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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, HISTÓRIAS DE VIDA III

melgaçodomonteàribeira, 05.10.24

937 c 80--Foz do Rio Trancoso.-105.JPG

foz do rio trancoso

OS PATRIMÓNIOS ALIMENTARES NAS ROTAS DO CONTRABANDO

Lídia Aguiar

Através de mais esta história de vida se pode confirmar a distribuição dos patrimónios alimentares desde a fronteira até às grandes cidades. Clarifica-se, também, a colaboração dos guardas fronteiriços e dos problemas que começavam a surgir quando os camiões se afastavam geograficamente das zonas de fronteira para se dirigir nomeadamente à cidade do Porto, apesar de levarem sempre batedores a verificarem se a estrada estava livre. Porém, as autoridades longe da fronteira já não tinham a mesma conivência com estas redes. Contudo, quando se entrou em contacto com um patrão espanhol com uma grande rede montada em Portugal, logo se percebeu que não seria bem assim:

Aqui o contrabando passava tudo pelo Trancoso. O café foi a primeira mercadoria mais importante. Nós depois vendíamos tudo para Ourense. Eu trabalhava muito com o Mareco de Portugal. Tinha todas as noites muitos homens aqui a carrejar para os camiões. Numa só noite carregava uns 20 a 30 mil quilos de café.

Daqui para lá cheguei a mandar amêndoa e muita pescada. Nem imagina os camiões de pescada que eu mandei. Cada camião de 20 mil quilos dela e não ia só um por noite. Era os do Eixo que me compravam.

Aqui só se vivia do contrabando. E os guardas também viviam do mesmo, recolhiam a nota e marchavam, tanto os portugueses como os espanhóis. Aqui não se vivia de outra coisa, era a única indústria que existia. Aqui costumava-se dizer que “todos os porcos gostavam de farinha”.

Agora já morreram quase todos, do lado de cá estou eu e um moço que mora ali adiante. Dos portugueses acho que morreram todos. Espere, acho que ainda é vivo o João da Esquina, mas que foi morar para o Porto.

Henrique Piña – Notaria – Galiza – 18-2-2014

O senhor Henrique sempre viveu em Notaria, Espanha, geograficamente situa-se, também, na margem do rio Trancoso, bem ao lado do Posto de Fronteira de S. Gregório, este, do lado de Portugal. Como se pode verificar as grandes redes sabiam como ultrapassar mesmo longe das fronteiras. Pelas quantidades que são referidas pode-se concluir que tudo era vendido nas grandes cidades, com larga predominância na cidade do Porto.

Quem finalmente nos esclarece sobre esta questão, sem deixar qualquer dúvida como era possível fazer seguir os camiões até ao seu destino é a descrição seguinte:

(…) Também cheguei a andar com o meu carro a abrir caminho aos camiões que iam carregados. Tentava-se ir pelas estradas da serra, mas uma vez mandaram-me parar; viram-me os documentos, abriram-me a mala, o capot do carro, já estava a ferver:

- Querem que eu vire o carro?

Lá me mandaram embora, mal cheguei à frente dei a volta e voltei no sentido contrário, tinha de avisar os camiões. Mandaram-me parar outra vez:

- Então o senhor volta para trás?

- Ora essa, eu vou para onde quero, ou é proibido?

Lá me deixaram ir. Toca de abrir a toda a velocidade para avisar os rapazes que vinham nos camiões. Todos se esconderam como podiam para os montes. Um, coitado, entrou lá num sítio tão apertado que nem podia abrir as portas. Era vê-los a fugir que nem ratos, coitadinhos. Mas o jeep que viera atrás de mim ainda apanhou alguns, mas foi fácil, umas notitas e tudo se resolveu, tinha de ser.

José Avelino Castro – Alvaredo – 10-12-13

A história de vida do senhor Avelino está recheada de memórias do contrabando. Impossível aqui transcrevê-las todas, fica, no entanto, a nota, embora já falecido, deixou o seu testemunho de vida gravado em vídeo e representa na atualidade um instrumento fundamental para a recuperação de rotas do contrabando, muito em particular a rota do café, pelo rio Minho. Foi, ainda, fundamental na ajuda que prestou às mulheres contrabandistas que arriscavam a vender os produtos alimentares. Deslocavam-se a Espanha para os comprar e depois vendiam porta a porta em várias áreas de Melgaço.

Comecei com 29 anos, logo que me casei. Ia eu e mais umas colegas a Espanha, trazíamos umas coisitas que depois andávamos a vender pelas portas. Era muito longe. Era mesmo um contrabando de subsistência. Quando acabava aquela carga lá íamos buscar mais. Outro trabalho não havia, aqui não havia fábricas nem mais nada, além da lavoura que se fazia para o gasto da casa. Trazia então, chocolates, bacalhau, arroz, umas bolachas de baunilha. E era muito fácil vender cá, porque nem toda a gente lá ia, pois que julga, isto era trabalho para pessoas que não tinham medo à vida, aí que levávamos cada corrida dos guardas!

Lá em cima em Alcobaça, já se via bem ao longe e logo os víamos, havia que esconder no meio dos tojos e das giestas e fugir pelos carreiros. Por vezes fazíamos mais quilómetros só para fugir deles, não era nada fácil a vida. Nós não lhe pagávamos, porque o nosso ganho não dava para repartir com eles, como faziam os grandes patrões, para isso o nosso contrabando não dava não. Mas devo dizer que mesmo nos guardas havia pessoas compreensivas e boas. Por vezes alguns mandavam a gente não andar na estrada, para não os comprometer.

Assim este contrabando foi dando para sustentar a casa e criar os filhos.

Emília Domingues – Cousso – 7-1-2014

Emília Domingues representa a emergência da mulher no contrabando. Alheias às grandes redes, iam por conta própria e vendiam a quem lhes encomendava, pois como ela própria afirma, ir a Espanha era na altura para quem tinha coragem. No período de verão, as encomendas aumentavam, fruto dos hóspedes que se alojavam nas termas de Melgaço e ansiavam por chocolate espanhol ou pelas bolachas baunilha, inexistentes em Portugal nessa época. Era pelas lavadeiras de roupa dos hotéis que estas mulheres faziam chegar estes produtos tão ansiados a quem vinha das grandes cidades.

Era lavadeira, lavava a roupa dos hóspedes dos hotéis. Onde eu levava o contrabando era no meio da roupa lavada dos hóspedes. Eu lavava no rio Minho, comprava a mercadoria às contrabandistas e vendia um pouco mais caro aos hóspedes, a diferença era o meu ganho. A minha mãe ia à raia, levava ovos, café. O meu pai fora para Buenos Aires e deixou-a. Também ajudei a cordear café, aqui no rio Minho, para Espanha. Foi assim que ajudei a minha mãe a ir sustentando a casa.

Graças a Deus tive sempre sorte, quer no trabalho de lavadeira quer nos negócios de contrabando. Naquele tempo bem se governava a vida. Era uma alegria.

Maria Martins – Peso – 14-11-2013

Através da história de vida de Maria, contata-se o engenho e a arte das mulheres em fazer chegar os produtos de contrabando aos seus clientes. Todos ficavam a lucrar e encaravam a vida com maior alegria.

Chegados às grandes cidades, nomeadamente no caso do Porto, conseguiu-se uma entrevista que nos explicou o difícil circuito nesta cidade. Áurea, foi morar para a então vila de Valongo, a cerca de 15 km da grande cidade, com os seus padrinhos, em casa alugada, por cima de o que na década de 50 do século XX se designava de “loja”.

Foi aí que conheceu a D. Maria, dona da “loja”, mulher de grande despacho e empreendedora. Para ali se tinha mudado, após o falecimento do marido, tendo ficado a cuidar de três filhos. Abandonou a mercearia da Foz do Douro, na rua Padre Luís Cabral, repleta de bons clientes e foi morar para Valongo, terra de mineiros e de pão.

A necessidade de criar os seus três filhos, obrigou-a a procurar um lugar mais discreto para receber as mercadorias que lhe chegavam dos contrabandistas da fronteira. E recebia de tudo. Bacalhau, bom óleo, passas, arroz, farinha branca. Daqui enviava aos clientes da Foz do Douro, que, entretanto, tinham deixado as encomendas na mercearia da Foz que ficara ao cuidado do seu irmão. Por outro lado, Valongo começava a crescer industrialmente, pelo que aí criou outro ciclo de clientes, nomeadamente padeiros, ansiosos por aceder à farinha branca para cozer o pão de boa qualidade e que grande procura tinha.

Ahh, como ainda me lembro de ir buscar a regueifa bem quentinha!!! Entregavam pela janela e depois era sempre a correr pela rua acima.

Áurea Meireles – Valongo – 22-11-2014

Finalmente consegue-se perceber que as pequenas mercearias eram as grandes distribuidoras dos patrimónios alimentares nas grandes cidades. Porém, como D. Maria faria entrar as mercadorias na cidade a partir de Valongo, continua a ser uma incógnita. Sabe-se que ela poderia usar o comboio, ou uma camionete de carreira. Os meios de transporte chegavam ao centro da cidade do Porto. Mas, no entanto, deve-se relembrar que nesses tempos a cidade tinha postos próprios de cobrança de impostos nas principais entradas da cidade. Daí que nos afigura que alguma artimanha existiria que, com a sua morte, não mais foi possível desvendar.

Através de diversas entrevistas e conversas que se proporcionaram pelo trabalho de campo que se desenvolveu no concelho de Melgaço, sabe-se que um supermercado, na esquina da rua Sá da Bandeira, no Porto, há muito encerrado, era propriedade de um dos grandes patrões do contrabando, que assim constituiu, ele mesmo, a sua rede de distribuição na cidade.

Na realidade esta rede de patrimónios alimentares contribui, para que as populações da raia tivessem acesso a um rendimento suplementar, sendo que em simultâneo, foi a única forma que as populações das cidades, com poder de compra, acedessem aos produtos, sendo que se viveu épocas de grandes carências, em que as importações, fruto da ditadura instalada, estavam muito limitadas.

   laguiar@iscet.pt

Revista Turismo & Desenvolvimento

Nº 33

2020

937 b 16-Cevide - Vista da Frieira, Espanha.-26.JP

cevide vista da frieira (galiza)

 

MELGAÇO, HISTÓRIAS DE VIDA I

melgaçodomonteàribeira, 21.09.24

935 b Castro Laboreiro - Perto do Ribeiro de Baixo

montes laboreiro

OS PATRIMÓNIOS ALIMENTARES NAS ROTAS DO CONTRABANDO

Lídia Aguiar

Rosalina, pacatamente, fazia renda na biblioteca de Castro Laboreiro. Com 77 anos, para lá se desloca nos dias frios de inverno, já que em sua opinião, aí está mais quentinha. Fez questão de dar o seu testemunho, frisando bem que nunca foi contrabandista, embora, como todos os habitantes desta freguesia, foi muitas vezes às compras a Espanha, tendo por isso sido vítima da violência dos guardas, principalmente dos carabineiros. Sublinhou que quando ia nunca retornava pelo mesmo caminho. Era uma questão de segurança, a guarda podia ter visto ela a passar para Espanha e aguardar o seu regresso. Deste modo, quando encetava a volta a Castro Laboreiro escolhia um caminho alternativo.

Eu nunca fui contrabandista pois tinha muito que fazer nos campos e que tratar do gado. Mas claro que ia a Espanha comprar umas coisitas que nós procurávamos sempre o mais barato. Lembro-me bem do azeite, que era mais óleo, aquilo até era branco, mas era barato. Lá íamos então ao Pereiro, à Luísa, vinha em latas de 5l, se nos apanhavam tiravam-nos as coisitas e os guardas espanhóis ainda nos batiam.

(Rosalina Fernandes – Castro Laboreiro – 20-10-2013)

A D. Rosalina indica-nos que nunca entrou em grandes rotas de contrabando. Praticou o ato para sustento da sua própria família. Era hábito as mulheres juntarem-se em grupo, para mais facilmente se furtarem ao controlo das autoridades das fronteiras.

Isolina da Luz, também abrigada do frio na biblioteca de Castro Laboreiro, entra na conversa:

Eu só trabalhei no do gado e mais tarde no das bananas. Mas sei de quem trabalhasse com contrabando de azeite, farinha, milho, ovos (os ovos iam para Espanha em saias especiais que as mulheres vestiam e disfarçavam na sua roupa). Outro contrabando forte foi o do café, esse ia em mulas até à fronteira e depois os galegos vinham busca-lo. De noite eram umas 4h a andar. E também ia dinheiro, muitas vezes escondido nas tranças do cabelo ou na roda das saias. Também fui muitas vezes às compras a Espanha. Mas aí tinha de vir tudo muito bem escondido e havia que escolher bem os carreiros que usar. Era bem difícil. Os guardas, quer os portugueses quer os espanhóis se nos apanhavam tiravam-nos tudo. Mas valia a pena ir lá comprar, pois era tudo muito mais barato.

(Isolina da Luz – Castro Laboreiro – 20-10-2013)

É com D. Isolina que temos acesso a indicações sobre o contrabando alimentar mais antigo e que mais perdurou na fronteira luso-espanhola: o café. Ela descreve a primeira fase deste tráfico, feito por mulheres, dissimulado em coletes costurados de forma especial, vestidos como de roupa íntima se tratasse. Quanto aos ovos disfarçados na roupa, referia-se Isolina a saias rodadas com sacos disfarçados de pregas, onde enfiavam ovo por ovo, até ao máximo de 5 ovos em altura. No que se refere ao café em maiores quantidades, como se verá posteriormente, o primeiro transporte utilizado foram as mulas.

Dada a dificuldade em breve os próprios galegos se deslocavam através do rio Trancoso e o levavam às costas:

No tempo da guerra ia para Espanha muito amendoim, açúcar e café. O meu pai é que foi do tempo mais antigo. Ele sim, fez contrabando de café para Espanha. Lembro-me que vinha muita gente buscar o café e de muito longe, até de Cortegada. Faziam com o saco de café cru, uma mochila para pôr aos ombros, mas tinham muito medo dos carabineiros e dos guardas portugueses também, que naquela altura os guardas eram muito maus. Também levavam do café já embalado, era o Café Sical. Mas por aqui passava muita coisa, que depois da guerra havia falta de tudo em Espanha. Chegou a vir gente de Vigo, eles tinham de procurar pela vida. Quando a vida em Espanha começou a melhorar, então também passou a vir mercadorias de lá. Lembro-me das uvas passas e do bacalhau no Natal. Aqui toda a gente passou a andar nisto, era a única sobrevivência. Mas valha-me Deus, muitos morreram no rio, que às vezes ia alto e as batelas eram fraquinhas e viravam. A carne também se ia lá buscar. É verdade, que vinha muito gado para cá, mas era velho, que o nosso gado novo, esse ia para lá. Isso sei eu bem, que o meu marido ainda andou a ajudar a passar alguns. Então toda esta zona ia lá comprar a carne, mas era contrabando. Até o pão era um problema. Aqui em Cevide não chegava o padeiro, apesar de isto ser muito povoado, não era como agora que a menina vê. Do outro lado do regato havia uma loja que vendia e nós chamávamos a senhora para nos trazer o pão. Atirávamos uma guita e ela amarrava e mandava assim pendurado por cima do regato. Mas os guardas quando viam a guita logo a atiravam ao regato. Por vezes, já estávamos tão habituadas que ela nos atirava mesmo por cima do regato. Mas então, estávamos condenados a não comer pão? É que ir a Melgaço era muito longe e não havia transportes.

Glória Pires – Cevide – 23-1-2014

   laguiar@iscet.pt

Revista Turismo & Desenvolvimento

Nº 33

2020

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fronteira de amenjoeira - castro laboreiro

 

 

MELGAÇO, VIAGEM PELA RAIA

melgaçodomonteàribeira, 24.12.20

86 regato trancoso.JPG

 rio trancoso

MEMÓRIAS DE TRANSGREÇÃO

Preservam-se memórias de outros tempos em pequenos museus – em Melgaço, Vilardevós (Ourense), Ciudad Rodrigo (Salamanca), Oliva de la Frontera (Badajoz) e Santana de Cambas (Mértola). Frente à escassez de um produto ou a grandes diferenças de preços ou de carga fiscal, sempre houve quem abrisse caminho entre giestas e estevas, rochas ou tufos, regatos ou rios.

Na freguesia de Cristóval, em Melgaço, perto do marco de fronteira número 1, Lurdes Durães podia ficar dias inteiros a contar estórias. A mulher, de ágil memória nos seus 73 anos, costuma dizer que nasceu no meio do contrabando: “Depois da guerra civil, aos espanhóis fazia falta, sabão, unto, toucinho e outras coisas de comer.” O pai dela “tinha um comerciozito a dois ou três quilómetros” A mãe dela via espanhóis a entrar e a sair de uma loja ao lado de casa. Saltavam as pedras do rio Trancoso e subiam pelos terrenos dos avós de Lurdes. Era ela ainda bebé quando a mãe arrumou a mobília num canto da sala, de uma tábua fez um balcão, mandou vir “unto, toucinho, sabão – as coisas que os espanhóis vinham buscar” – e pôs-se a vender.

A ninguém causava remorso o contrabando. Aquilo até podia ser crime, mas não seria pecado, dizia-se em Melgaço. Quem era o lesado? O Estado. O que era o Estado? Ali não se via Estado a não ser na sua forma repressiva. Estava Lurdes casada havia um mês quando o marido lhe disse:

- Temos de ir a Ourense!

- Agora, nesta hora, que estou a fazer o comer?

- Já vimos! Vamos e vimos depressa.

Puxou-a da cozinha para a sala, para que ninguém ouvisse o que tinha para lhe dizer, nem visse o que tinha para lhe mostrar.

- Tens de levar este ouro.

- Como vou levar isso tudo?

- Ao pescoço.

Eram muitos fios de ouro. Tantos que Lurdes não sabe. Anuiu, um tanto assustada. Colocou” para aí 20 ou 30 fios” ao pescoço e meteu os restantes na carteira. Estava uma verdadeira minhota. Dir-se-ia prontinha para ir às festas de Nossa Senhora da Agonia, em Viana do Castelo.

- E se nos prendem? – perguntou.

- Não! O ouro é teu. Ninguém te pode proibir de o levar. Podem assaltar a casa. Andas sempre com ele.

“Eram as nossas desculpas”, conta ela, sentada na cozinha da casa que ainda agora habita. O apurado conhecimento do terreno e o suborno pago aos guardas não explicam tudo. Toda a gente se conhecia. No contrabando andavam familiares, amigos ou vizinhos dos guardas. Nas décadas de 1960 e 70, alguns, como Lurdes e o marido, até misturavam contrabando com auxílio à emigração clandestina. “Tínhamos esconderijo no carro e levávamos uns quilinhos de café.”

O 25 de Abril de 1974 não acabou com o contrabando. Lurdes e o marido ainda fizeram muito negócio depois da Revolução. Levavam louça, cerâmica. Traziam televisores, aparelhagens. Tanto susto apanhou. Tantas vezes se sentiu à beirinha do fim. E, mesmo assim, tem pena que tudo tenha acabado. “Devia voltar outra vez. As aldeias estão a ficar sem gente. A gente das cidades não quer vir para as aldeias. O que vem fazer? Os nossos novos têm de emigrar ou de ir para as cidades…”

 

Ana Cristina Pereira (texto)

Adriano Miranda (fotografia)

 

Jornal Público (Online)

15 de Junho 

 

 

 

 

 

 

PORTUGAL DE PERTO

melgaçodomonteàribeira, 14.09.19

651 - port perto.jpg

 

Os últimos dias da minha viagem foram de solidão invernal. Era já fim de Novembro de 2010 e poucas pessoas habitavam quer a zona da serra da Peneda quer o planalto, em Lamas de Mouro ou Castro Laboreiro. Quando alcancei o Santuário de Nossa Senhora da Peneda às cinco da tarde, vindo do Soajo, não encontrei ninguém. O hotel ao lado do Santuário fechara para remodelação. À porta da igreja, uma vaca pastava pachorrenta, só incomodada mais tarde por uma cadela que teimou em me acompanhar.

Em Lamas de Mouro e depois em Castro Laboreiro, um vento gélido fustigava a montanha e havia quem já previsse neve para o fim-de-semana seguinte. Na manhã do meu último dia de viagem, escolhi uma estrada estreita assente em território português mas virada para a Galiza para chegar a Cevide, a última etapa. Lembro-me que ainda suportei pedras de granizo e chuva muito fria. Era domingo e os altifalantes da Igreja de Cristóval emitiam indiferentes a missa para os dois lados da fronteira.

Ironia do destino, em Cevide, freguesia de São Gregório (*) e concelho de Melgaço, terminei a viagem a conversar com antigos contrabandistas, um português e outro galego, amigos de longa data. Recordaram a passagem de bananas, café e arroz ainda nos anos de 1980. O fim da actividade ditou a desertificação do local, mais uma terra marcada pela emigração. «Isto aqui morreu, aqui não há futuro…», desabafava o ex-contrabandista Manolo, em Frieira, do outro lado da fronteira. Na ponte internacional, Mário Olímpio, meu anfitrião em Cevide, apontava para o meio do rio Minho: «Estás a ver, ali mesmo no meio do rio? Ali é a linha de fronteira.»

 

(*S. Gregório não é freguesia. Cevide e S. Gregório pertencem à freguesia de Cristóval)