Manuel Igrejas, camisa branca, Casa do Minho, Rio de Janeiro. Ao fundo, painel de azulejos da autoria do Manel.
E os visitantes, ao mesmo tempo que saboreavam aquelas iguarias caseiras e estalavam a língua após cada gole de vinho que emborcavam da malga, iam desfiando o recado que os levara ali.
— O Joaquim está muito bem. Depois de muitos anos de trabalho, conseguiu comprar uma padaria à sociedade com outro patrício. Casou, não sabiam? É, faz pouco tempo que isso aconteceu.
O ramo de negócio da padaria toma todo o tempo, não dá para fazer mais nada, nem para escrever. A gente sabe dele porque moramos perto da padaria e sempre damos um dedo de conversa por sermos da mesma terra. Agora o irmão, o Abílio, nunca o vimos e nem sabemos o que ele faz. O Joaquim é que nos diz que ele também está bem. Eles se vêem amiúde, moram em bairros distantes e aquela cidade é um mundo de grande.
E a mãe, agora mais faladeira, desfiava o rosário de amarguras que o abandono dos filhos lhe causava.
— Aqueles malandros, depois que enviuvei e mais precisava de homens para amanhar a terra, foram mundo afora buscar fortuna fácil. Diziam que chegando lá no Brasil ficavam ricos e logo voltariam. Pois sim… Pois olhem que, se tivessem ficado por aqui, não lhes teria corrido mal. Mas não, foram para tão longe e já se fez um ror de anos, é sinal que não lhes correu tão bem assim. Se ao menos mandassem duas letras uma vez ou outra… Se tivessem ficado aqui, ainda que arranjassem família grande, por certo que todos viveríamos bem. O Armindo. O marido aqui da Júlia, depois que casou também foi embora, está na França. Que raios de homens que não sossegam no lugar onde nasceram, desde pequenos que o bicho de ir para longe os atormenta. Este ao menos ainda aparece aqui duas vezes por ano e, sempre que vem, dá uma boa ajuda no campo. Eles também não podiam fazer o mesmo? Foram lá para tão longe… Se mandaram lembranças para o Toninho é porque sabem dele, então têm recebido as nossas cartas. O que eles mandaram não precisava, ele tem tudo aqui, do melhor.
— Que é isso, mãe? Pelo menos valeu o agrado. Mandaram tantas prendas para o sobrinho que não conhecem. E o Toninho ainda não tinha relógio. E, se eles não escrevem, pelo menos já sabemos que recebem as nossas cartas.
— O que nos está valendo, duas mulheres sozinhas a maior parte do tempo, é esta criança que nos alegra o viver.
E aquela avó triste faz um afago na cabeça do Toninho que, afogueado, acabara de entrar, vindo das suas brincadeiras solitárias no meio dos pinheiros, como se adivinhava pela caruma que ainda trazia pegada na roupa.
— Tão esperto, é uma graça de Deus. Com cinco anos já está muito adiantado. Ensinamos-lhe tudo aqui em casa. Já conhece algumas letras e sabe a doutrina toda de cor. No outro domingo fomos à Igreja e o Senhor Abade ficou abismado com o que o Toninho já sabe. Disse que, se for duas vezes ao catecismo, já pode fazer a primeira comunhão. O pai ficou muito contente, quando soube, e mandou dizer que lhe vai trazer a roupa da França.
São tão espertinhas e caseiras estas crianças, mas, quando ficam gente, alguma os afugenta para longe, e quem os criou fica ao abandono.
E durante duas horas aquelas duas mulheres sofridas com a ausência dos filhos, marido e irmãos, desenrolam o interminável rol de suas amarguras não entendendo por que a vida dá e tira.
Dava fartura com os produtos da terra para comer e vender, um ou outro pinheiro vendido para madeira ou lenha também deixava um bom resultado, e a transacção de gado, venda de uns boizinhos, também produzia um bom lucro. Mas tirava a presença dos homens moços, ambiciosos, que não se contentam com o que Deus dá e querem mais. Cada vez mais, para se mostrarem e fazerem-se importantes.
— E aqueles malandros do Brasil nem escrevem…
Feitas as despedidas e a reafirmação de que o Joaquim e o Abílio estavam bem, reafirmação sem convicção, e que, em chegando ao Rio de Janeiro, instariam com eles para que escrevessem.
Aquelas mulheres ficaram satisfeitas e durante algum tempo talvez se considerassem felizes.
E aquele casal visitante, após o encontro que pareceu alegre, descia devagar, taciturno, acabrunhado pelas mentiras que haviam dito.
As mães têm sempre razão: os filhos homens, via de regra, são sempre uns desatinados. Mas os filhos, mesmo não dando notícias, nem sempre são ingratos. É Deus que os impele para longe de suas mães, talvez para lhe poupar outros sofrimentos que não os do abandono.
Como todos os portugueses que abandonam suas terras e suas famílias, por vezes com situação económica razoável, o Joaquim e o Abílio também largaram tudo, na flor da idade, através de uma aventura. É o desconhecido que mais atrai, a ilusão de uma vida diferente onde a fortuna será o resultado final… O lugar onde se nasceu é bonito mas por demais monótono e conhecido. Notícias de outros que se foram alardeiam progressos e riquezas, mas poucos, muito poucos, vêm demonstrar a sua melhoria e, quando vêm, não dizem as amarguras, os flagelos, as humilhações por que passaram para granjear algumas posses. E os moços, mormente os das aldeias, ficam estonteados e ansiosos por demonstrar que são capazes de sobrepujar os outros.
O Joaquim e o Abílio, depois de trabalharem quase como escravos durante alguns anos para um parente afastado, resolveram tratar de si.
Com os minguados trocados que conseguiram amealhar durante aquele tempo privando-se de tudo, compraram uma freguesia de pão. Todos os dias, com sol ou com chuva, empurrando o triciclo, sem domingos nem feriados, nos alvores da madrugada, faziam a sua via-crucis entregando o pão, subindo ruas íngremes ou transpondo escadarias.
Um dia, por qualquer banalidade, se desentenderam e o Abílio separou-se do irmão. Comprou um carrinho e foi ser carregador, transportando pesadas mercadorias entre bairros distantes, trabalho rude que exigia toda a sua força física.
Os anos rolaram, o Joaquim chegou a sócio daquela padaria, mas, um dia, a violência estúpida prostrou-o com um tiro no pulmão ao tentar evitar um assalto. Meu Deus, como é que alguém trabalhando arduamente e com honestidade anos a fio, privando-se de tudo para conseguir uma futura situação tranquila, vai entregar assim, sem mais nem menos, o produto de seu trabalho a dois vagabundos que nunca fizeram nada para merecer viver, só porque estão com um revólver na mão?
O Joaquim ficou vários dias entre a vida e a morte, escapou.
Recuperou-se fisicamente, mas a situação económica teve um retrocesso muito grande. Recomeçou tudo de novo. O Abílio, que já estava com táxi na praça, socorreu o irmão naquele infortúnio.
E aquele casal, terminando a descida, quase chegando ao lugar onde o automóvel os esperava, ainda meditava.
O Joaquim realmente ia lutando e novamente progredia. Resolvera não mais escrever. Não podia contar a verdade e não aguentaria ficar mentindo a vida toda. Preferível passar por ingrato e mau filho que dar tanto sofrimento à mãe.
O Abílio não queria ser um estorvo para o irmão, cabeça dura. Queria levar a sua vida por si mesmo, apesar da adversidade. Ajudado por uma companheira com quem vivia, desde antes do acontecido, andava de porta em porta vendendo vassouras, espanadores e outros pequenos utensílios.
Fazia algum tempo que também fora vítima de assalto em seu táxi, levou um tiro de raspão na cabeça. Recuperou-se, mas ficou totalmente cego.
ABALARAM MUNDO AFORA - Histórias e Depoimentos de Emigrantes
Colectânea de contos coligidos por M. Félix Igrejas
Supervisão do Dr. José Pereira Torres
Capa e ilustrações: M. Félix Igrejas
Edição: CASA DO MINHO do Rio de Janeiro
1988
www.minho.com.br