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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

CAPELA DA SENHORA DA ORADA – II

melgaçodomonteàribeira, 15.03.14

 

Pormenor da Capela da Orada

 

 

RECONSTRUÇÃO

 

 

   Disseminados por toda a igreja de Nossa Senhora da Orada deixaram os lapicidas certos elementos informativos acerca de esta casa de oração. No aparelho regular e enfileirado das paredes não ficou pedra sem carregar com a sua assinatura: uma pequenina sigla, gracioso símbolo para afirmar o seu trabalho.

   E numa das pedras aparelhadas da testeira do ocidente, do lado direito do pórtico principal e à altura dos olhos de qualquer homem, gravaram a buril um convite à leitura, uma abreviada inscrição: «Prior monachorum de fenalibus istam ecclesiam fundavit».

   No interior da igreja, junto da porta lateral do sul, em algarismos romanos insculpiram também uma data – M CC L XXX III.

   Ora os conventos de frades beneditinos – e Fiães nesse tempo observava a regra de São Bento – eram governados superiormente por um Dom Abade. Mas como este não podia atender pessoalmente a todas as exigências conventuais, a Ordem impunha-lhe vários colaboradores e um deles e o principal era o Prior, com atribuições latas quase um “acter ego” do Dom Abade. Aquele letreiro exterior refere-se a esta entidade claustral, pois revela ter sido um prior do Convento o fundador da Igreja.

   Era então D. Abade do convento de Fiães Frei João que, precisamente em 1245 comprou em Eiró uma vinha à senhora Elvira Petri de Rouças. E era a graça do Prior, Petro Aries, pois tendo intervindo como testemunha num documento de compra e venda, também feito em 1245 e conservado a folhas 55º do célebre Livro das Datas, seu nome e cargo declinaram: «Petro arie, priore ipsius monasterii.»

   E aquela outra inscrição no interior da capela, marcando a Era de César; fixa também o ano do nascimento de Jesus Cristo; aqueles algarismos romanos – 1283 – correspondem ao ano de 1245.

   A dificuldade está agora em seguir as obras da construção, a par e passo da sua feitura. A construção de quase todas as igrejas começa pela capela mor, ensinou o P.e Manuel de Aguiar Barreiro, hoje prestigioso Cónego da Sé Primacial de Braga.

   E conforme esta lição, se aqueles algarismos romanos estivessem em qualquer pedra da abside, isso significaria terem por ali principiado as obras em 1245. No sítio onde se encontra a pedra carregada com a inscrição dos algarismos há-de afirmar terem iniciado ou terem concluído as do corpo da igreja naquele ano. Não gosto de adivinhas e no entanto vou pela hipótese do acabamento, porque a indicação daquela era é o fim lógico do Conto do Pedreiro. E tal é ele:

   Certo dia encarregaram-me de fazer esta obra. Ergui a capela mor; principiei o corpo da igreja pelo lado norte; fiz em seguida a testeira e declarei quem me encarregou de fazer a igreja. Agora cheguei ao fim do trabalho e corre o ano de 1245. Nestas pedras que o sol há-de calcinar no decorrer de séculos, deixei eu ficar toda a minha alma de artista e de crente.

   Nos dois corpos da fachada principal, separados pelo ressalto de simples cornija modilhonada, a ocupar todo o espaço entre os botaréus dos ângulos, esculturei as arquivoltas da porta reentrante, quase em ogiva, assentando-as em três colunas de cada lado.

   Se é linda a entrada do templo; se está proporcionada à fachada; se a fresta cimeira, reentrante também, de colunelos e arquivolta ornamentada de cabeças de cravo lhe dá realce e se no cimo sobressai a cruz terminal, sei-o eu e há-de dize-lo a posteridade.

   Se com simples ornatos deixei ficar muitos modilhões da cornija, outros transformei em pregadores da doutrina de Cristo.

   – Só Deus é Deus e todos os louvores lhe são devidos, lá está o músico a dize-lo.

   – Deus é uno, mas também é trino, afirmam-no as três pinhas reunidas no mesmo galho.

   – Ide à Eucaristia! Significa-o a cabeça do animal com o bolo na boca. E como este é o maior milagre de Cristo, repisa o ensinamento a pipa sem a sapa.

   – Exerçam a caridade, proclama-o o pelicano ferindo o peito.

   – Mas fujam dos vícios e nomeadamente da luxúria e da gula, gritam-no dois modilhões.

   – Lá estão simbolizadas a Eternidade e a Virgem Mãe de Deus e dum modo especial como esta doutrina vem nos Evangelhos e é ensinada pelos bispos e pelos Abades de Fiães.

   Tudo isto fiz com certa elegância, mas a todos os trabalhos sobreponho o tímpano da porta setentrional.

   Não é nenhuma obra de arte aberta e filigranada, que o duro granito o não permitiu; é contudo uma peça interessante, onde mais cresceu e se evidenciou o meu sentimento artístico; um mimo, onde o simbolismo é mais profundo e a lição mais viva; uma prenda rica dada aos frades de Fiães pelo meu coração agradecido. Assim eles a interpretem:

   – Quem come da árvore da vida não morre. Vigiai e orai, ó vós outros, quer sigais a vida activa, quer a contemplativa.

   Esta igreja fala à alma do crente em todos os sítios: é um livro aberto. No futuro há-de ser lido, como o eu li agora.

   O conto do mestre lapicida acabou.

   Mas se já existia na Orada em 1218 uma igreja que ainda estava de pé em 1240 e até chegou a ser um kermitologium ou eremitério para os frades de Fiães, essa igreja primitiva desapareceu depois de 1240, quer a arruinasse o tempo, quer aqueles frades, por pobre ou não representar para eles qualquer interesse de maior, a demolissem. No seu lugar mandaram construir a actual. Esta é, pois, uma reconstrução da primitiva e data de 1245.

 

(Publicado em Notícias de Melgaço entre 3/6/1956 e 22/7/1956)

 

 

Obras Completas

Augusto César Esteves

Volume 1  tomo 2

Edição Câmara Municipal de Melgaço

2002

pp. 427-429

 

CAPELA DA SENHORA DA ORADA – I

melgaçodomonteàribeira, 08.03.14

 

Capela de Nossa Senhora da Orada

 

 

A PRIMITIVA IGREJA

 

 

   A meio da encosta dum monte sobranceiro ao Rio Minho, nos subúrbios da vila de Melgaço; ali onde a velha estrada romana tomava fôlego para trepar às alturas de São Gregório e, no cabo de Portugal, perdido o alento, descer para beijar as águas do Várzeas; ali onde a natureza, trajando quase sempre galas, convida o viandante ao descanso a fim de na retina de seus olhos levar a saudade do sítio; ali onde o homem gostosamente se deixa embevecer pelos mil encantos criados pelo vistoso tapete a seus pés dia a dia estendido por Deus, grande quadro pictural onde um fio de água ou uma corrente caudalosa passa, no fundo, com reflexos de prata e deixa as margens vestidas de terras de cultivo e de montes escalvados a mostrarem a sua nudez vegetativa ou a farta cabeleira demonstrativa da pujança da terra mãe, ali erguia-se, já nos tempos anteriores à nacionalidade talvez, um templo em honra de Nossa Senhora da Orada.

   Pelo menos recolhida foi nas crónicas monásticas esta tradição, que também dá a igrejola em ruínas no tempo de D. Afonso Henriques e por ele reconstruída.

   Não se pode negar uma certa probabilidade a esta na parte referente ao primeiro rei português, tanto mais quanto é certo Orada ser reguengo e portanto propriedade de el-rei.

   Que o sítio pertencia à série de reguengos di-lo abertamente a Inquirição de 1258 e até conta como ele foi usurpado ao património real e dado a um Convento, sem ao menos o Vigarius da terra ter escrito no Rol o consagrado – « Perdit Dominus Rex illud » – , E assim o Senhor Rei perdeu o prédio:

   « … Item, disseram que Dom Suerio Ayras tinha a Terra da mão de el-rei Dom Afonso 1º, e filou um homem no mosteiro de Fiães e enforcou-o, e por isso filou esse sobredito Suerio Ayras Santa Maria da Orada, que era reguenga de el-rei, e deu-a ao Mosteiro de Fiães.

   Item, veio o rei Dom Sancho I a Melgaço e filou Santa Maria da Orada para si, e deu a Fiães por ela Figueiredo e cem maravedis; e ora têm, os frades de Fiães, essa Santa Maria e Figueiredo, e não sabem por que os têm. »

   O rei não teria conhecimento da espoliação nem tão pouco, em dias da sua vida, haveria dado aos frades de Fiães a Orada, julgar-se-á lendo este velhíssimo documento de 1173, confirmado por D. Afonso Henriques, o seguinte: « … pro remedio anime mea atque remissione omnium peccatorum meorum. vobis domno iohanni abbati de fenalis, atque universis successoribus vestris dono atque concedo totum quod in presentiarum habeo ab illa vite de melgazo usque ad terminum de chavianes quomodo claudit per cotarum, et inde usque ad minium.»

   E julgar-se-á assim porquanto o objecto da doação pode considerar-se um largo trato de terreno, com sesmarias e devesas, decerto, onde não faltaria a caça, nem as árvores, os matos e até os casais.

   O Cótaro e o Rio Minho, em pontos opostos, o afirmam; mas nos limites traçados por el-rei não é lícito incluir a Orada, a igreja ou o reguengo, já que neles se não fala e são hoje indeterminados por desconhecidos os primeiros pontos da referência indicados.

   … ab illa vite de melgazo…        … desde aquela vinha de Melgaço…

   Mas qual vinha? Onde estava situada a tal vinha de Melgaço? - … usque ao terminum de Chavianes…

   Mas onde começava e terminava o termo de Chaviães em 1173?

   Um documento deste género deve ser considerado irrelevante por quantos o queiram incluir entre os referentes à Orada, pensar-se-á. Mas, não é assim; porque o documento de Figueiredo, outorgado por Sancho I ao D. Abade de Fiães em 1189 contradiz tal conclusão, pois nele se lê: « Ego Santius dei gratia portugalie Rex una cum filio meo domno alfonso, et ceteris filiis. et filiabus meis. vobis domno iohanni abbati de fenalis, et fratribus vestris tam presentibus quam futuris de illis quatuor casalibus et demidio que habuimus in villa que vocant figueiredo Damus igitur vobis hoc quatuor casalis el demidium per remissione pecattorum nostrorum et per hereditate sancte marie da erada quam pater meus Rex domnus Alfonsus vobis dedit et nos dedimus eam poplatoribus de melgazo… »

   Ora se D. Sancho I deu aos frades de Fiães os quatro casais e meio de Figueiredo pela remissão dos seus pecados e pela herdade de Santa Maria da Orada que o meu pai, o Senhor Rei D. Afonso, vos deu, aquele velho documento refere-se ao reguengo da Orada e daí esta convicção: D. Afonso Henriques teve conhecimento da espoliação feita pelo seu Rico Homem e confirmou-a quando o julgou oportuno.

   Não fala, na verdade, nenhum destes documentos na igrejola da Orada, mas tal exclusão nada representa, porque o rei dando o todo, deu a parte e se tal redacção permitiu é porque nenhuma circunstância de momento impunha ao velho rei de Portugal qualquer referência expressa e forçosa à igreja.

   Mas seja como for a realidade, a existência da igreja nos dois primeiros reinados pode ser posta em dúvida. Não assim no imediato, porque é inegável a sua existência no tempo de D. Afonso II. Afirma-o um documento de 1218: « Ego frater Didacus didaci dei inspiratione dictus Abbos de fenalibus una cum Conventu ejusdem tibi Fernando martini facimus concambiam de media de una orta de vinea in loco qui vocatur sancto facundo in radice fontis et nos recepimus de te aliam circa ecclesiam Sancte Marie de herada… »

   Reafirma-o este de 1220: « judicibus delegatis causa inter monasterium de feanes ex una parte. et burgenses de melgatio ex altera super hemitagio sancte marie de Erade et suis terminis… »

   Confirma a informação de ambos um de Maio de 1240: « quod ego Johannes petri quod nomine bosco, et uxor mea Marina johannis pro remedio animarum nostrarum facimus cartam donationis et firmitudinis tibi abbati Martino et conventui eiusdem loci sancte Marie de fenalibus de nostra hereditate quam habemus videlicet unam vineam circa ecclesiam sancte Marie de erada sub carreira... »

   E corrobora os dizeres de todos três este do mesmo ano: « … quod ego petrus fernandi quod nomine nigro et uxor mea maior silvestri. pro remedium animarum nostrarum facimus cartam donationis et firmitudinis de duabus ortis qui sunt iuxta ecclesiam sancte marie de herada… »

   E, assim, se não fica de pé a tradição recolhida pelas velhas crónicas monásticas, comprovado está e fica ter existido na Orada antes de 1245 uma capela levantada em honra de Santa Maria da Orada, erecta, para nós os pecadores de hoje, sob a invocação de Nossa Senhora da Orada – palavra assim ortografada já no processo da Inquirição de 1258.

 

Obras Completas

Augusto César Esteves

Volume I  tomo 2

Edição Câmara Municipal de Melgaço

2002

pp. 425-427