NO LARGO DA CALÇADA II
largo da calçada, década de 80 do século xx
As camionetas desta empresa, localizada no mesmo largo, ligavam Melgaço a S. Gregório, Castro Laboreiro e Monção. Nesta altura, já havia muito que a Auto Viação deixara de servir a aldeia de Fiães por falta de rentabilidade. Os camponeses preferiam a furgoneta do Meio Quilo, mais acessível, que, além de Fiães, também servia os seus lugares raianos compreendidos entre Soutomendo e Alcobaça. Era o Quim, seu filho, que assegurava o transporte das pessoas e das mercadorias. O Estrela, como era óbvio, tornara-se o pouso diário dos fianenses.
Eu fazia parte dos cliente deste aprazível café. Sentado num dos bancos altos, ao lado da entrada para o balcão, dava uns tragos num fino e observava os poucos adventícios que se iam sucedendo; matava o tempo. Quase todos carregavam com diversos sacos refertos nas mãos. Uns entravam para se resguardar da chuva e saíam logo que o céu o consentia; outros dirigiam-se para o balcão, consumiam e retiravam-se oportunamente; outros, sentados, aguardavam pela hora de saída da respectiva camioneta ou pela chegada do Quim, que estacionava no início da avenida da Barbosa; e outros, ainda, os mais insolentes, serviam-se exclusivamente dos WC, como se fossem públicos.
Na primeira das três mesas situadas por debaixo da escada que conduzia ao mezanino, encontrava-se o Araújo, um empreiteiro que passara uns anos no Canadá. Na companhia de um camponês, falava para a sala, como de costume, tentando persuadi-lo de que era o homem que lhe fazia falta, o homem que respeitava os prazos fixados e que, questão qualidade, não encontraria mais barato.
A terceira mesa, ao lado do WC, encontrava-se ocupada pela popular Maria de Fiães, uma quarentona avançada. Amadora de boa pinga e de prazeres carnais quando a primeira lhe inflamava a libido, considerava-se uma mulher livre e assumida. Evidentemente que este comportamento discrepante tempestuava alguns, em especial os mais castos e beatos da sua paróquia.
À entrada, de pé no ângulo do balção, o Alfredo Nabiças, um pobretana provocador, gourmet inveterado de Três Marias, empenhava-se em perpetuar as caretas nauseabundas às quais havia muito as pessoas eram insensíveis.
Por detrás dele, na única mesa que ali havia, o padre Araújo corrigia deveres. O maço de Porto, encetado quando se sentara, ficaria por cima da mesa, amarfanhado, quando se levantasse.
O Martins, depois do ténue alvoroço observado entre o meio-dia e as duas da tarde, deixara ficar o Barbosinha na companhia do Abílio. O rapaz, quando tinha uns minutos, ia trocando umas curtas palavras comigo; falava-me da terra onde nascera, que lhe faltava, dos estudos e dos projectos que o motivavam. De momento, a sua ambição era aprender a tocar bateria. « Coisa natural para um brasileiro, pensei. Têm o batuque no sangue. »
Estava mesmo um dia repugnante. Os ladrilhos que cobriam o pavimento do café estavam cobertos de peugadas terrosas e húmidas e da água que escorria dos guarda-chuvas. Sentia-me entediado. A chuva dava-me o blues e a conversa do Barbosinha não era deveras estimulante. Lembrei-me de que tinha a ponta dum pica de erva no bolso. Fui ao WC dar umas passas. Agradava-me fumar, agradavam-me as sensações que a erva me fazia ressentir e agradava-me o bem-estar com que me invadia. Quando voltei a sentar-me, tinha a boca seca. Dei um bom trago no fino. Soube-me melhor.
Em Portugal, uns meses atrás, as substâncias alcalóides apenas eram conhecidas e consumidas por um círculo restrito de intelectuais, artistas e globe-trotters. O fim da guerra no ultramar, como lamentavelmente acontece com as tragédias belicosas desta dimensão, teve consequências terríveis. Entre elas, a mais ostensível foi, sem dúvida, o regresso brutal e constrangedor de uma multidão de colonos à sua pátria. Com eles, desembarcou uma quantidade apreciável de jovens, os filhos, que abandonavam a terra onde tinham nascido e vinham viver para uma que lhes era estranha e cujo solo muitos deles nunca tinham pisado. Alguns destes desarraigados, embebidos das tradições, dos rituais e das superstições dos amigos indígenas, trouxeram, no meio do cafarnaum que a urgência lhes impôs, sacos repletos de liamba. As diversas contrariedades e desventuras de toda natureza, encontradas por muitas destas famílias no país de origem, obrigou os filhos – que, em princípio, tinham trazido a droga para consumo pessoal – a comercializá-la. Foram eles que, de modo ocasional, democratizaram o uso de estupefacientes no país depois do 25 de abril. O enlevo, como era de prever, chegou a Melgaço.
Inesperadamente, vindo não sei de onde, ouço o Barbosinha cochichar-me ao ouvido:
— Que seja a última vez que vais fumar prà retrete, ouviste ?
Apanhado se surpresa, tentei mostrar-me espantado com a sua injunção. Ele sabia que fumava.
— Ó Barbosinha, eu não fumei na retrete! Quando lá fui já empestava a erva – retorqui-lhe com o ar mais natural que pude.
— Se calhar foi o Alfredo Nabiças! Não brinques comigo! – ironizou.
Não tinha fundamentos para me ilibar. Preferi optar pela discrição e, indiferente, disse-lhe:
— Pensa o que quiseres, estou-me nas tintas.
Passaram umas semanas. Nunca mais fumei no WC do Estrela e o Barbosinha esqueceu o episódio.
Uma sexta-feira de tarde, encontrava-me no mesmo banco com um fino diante de mim e a palrar com o Barbosinha. Distraidamente, meti a mão num bolso do blusão e os dedos tocaram num pica que ali alojara. Não sei como, mas lembrei-me do acontecido e veio-me ao espírito uma ideia genial para me reabilitar da acusação do Barbosinha.
Desci do banco e dirigi-me para o WC. Entrei na retrete, acendi o pica e dei duas passas leves. O cheiro não podia ser forte para dar a impressão de que não era recente. Regressei ao meu lugar, mas, antes de me sentar, interpelei o Luís.
— Barbosinha, vai à retrete e depois diz que sou eu que vou pra lá fumar.
Arregalou os olhos, saiu de trás do balcão como uma flecha e dirigiu-se para o WC. Foi entrar e sair. O seu rosto reflectia a cólera do impotente. O olhar vago, como quem procura desvendar mentalmente um hipotético culpado, ameaçou no seu brasileiro melodioso:
— Se apanho o filho da puta que vai fumar prà retrete!
Sentei-me, encantado. Jubilava intimamente.
Nunca mais fumei no café, e o Barbosinha ainda hoje não sabe quem é o filho da puta que fumava na retrete do Estrela.
António El Cambório