Desenvolvimento

Nº 33

2020

935 c 4-125-Ameijoeira-195.JPG

fronteira de amenjoeira - castro laboreiro

 

 

O CONTRABANDO POR AeC

melgaçodomonteàribeira, 20.07.24

934 b 70-899_001ty-90.jpg

1Consistindo o contrabando em transacções, era incontestável que a natureza e a relevância do que se traspassava fazia, impreterivelmente, que, como na sociedade, o contrabando se dividisse em classes.

O contrabando, como é sabido, é o resultado das fronteiras. Contrabandos houve, há e haverá muitos e, consequentemente, variegados. Hoje as fronteiras são movediças, mas o tráfico, de outras formas e de outros produtos, persiste em quantidades incomparáveis às daquela época.

Mais de quarenta anos antes do petate da banana e utilizando as mesmas veredas – rios Minho e Trancoso e raia seca –, alguns temerários do concelho de Melgaço começaram a enriquecer graças ao contrabando de volfrâmio, ouro, café Sical...

Com o fim da Segunda Guerra Mundial, Salazar que, por ideologia deixara andar, regulou o volfrámio. A Confederação Helvética tornou-se o destino relevante do ouro. A origem das somas consideráveis vindas do estrangeiro passou a ser vistoriada. Para justificar a procedência dos capitais, os contrabandistas melgacenses dominantes, compraram uma padaria, uma pastelaria e uma ourivesaria em Tanger, Marrocos, nessa altura protectorado francês. Os gerentes eram o Alexandre Araújo Lopes e o Manuel Lourenço. As revoltas de 1954 obrigaram-nos a regressar a Portugal, onde os negócios continuaram.

Em 1958, um deles, o Artur Teixeira, o cambista melgacense mais conhecido, por intermédio do Alexandre Araújo Lopes, de S. Gregório, concedeu um empréstimo de 400 000 escudos – o equivalente a 1 milhão de pesetas na altura – a Antonio Piña Antón, um próximo de A Notaria que tinha uma modesta empresa de autocarros. Foi o primeiro empresário da Península Ibérica a efectuar, em 1973, a primeira ligação internacional de autocarro ; saíam de Ponte de Lima com destino a Paris e vice-versa. Os seus clientes eram os emigrantes portugueses e espanhóis

A meio dos anos 60 do século XX, Manuel José Domingues (Mareco), Manuel Rodrigues (Manecas), Alexandre Araújo Lopes, Artur Teixeira e Manuel Lourenço (Manuel da Garagem) eram indivíduos que possuíam fortunas colossais.

Deste bando de contrabandistas de colarinho branco, o Alexandre, uns anos mais novo, foi o postremo sobrevivente, depois do desaparecimento dos quatro associados no meio dos anos 70 do mesmo século. No início dos 80, ainda transpunha vários dias por semana a ponte da Frieira no seu BMW, sempre com a única filha ao lado que, certamente, lhe servia de latíbulo.

Ninguém estava seguramente a par das suas actividades, mas qualquer zé-ninguém de S. Gregório apostaria que a especulação monetária e os metais preciosos não tinham deixado de ser a sua distracção. Segundo um vizinho da rua Verde, em S. Gregório, onde o Alexandre residia, era frequente ver entrar na sua casa indivíduos de maletas na mão a certas horas da noite. O Alexandre era o maior provedor de pesetas e de outras moedas.

Estes indivíduos constituíram a classe alta do petate no concelho de Melgaço.

Uma pequena parte dos comerciantes situados na raia eram a classe média. Aos rendimentos provenientes das vendas nas lojas juntava-se o do contrabando de café e de tabaco americano de contrabando – o tabaco americano chegou a Espanha em 1971 – e que continuou até pouco depois do 25 de abril de 1974. O Jonjom, o Carminé Coelho e o Zé do Rita eram os principais. O segundo e o terceiro davam-se ao luxo de passar a veniaga de dia.

Na base, havia sobretudo mulheres que faziam um contrabando de subsistência e social. Levavam um ou dois quilos de café, toucinho e traziam azeite.  

934 c 38-perto regato-60.JPG

rota do contrabando - em s. gregório

 

 

MELGAÇO, OS SENHORES DO CONTRABANDO

melgaçodomonteàribeira, 18.05.24

928 c 139-Ponte-177.bmp

MEMÓRIA DO CONTRABANDO E EMIGRAÇÃO CLANDESTINA EM MELGAÇO:

PATRIMONIALIZAÇÃO E MUSEALIZAÇÃO

O CONTRABANDO

Lídia Aguiar

CIIIC-ISCET

Para o sociólogo Albertino Gonçalves, o contrabando é uma ação intrinsecamente ligada à fronteira, da qual a população de Melgaço soube tirar partido em função da sua situação geográfica. Três quintos deste concelho confinam com a Galiza, sendo 22Km de fronteira terrestre e 39Km de fronteira fluvial.

Certo é que ela, em muitos momentos, constituiu um importante motor económico para o sustento das famílias. Homens, mulheres e crianças, carenciados ou abastados, todos participaram, à sua maneira, nesta atividade. Na vida de fronteira, a profissão mais procurada era a de contrabandista (Gonçalves, 2008).

A verdade é que o contrabando foi evoluindo por ciclos. No arco temporal a que este estudo se refere, inicia-se com o período da Guerra Civil Espanhola (1936 – 1939). Dado o contexto político assumido por Espanha, este país viria a ficar neste período (desde 1936 até alguns anos após o final da II Guerra Mundial), com as suas relações comerciais com o estrangeiro completamente cortadas. Deve-se entender que a Guerra Civil Espanhola, foi um dos mais violentos e cruéis conflitos da história. Opôs os republicanos, então no governo desta nação, aos Falangistas, grupo de tendência fascista e comandado pelo general Francisco Franco. Terminou, em 1939, com a vitória do general Franco, que impôs um regime ditatorial de direita. Entretanto, tinham-se verificado mais de 400 mil mortos; prejuízos enormes na agricultura; a destruição de prédios, igrejas e casas em várias cidades. Neste mesmo ano, iniciou-se a II Guerra. O general Franco tomou uma posição pró nazi, fação que viria a ser derrotada neste último conflito. Por esta razão, a Espanha, vê-se impedida, pelos países vitoriosos, em aceder aos mercados comerciais internacionais, com normalidade.

Foi pois, a economia subterrânea que forneceu o país vizinho de tudo quanto podia e lhe era solicitado: bens de primeira necessidade, café, aço, peças de automóveis; de tudo um pouco passou quer pelas batelas do Rio Minho, quer pela raia seca, diga-se Planalto de Castro Laboreiro.

“Depois da Guerra tudo ia para a Espanha. Eles não tinham nada. Eu era gaiato pequeno, mas lembro-me bem de ouvir a minha mãe e a minha avó contar isso. Depois de 45, finda a guerra, houve muita convivência com os galegos. Isso das fronteiras não afetava nada. Os guardas fechavam os olhos. Ia de tudo para lá: sabão, sal, azeite, imagine que até carros velhos iam, pois eles não tinham nada. Daqui ia muito pão, pois os fornos comunitários trabalhavam todos os dias” Adelino Esteves – Castro Laboreiro – 29-10-2013

O meu pai guardava café. Tinha café cru em sacos grandes e café Sical já embaladinho. Vinham espanhóis de muito longe buscar, mas os guardas eram muito maus. Era a ditadura. Esta gente levava de tudo: café, açúcar, amendoins, até sabão, linhas e velas, tudo lhes servia para levar. Depois da Guerra foi mesmo uma miséria. Até gente de Vigo vinha cá buscar coisas”. Glória de Jesus Pires – Cevide – 23-1-2014

A partir de 1955, Espanha começa a sua recuperação económica. Havia já passado 10 anos após o final da II Guerra, pelo que os mercados comerciais se começaram a abrir a este país, que rapidamente aproveitou as oportunidades oferecidas. O contrabando toma então dois sentidos, já que a diferença cambial começa a favorecer os Portugueses na compra de bens em Espanha. As trocas comerciais intensificam-se. Para que, neste novo contexto, o contrabando seja bem-sucedido a boa organização tornou-se essencial. Aparecem, então, as primeiras redes bem organizadas, conduzidas pelo que a população ainda hoje denomina “Os Senhores do Contrabando”.

“Foi então que vieram os Senhores do Contrabando: Sr. Freitas, Sr. Alexandre, o Rita dos Casais. Esse tinha uma batela no rio e o cunhado Miguel e ainda o Maia de S. Gregório” Glória de Jesus Pires – Cevide – 23-1-2014

Alguns destes “Senhores do Contrabando” organizaram-se em consórcios, criando verdadeiras redes que atingiam todo o país e se alargavam igualmente a Espanha. Estas associações eram bastante complexas. Envolviam muito capital e muitos homens e mulheres a trabalhar para elas (carregadores, condutores, bateleiros, fornecedores, intermediários e informadores). Os meios logísticos também eram fundamentais, como as batelas, carros, camiões, radiotransmissores. Perante esta complexidade, era essencial que a rede fosse flexível e estivesse preparada para agir perante os imprevistos. Um dos mais perigosos, era sem dúvida, a patrulha da Guarda-Fiscal (Gonçalves, 2008).

Tudo poderia estar bem organizado, mas o grande sucesso das cargas esteve sempre dependente de conivências da Guarda-Fiscal. Era, pois, normal os guardas-fiscais fazerem, eles próprios, uma contabilização do despacho das mercadorias, na hora da carga, para depois receberem a sua parte do negócio.

“Eu trabalhei para os Senhores do Contrabando, o Sr. Freitas, o Sr. Alexandre, o Rita dos Casais e o Maia de S. Gregório. As pessoas aqui do regato trabalhavam por uma miséria. Carregava 50Kg a 75 Kg de caixas atadas por cordas. Os guardas chegavam quando o camião já estava quase carregado, para verificar a quantidade e receber o seu. Por vezes ainda ajudavam a carregar. Digo-lhe eu que estava presente”. Antero Pires – Cevide 23-1-2014

Todos os recursos de fuga às autoridades de pouco serviriam sem a conivência das próprias. Neste contexto, verifica-se que estes consórcios vão sofrer mais apreensões longe da linha de fronteira, quando os interessados transportavam as mercadorias para as cidades como Braga, Porto ou Lisboa (Gonçalves, 2008).

“O último contrabando que por aqui existiu foi o das bananas. Carregou-se muita banana. Só na altura em que veio para cá o Tenente Abrantes, o conhecido Zeca Diabo, é que tivemos de cortar um bocadinho, que esse não alinhava. Mas depois tudo continuou. De Ponte da Barca até ao Porto é que era tudo mais complicado. Sabe como é, o pessoal via muitas carrinhas a sair daqui serra abaixo e a coisa dava nas vistas (…)”

João António Abreu – Melgaço 22-1-2014

O contrabando evolui por ciclos. Em Melgaço, o café foi um dos ciclos mais longos, dado Portugal ser excedentário neste produto, devido à produção que lhe chegava das suas ex-colónias. Um outro ciclo importante foi o do gado, que se inicia na década de 60 e perdurou praticamente até abertura das fronteiras. Este tomou os dois sentidos. Para Portugal vinham vacas e para Espanha seguiam vitelos. Este grande ciclo do gado coexistiu com o último grande ciclo, ou seja, o das bananas, tendo este tido início só no início da década de 70.

Juntamente com estes produtos, ao longo dos anos as mercadorias contrabandeadas foram muito diversas. Desde o tabaco, gado suíno e ovino, bacalhau, azeite, ouro, prata, cobre até peças de automóveis inteiros que depois eram montados em Espanha. De tudo um pouco passava ora num sentido ora noutro, utilizando quer a raia seca quer as batelas do Rio Minho.

A mulher contrabandista assumiu um papel importante. São astutas por natureza, ou porque a vida assim as fez. Na sua larga maioria entregavam-se ao contrabando por conta própria: ovos, galinhas, café, e na perspetiva inversa, farinha e azeite para Portugal. Numa época mais tardia, peças de vestuário, perfumes, chocolate e bacalhau. Era normal elas recorrerem a peças de vestuário apropriadas para disfarçar o transporte de mercadorias mais contrabandeadas. Também o uso de longas tranças enroladas lhes permitia esconder no cabelo peças pequenas. O que foi muito usado para o tráfico de divisas e joias (Gonçalves, 2008).

O tráfico de divisas, também conhecido por bolsa negra, era largamente utilizado pelos emigrantes espanhóis, que face à ditadura do seu país, estavam impedidos de enviar as remessas de dinheiro diretamente às suas famílias. Desta forma, este era depositado em Portugal e levantado pelos contrabandistas que em seguida o passavam ilegalmente para Espanha e o distribuíam aos familiares dos emigrantes.

“Ir a Espanha era um trabalho para quem não tinha medo à vida. Por vezes tinha de se fazer mais quilómetros para fugir aos guardas, é que nós não podíamos repartir com eles. Os melhores dias eram os de nevoeiro ou chuva miudinha. Assim eles não andavam pela serra. Fomos ganhando para ter para a casa; ia então buscar, bacalhau, azeite, chocolate, baunilhas e tudo o que me encomendassem, assim ganhava o meu vendendo porta a porta. Lá ia eu com o carrego à cabeça e os meus filhinhos pela mão. Era uma vida bem dura. Mas lá nos governamos com uns tostões. Sim que os nossos governantes só (…)” Maria Emília Domingues – Cousso 7-1-2014

O contrabando foi um negócio lucrativo, mas efémero. Enquanto durou, criou muitos comércios e alimentou muitas famílias. Deve-se compreender que constituindo uma economia paralela, os seus lucros nunca foram orientados para o desenvolvimento local. Permitiram, no entanto, uma sobrevivência condigna a uma população pobre, que vivendo num território limítrofe, dependia de uma parca agricultura e pastorícia de subsistência (Gonçalves, 2008).

REVISTA CIENTÍFICA DO ISCET

PERCURSOS & IDEIAS

Nº 7 – 2ª SÉRIE

2016

928 b 68-Brasão de armas de Portugal-85.JPG

 

MELGAÇO, CONTRABANDO E CONTRABANDISTAS

melgaçodomonteàribeira, 17.02.24

927 c 99-Mareco-141.JPG

castro laboreiro  mareco

 

MEMÓRIA DO CONTRABANDO E EMIGRAÇÃO CLANDESTINA EM MELGAÇO: PATRIMONIALIZAÇÃO E MUSEALIZAÇÃO

EXPLORAÇÃO DE VOLFRÂMIO

Lídia Aguiar

CIIIC-ISCET

Em Melgaço, como em tantos outros concelhos do norte e centro do país, a exploração de volfrâmio veio proporcionar um novo alento para as economias locais. Para as populações, a exploração deste minério constituiu uma segunda fonte de rendimento (a primeira era o contrabando), abrindo, mesmo que momentaneamente, expectativas de melhores condições de vida.

Em Castro Laboreiro a exploração do volfrâmio teve uma maior dimensão, do que em outros lugares. Terá começado já durante o período da I Guerra Mundial, tendo tido um grande pico durante a II Guerra. Neste caso foi levada a cabo predominantemente por populares, que acorriam ao Planalto de Castro Laboreiro, no lugar de Ceara, onde foram abrindo várias galerias.

Os populares vendiam-no no contrabando, maioritariamente já em Espanha. Verificou-se, no entanto, que durante o período da II Guerra, foram os Alemães os grandes compradores. Eles aguardavam os homens no sopé do planalto com os seus camiões prontos para carregar o minério. Cada homem alcançava um rendimento médio de 8 contos por dia. Este montante subiria bastante mais se ele tivesse a sorte de encontrar um bom filão.

Segundo o informante Filipe Esteves, morador em Castro Laboreiro, as mulheres tiveram nesta época um papel primordial. Dirigiam-se em grupos para as zonas mineiras, onde apanhavam as pedras que caiam das grandes cargas, ou algumas que elas próprias conseguiam apanhar, por se encontrarem mais à superfície. Dirigiam-se, então, para uma levada, onde lavavam e peneiravam o volfrâmio. Este mineral, preparado pelas mulheres, era vendido exclusivamente a um dos mais conhecidos contrabandistas da zona: o Mareco, ligado a um dos grandes consórcios.

No ano de 1955, estas minas acabam por ser registadas pela Companhia Mineira de Castro Laboreiro, com sede no Porto. O manifesto mineiro foi de João Cândido Calheiros, morador na freguesia de Prado, encontrando-se, este registo, no Arquivo Municipal de Melgaço, no Livro de Registos (Volfrâmio).

“Lembro-me bem do tempo do minério. Vieram para cá muitos homens, de muitos lados, apanhar aquelas pedras. Eram assim umas pedras muito negras, tão lindas que elas eram. Eles ficavam cá a dormir. Ganharam muito dinheiro naquele tempo.

E as mulheres daqui também para lá iam, coitadinhas. Era contudo, um trabalho muito pesado, pois apanhavam as mais pequenitas e iam lavá-las ao regato. Deram-lhes um dinheirinho, ai isso eu sei bem que deu”. Rosalina Fernandes – Castro Laboreiro – 29-10-2013.

Com a Companhia Mineira de Castro Laboreiro a dominar a larga maioria das minas, a população, em geral, perdeu os lucros avultados que até então conseguira.

Este fenómeno pode-se constatar em muitas outras zonas mineiras, ligadas ao volfrâmio, do norte e centro do país. Findo o negócio do volfrâmio, a população habituada a ter uma vida melhor, não mais a encontra no contrabando. Continuava a ser uma atividade plena de riscos e da qual não era possível obter um rendimento certo. Ao trabalho duro, o melgacense não tinha medo. Com a fronteira mesmo ao lado, com horizontes mais alargados, o convite à emigração era forte. Encontrou-se, deste modo, a grande alavanca para a mobilidade social (Castro&Marques, 2003).

 

REVISTA CIENTÍFICA DO ISCET

PERCURSOS&IDEIAS – Nº 7 – 2ª SÉRIE

2016

 

OFFICE OF STRATEGIC SERVICES

WASHINGTON D. C.

6 july 1945

DOCUMENTOS DESCLASSIFICADOS EM 1987

 

Manoel José Domingues – Mareco

Manoel José Domingues de Castro Laboreiro enviou ilegalmente volfrâmio, ouro e moeda por Espanha para os Alemães e ainda transacciona actualmente barras de ouro. Os seus sócios eram o Barros da Costa, o tenente Walter Thcebe, Artur Teixeira, Manoel Lourenço de Melgaço, António Esteves, Francisco Esteves, Manoel Pereira Lima e Adolfo Vieira de Monção. Antes da guerra as suas propriedades em Castro Laboreiro ascendiam a 200,000 escudos. Neste momento é detentor de propriedades avaliadas em aproximadamente 4,000,000 escudos no concelho de Melgaço e tem contas bancárias em Melgaço e Valença. No início deste ano o Domingues foi apreendido na posse de 17 barras de ouro no valor de 550,000 escudos. Não lhe aconteceu nada por causa da sua prisão. Os membros do Governo Português actual protegeram-no bem, e ele tem muita influência.

 

AeC

927 b 49-DSCN7745-Seara-79.JPG

castro laboreiro  seara

CONTRABANDO E CONTRABANDISTAS

melgaçodomonteàribeira, 30.09.23

837 b amigas.jpg

 

CONTRABANDO PELA RAIA SECA DO LABOREIRO

OS TIPOS DE CONTRABANDO E OS CONTRABANDISTAS

 

Américo Rodrigues

 

O contrabando, numa terra que sempre teve dificuldade em dar pão aos seus filhos, num tempo de guerra (36-45) e fascismo (Franco e Salazar), foi deveras importante, desenvolveu localmente o comércio e estatutos sociais.

Aqui praticou-se sobretudo o contrabando “às costas” e o contrabando feito com muares – machos e mulas. Cada homem levava em média 25-30 quilos e as viagens duravam, às vezes, horas, ou mesmo dias e noites. Os animais transportavam uma centena de quilos e normalmente não passavam a raia delimitadora dos dois países.

O contrabando de camião surgiu quando da abertura das estradas em terra, uma na serra do Laboreiro, que ligou Portelinha aos Portos, e a outra, a actual estrada de fronteira, da Vila à Ameixoeira. Tal tipo de contrabando é por isso recente, e contava com a cumplicidade da Guarda-fiscal, que engordava à manjedoura da actividade, sem qualquer ética ou princípio de classe.

Apesar da dificuldade em formatar esta actividade, considero que existem três tipos de contrabando distintos.

Um contrabando familiar, de subsistência, exercido principalmente pelas mulheres e filhos, que esporadicamente deslocavam-se ao outro lado da fronteira, às lojas, para se abastecer de bens de primeira necessidade para a casa: azeite, bacalhau, uns sapatos, pimento, sabão, etc. Podia acontecer até irem trocar batatas por feijões ou milho.

Outro contrabando, já mais profissional, é encabeçado, na maioria das vezes por comerciantes da zona. Compram e vendem de um lado e do outro da raia, com “amigos” do ofício. Para isso, contratam grupos de cinco, dez ou mais pessoas (familiares ou vizinhos) para irem “ao outro lado” ou à raia, a pé, por vezes com animais de carga, buscar e levar os produtos. Para os locais é um contrabando de subsistência que ajudava a enganar os tempos de miséria e privações. Homens, mulheres e rapazes, depois dos trabalhos do dia a dia, no campo e no monte, levam as cargas pela calada da noite aos locais combinados.

O mais famoso e o mais bem sucedido dos contrabandistas foi “O Mareco” de Várzea Travessa. “O Frade” das Coriscadas talvez seja o segundo da hierarquia, no entanto são conhecidos de todos: “O Carqueijo” de Padresouro, com loja em Padresouro e depois na Vila, “O Mochena” das Eiras, com loja nas Cainheiras e depois na Vila, “O Chimpa” de Várzea Travessa, “O Albano” “Pereira” com loja nos Antões e depois na Vila, “O Varanda” de Portelinha, ou o “Nicho” da Vila.

Estes homens não fizeram vida de emigrante (alguns partiram à aventura mas regressaram novos) como era moda na sua geração. O contrabando é a sua profissão desde muito cedo. Alguns já contrabandeiam em plena guerra civil espanhola. Melhoram bastante a sua condição de vida, poupam e compram quintas por todo o alto Minho. Chegam a investir na banca portuguesa. A maioria dos Castrejos formados (os primeiros), por universidades portuguesas, estudantes no final dos anos 50, é descendentes deles. Estes homens gozam de um estatuto social superior e pela primeira vez os seus filhos passam a pertencer à classe média portuguesa. O Mareco é mesmo um dos homens mais ricos entre o rio Lima e Minho (norte de Portugal).

Ao longo do século vinte, nos lugares mais próximos da fronteira são referenciadas muitas lojas de contrabando. Recordo aqui a loja do “Chastre” em Dorna, a do “Bernardo” na Assureira, a do Manuel “Maceira” no Rodeiro, natural de Várzea Travessa, a loja dos Antões de António “Carrapiço”, a loja do Outeiro de Domingos “Bernardo”, natural das Falagueiras, mais tarde comerciante na Vila, ou a loja das “Cordas” (que foi para o Brasil) no Outeiro, sita no prédio com o nome de Casino. O negócio era com galegos, e era vê-los curvados de sacos de café às costas em direcção à raia.

O contrabando dos anos setenta e oitenta é em grande escala. Gado e bananas são os produtos mais conhecidos. Da velha guarda restam “O Frade” e “O Albano”, que ainda contrabandeiam, quase por gosto e obrigação, mas com eles, estão reformados da França ou ex-emigrantes jovens, que disto fazem modo de vida. Há mesmo contrabandistas de outras paragens, como o Salvador da Gave. Na estrada asfaltada fazem uso de camiões e as vacas entram aos milhares pela fronteira, com destino a todos os matadouros do norte e centro do país. As bananas abastecem todo o mercado nacional.

Confessa um contrabandista: “em 1984, numa noite normal podia ter de lucro 2000 euros”. As famílias mais pobres e até alguns estudantes jovens ganham dinheiro todas as noites “a passar vacas” ou a carregar caixas de bananas. Os Guardas-fiscais reclamam parte dos lucros. O dinheiro circula a rodos.

Na maior parte das vezes os produtos eram enviados, recebidos e geridos por redes situadas em muitas vilas e cidades da Espanha e de Portugal. Estas redes faziam acordos com estes homens, conhecedores do terreno, das pessoas e das forças militares.

Tudo acabou nos inícios dos anos 90. Os últimos foram “Os do Ribeiro”, família Pires, do Ribeiro de Baixo.

Deixo aqui uma nota de nostalgia para a contrabandista a retalho, “Tia Resaura”, de nome Rosana, galega, que viveu sozinha até ao final da vida, no lugar da Assureira (inverneira de Castro Laboreiro), que de manhã ia comprar “peças” de trigo, chocolate, azeite, galhetas, e mais, à loja da amiga Luiza no lugar galego de Pereira, para venda aos Castrejos, e à tarde deixava algum guarda fiscal em turno, quentar-se em dia frio, ao lume da sua lareira, oferecendo-lhe copa ou café acompanhado dos deliciosos e açucarados doces galegos.

 

NEPML – NÚCLEO DE ESTUDOS E PESQUISA DOS MONTES LABOREIRO

 

Boletim Cultural nº 8

Melgaço, 2009