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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

OS MEUS LIVROS 6

melgaçodomonteàribeira, 03.05.25

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OCTAVIO CALDAS

 

Nasceu em Viana do Castelo, é casado e vive em Melgaço. Estudou na escola secundária da sua terra natal e, posteriormente, no CICCOPN, na cidade da Maia. Desde muito cedo que sonhava escrever histórias que despertassem paixões nos leitores. Além da escrita, tem interesse por áreas tão diversas como a mecânica, a eletricidade e o desporto. A Água da Fonte da Fraga é a sua primeira obra.

Octávio Manuel Alves Caldas

Cordel d' Prata

1ª Edição

Fevereiro 2024

 

OS MEUS LIVROS 2

melgaçodomonteàribeira, 07.03.25

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A fotografia de Álvaro Domingues revela-nos o seu olhar de geógrafo, de um observador atento à face  visível da transformação dos territórios. Documenta a paisagem que nos fala do que somos e dos espaços que habitamos. Os seus registos destacam um espaço urbano que resulta de um processo contínuo e que contraria a ideia da fixidez do lugar. Num tempo em que a transformação avança a uma velocidade avassaladora, por força do poder da ciência e da tecnologia, o registo e reflexão que nos propõe são tudo menos serenos. As suas fotografias e textos interpelam o nosso entendimento sobre a paisagem e sobre o tempo que vivemos.

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Título: Paisagens Transgénicas

Álvaro Domingues e Museu da Paisagem

1ª Edição

Maio de 2021

NUMA FRAGA, O COTINHO III

melgaçodomonteàribeira, 08.07.23

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(continuação)

 

O tempo foi mais amigo no regresso, algumas nuvens juntaram-se para acompanhar a descida, ameaçando borrasca para o fim do dia. Os mais velhos discutiam se choveria ou não, a jovem atreveu-se a aventar a hipótese de a chuva fazer nascer a água no coto e viu o olhar fulminante do guardião do grupo a mandá-la estar caladinha, não disse mas poderia ter-se ouvido que com coisas sérias não se brinca, ela não era nenhuma criancinha já mas também não tinha ainda idade para ter voz.

Parece que a desilusão de quem estava à espera de garrafas e garrafão de água santa foi maior do que a dos corajosos que tinham feito a subida ao monte para a ver com os próprios olhos e colhê-la com as próprias mãos. A notícia da falta de água correu pelo lugar inteiro e não faltou quem lembrasse a história de uma moça do Ribeiro, ou da Peneda, vá-se lá saber agora de onde seria. Estava a dita sentada no coto, à beira do pocinho e resolveu pentear-se. Naqueles tempos em que o tempo dedicado à higiene e embelezamento do corpo era escasso, pois a vida era só trabalho de sol a sol, da segunda a sábado, e o domingo era para ir à missa e lavar a roupa, mais trabalho portanto, as raparigas que sabiam que a aparência contava, aproveitavam muitas vezes parte do tempo em que vigiavam os animais no monte para se pentearem. Reza a lenda que a tal moçoila tirou os pentes da algibeira, desfez as tranças (naquele tempo toda a mulher honesta usava o cabelo entrançado e preso numa rosca na nuca) e começou a pentear-se. Todos sabem que para pentear uma cabeleira que raras vezes é lavada, são necessários dois pentes e água. Primeiro usa-se um pente com os dentes grossos e espaçados, um pente normal, por assim dizer. Depois, quando o cabelo já está todo desenleado, com o pente a deslizar sem resistência, utiliza-se o segundo, de dentes finos e muito próximos, havendo quem lhe chame um pente de chispar, talvez porque afugenta os piolhos, estes caem que nem chispas. Com este, para um pentear mais perfeito, convém usar água, que se espalha com a concha da mão sobre a cabeça ou se molha o pente dentro de um recipiente. Ora está-se mesmo a ver que a pastora que penteava os seus longos, muito provavelmente negros cabelos, à beira do pocinho da água santa, para não se molhar, mergulhou o pente na cova natural, deixando cair alguns cabelos. Vendo-os sobre a água e consciente de que estava a conspurcar um lugar e líquidos sagrados, depois de atar o cabelo, a rapariga afadigou-se a retirar toda a água da cova para a limpar. Para sua enorme surpresa, aquilo que ela esperava e que tantas vezes ouvira contar desde a sua meninice, não aconteceu. Em vez de o pocinho se encher de novo com a água pura e transparente que lá estava desde tempos imemoriais, começaram a saltar sapos e saramelas e ela fugiu, apavorada. Não sabiam contar como é que a água voltara depois ao local. Sabia-se, nisso ninguém de boa-fé duvidava, que por mais água que se retirasse, voltava a nascer mais e o poço estava sempre cheio e nunca secava. A convicção dos poderes daquela água fazia com que muita gente fizesse o difícil e demorado percurso para a ter em casa e dela se servir para usos mais ou menos confessáveis. Os desiludidos desta história é que não se converteram à lenda.

 

                                                                            Olinda Carvalho

 

Publicado em A Voz de Melgaço

Setembro 2014

 

UM AVIADOR MELGACENSE

melgaçodomonteàribeira, 19.02.22

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 parque rio do porto

 

Em 27 de Janeiro de 1948 num brutal desastre de aviação ocorrido na Caparica, próximo de Lisboa, morreu o 1º tenente aviador Rui de Barros e Brito, natural desta vila, filho da Sr.ª D. Isabel Desdemona Pita da Barros Brito e do Sr. Custódio da Costa Brito.

O 1º tenente aviador Barros e Brito, que nasceu em 1917, foi promovido a aspirante em Outubro de 1934, sendo um dos nossos primeiros e mais experimentados pilotos de linha, apesar da sua mocidade.

Quando começou a fazer serviço na Direcção Geral de Aeronáutica Civil, foi a Inglaterra estagiar na British Owerseas Airways, onde se familiarizou com a linha de África, que depois começou a percorrer como piloto da D. C. A. C. :

Quando na terceira viagem experimental da Linha Aérea Imperial, o Dakota comandado pelo comandante Eurípedes Silva, na viagem de regresso, teve um desastre em Bafatá, na Guiné, foi o 1º tenente Barros e Brito, comandando outro Dakota, quem foi a Bathurst, levar uma hélice e outras peças necessárias para a reparação do aparelho sinistrado, e trouxe para Lisboa os três passageiros que vinham nele.

Em 1941, foi louvado pela maneira corajosa como procedeu ao salvamento dos destroços de um avião danificado pelo temporal, nos Açores.

 

Padre Júlio Apresenta Mário

Júlio Vaz

Edição do autor

1996

p. 237

 

DOAÇÃO AO MOSTEIRO DE FIÃES EM 1157

melgaçodomonteàribeira, 11.12.21

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1157 Agosto. 19

 

Afonso Pais e seis irmãos e irmãs, juntamente com outros fidalgos e seus familiares, doam ao mosteiro de Fiães o espaço territorial do couto, especificando a linha limítrofe que o cerceia.

 

Manuel António Bernardo Pintor, “Doação de Afonso Pais e outros ao mosteiro de Fiães em 1157 (pergaminho inédito)”, Arquivo do Alto Minho, vol. 2, 1947, pp. 79-83 (reeditado em Padre Manuel António Bernardo Pintor, Obra Histórica I, edição do Rotary Club de Monção, Monção, 2005, pp. 19-23).

 

(No início tem o monograma usual xpistus = Cristo).  Em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo e em honra da beata Maria sempre Virgem e de todos os santos. Eu Afonso Pais juntamente com meus irmãos e minhas irmãs Pedro Pais, Egas Pais, Fernando Pais, Garcia Pais, Gudina Pais, Hónega Pais, Mór Pais, Maria Pais, Hónega Mendes, Mór Mendes. Eu Oroana com meus filhos Pedro Nunes, João Gomes, Álvaro Sarracines juntamente com meus irmãos e minhas irmãs. Eu Pedro Bauzoi juntamente com meus irmãos. Eu Nuno Dias juntamente com meus irmãos e irmãs. Eu Rodrigo Goterres com meus irmãos. Eu Ferrão Ventre com meus irmãos. Gonçalo Peres com seus irmãos. Fernando Nunes com meus irmãos. Pedro Soares com seus irmãos. Fernando Nunes com seus irmãos. Pedro Nunes com seus irmãos. Fazemos documento de segurança daquele monte que se chama Fenais, que nós resolvemos por vontade própria doar aos servos de Deus, Abade João e sua congregação, tanto aos presentes como aos que depois deles vierem e aí perseverarem na santa vida beneditina: possuam-no para sempre por direito de herança por nossa doação, pelas nossas almas e pelas almas de nossos pais, porque é breve a nossa vida. Estabelecemos-lhe limites a principiar em Penha de Ervilha, depois por Costa Má, até Curro de Loba, partindo pelo rio Doma, pelo vale Gaão, depois pelo outeiro da Aveleira, a seguir pelo Coto da Aguieira e depois desde o Vidual até Penha de Ervilha e fechou. Nós acima nomeados damos esta herança para exercer o culto de Deus enquanto houver um homem que o faça. Se for retirada do culto de Deus cada um receba o seu quinhão. Se vier alguém ou viermos nós, tanto da nossa família como estranhos, que queira violar esta nossa doação, seja excomungado e condenado perpetuamente como Judas traidor do Senhor.

Por estes limites que mencionamos concedemos (o monte) àquele mosteiro que está situado no referido monte de Santa Maria. Nenhuma autoridade nem homem algum se atreva a arrotear e lavrar (neste monte) sem ordem dos mesmos frades. Eis a pena que nós estabelecemos e outorgamos: restitua a mesma herança em dobro ou com suas melhorias e dois mil soldos para a Congregação. Reinando em Portugal o Rei Afonso com sua mulher a Rainha Mafalda. Vigário particular do Rei Gonçalo de Sousa. Na Sé de Tui o Bispo Isidoro. Senhor de Valadares Soeiro Aires. Era de 1195 no dia que é 14º das calendas de Setembro (19 de Agosto de 1157). Nós como acima dissemos a vós Abade João como a vossos frades nesta escritura de segurança por nossas mãos roboramos.

Como testemunhas: Soeiro, João, Pedro, Fernando, Munho. Pelo notário Pedro.

 

OS LIMITES DA FREGUESIA DE LAMAS DE MOURO E OS CAMINHOS DA IN(JUSTIÇA)

José Domingues

1ª Edição

Novembro de 2014

pp. 171-172

 

UM BENEMÉRITO DE MELGAÇO

melgaçodomonteàribeira, 19.06.21

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casa amadeu abílio lopes

PELO HOSPITAL

(A Voz de Melgaço, 15. 11.1963)

NO DIA DE REIS… TODO O CONCELHO PELO HOSPITAL!

No passado número do nosso jornal, lançámos a ideia dum novo cortejo para o nosso hospital. Faz-se por necessidade. Com a compra dos terrenos, para a construção do novo hospital, ficamos sem reservas, sem nada, para se acudir aos nossos doentes. E temos de contar com a construção do novo hospital, que esperamos se comece no próximo ano.

É uma batalha, em que todos os melgacenses temos de entrar. São precisos uns 1 000 contos. E para todos nós é tarefa que não custa.

Já não nos falta exemplos dignos de imitar-se, o do Sr. Amadeu Abílio Lopes e de Sua Ex.ma Esposa, de Chaviães, com a sua valiosíssima oferta de 350 000$00.

Nem nos faltam já dedicações, dignas de nota, graças a Deus. Mas é esta uma batalha em que todos, mas todos, temos de intervir.

Ninguém será contra. Quem o havia de ser, entre os melgacenses? – Quem? Se esta obra se faz para todos nós?! – Sobretudo, para aqueles que não possuem os meios de que nós podemos dispor, os pobrezinhos.

Está posto, mais uma vez, à prova o nosso bom desejo de servir a nossa terra. Aos Melgacenses, a todos, se pede nos ajudem. Se algum houvesse, não sabemos que o haja, mais desanimado, por favor, não desanime ninguém.

Vamos pois começar com os trabalhos.

Deus o quer! – É pela nossa terra.

Carlos

PS: No passado número do jornal, veio uma gralha, que nos prejudicou bastante. E assim, de Lisboa só nos deram para a compra dos terrenos, 50 000$00. E, nas vésperas da construção do novo hospital, dão-nos menos 18 000$00, para sustentar os nossos pobres doentes. Mas se todos os melgacenses nos ajudarem, tudo se fará.

Carlos

 

Padre Carlos Vaz: Uma vida de Serviço

Edição: Carlos Nuno Salgado Vaz

Coordenadores: Carlos Nuno Salgado Vaz

                           Júlio Nepomuceno Vaz

Braga

Julho de 2010

pp. 532,533

FRAGMENTOS DE VIDAS RAIANAS 35

melgaçodomonteàribeira, 05.06.21

 

O Manel não teimou; optou por ignorar a impertinência arrogante do filho. «Cabrão do caralho», cingiu-se a murmurar, escarrando para o chão e centelhando-o visualmente. Desandou e, pesadamente, dirigiu-se para o bar.

Aparentemente, não tinha interesse nenhum em ver a filha mas, ultimamente, desconfiava do seu ritmo de vida. Tinha um guarda-roupa assombroso e diversos pares de sapatos – tudo nupérrimo – e um sem-fim de produtos de maquilhagem de excelente qualidade. Portanto, nem episodicamente trabalhava. Tinha as suas suspeitas, os seus pressentimentos e sabia que não devia estar enganado. Mas isso comprazia-o pessoalmente.

Ver-lhe aquelas pernas bem feitas, as coxas carnudas e rijas, era uma psicose. Quando uma minissaia as realçava, ficava esgazeado e atiçado como fogo pelo vento. Eram tão aliciantes como as da mãe quando tinha a mesma idade. Perdia a razão, o corpo era fogo e uma lubricidade inexplicável incitava-o a perder-se entre aquelas pernas. Sentia calafrios e exsudava tanto como quando percorria a maldita ponte. O pavor de que se reproduzissem os momentos de folia desbridada e irrefreável, não muito distantes, convulsava-o e retinha-o.

Estacou à porta do bar, que estava escancarada. Tirou a boina preta e, com a mão, fingiu arranjar os cabelos compendiosos, antes de voltar a colocá-la.  O bar, edificado do lado esquerdo do salão de bailes, era estreito, mas tinha a mesma profundidade que este. De lés a lés, um balcão rústico de carvalho, feito com troncos e uma prancha; por cima, um abrigo de colmo do mesmo cumprimento; por detrás, a meia altura, uma exorbitante prateleira sustentava perto de duas centenas de garrafas de bebidas alcoólicas, de diferentes marcas, feitios díspares, tamanhos, épocas e países diferentes. Era o terreno dos aracnídeos: tinham fiado nelas umas incríveis variantes de rendados e de bordados refinados.  A limpeza não era o credo da casa.

O ar era brumoso, fumífero; o cheiro a álcool, pestilento; a música, surda, compelia os foliões a falarem ainda mais alto do que habitualmente.

Abrir caminho até ao balcão e pedinchar uma tigela de tinto foi deveras trabalhoso para o Manel. A barafunda era tal que teve de pacientar mais do que desejaria. Umectou os beiços e, com cara de hospedeira de bordo, consentiu que o olhar divagasse à sua volta. «O pessoal está todo bem», estimou com júbilo.

Era neste meio que gozava de uma dilecção desmedida pela vida sombria que era a sua. Para ele, embora sonhasse que devia ser constante, a alegria não era senão uma disposição puramente perceptível com periodicidade. Fez uma carranca como quem quer espantar os pensamentos grisalhos. Não era o local nem a ocasião para essas meditações. Queria alegrar-se, beber e comer até enjoar e regressar à casa, às tantas, cantando, como lhe aprazia fazer. Depois, sacudia a mulher para lhe acariciar o sexo até adormecer.

 

Nos dias de baile, o Manco exercia o papel de segurança com meticulosidade. Fazia rondas assiduamente: bar, comedor – sala de jantar -, cozinha e salão de bailes, sem alteração. Quando entrou no bar, o Manel hauria o que restava da segunda tigela. Saudaram-se num ápice; eram amigos de longa data e alimentavam um apreço recíproco.

Os suspensórios, que quase tinham crescido com ele, obviavam as calças de resvalar para o fundo da barriga. Os pés trazia-os invariavelmente calçados com pantufas castanhas.

Transpôs o balcão, onde uma das filhas e o filho caçula afrontavam os ressequidos festeiros. Ao deslocar-se, a manga esquerda da camisa marcava o compasso. Deu uma olhadela generalizada, mas não divisou nenhum desordeiro nem ninguém de relevância. Foi à esquina onde, por cima do móvel do tabaco, guardava a garrafa de branco e o copo; encheu-o e esgotou-o com imperturbabilidade. Enfiou um Ducados no canto da boca e pôs-lhe lume com um fósforo.

Para os clientes inabituais, constituía sempre um espectáculo riscar o fósforo com uma só mão. Segurava a caixa com o anelar, o mínimo e o polegar; abria-a, retirava o fósforo com o indicador e o médio, entre ao quais o mantinha firme; em seguida era só esfregá-lo na lixa.

Deu duas fortes chupadelas no cigarro e, depois de verificar mais uma vez que tudo estava em ordem, empurrou as portas vaivém da sala de jantar com a barriga – em algumas tarefas empregava-a como se fosse o braço faltante – e avaliou quantas mesas estavam ocupadas e com quantas pessoas. Havia algumas vazias, mas, vista a hora, a lotação era correcta. A mesa na qual estava o Cerdeira, conhecido como o louco de Quintela, despertou a sua curiosidade. Já tivera pegadilhas passageiras com ele. De estatura média, maxilas quadradas, era uma pilha de músculos. Com cerca de trinta e cinco anos, já tinha sido internado repetitivas vezes em instituições psiquiátricas.

Uma cerveja diante dele, fumava com placidez e nem os olhos levantou para o Manco que se achegara à mesa.

- Já pediste? – inquiriu.

Sem mexer, meio nauseado, retorquiu que não.

- O que queres então? – instou.

- Nada! – largou cruamente o homem.

O sangue aqueceu subitamente nas veias do Manco. Fosse quem fosse, execrava refutações num tom destes. Esmagou o Ducados com força entre os dentes para sofrear o descontentamento.

- Pois se é só para beber, tens o bar. Aqui é a sala de jantar ou não deste por ela? Não comes nada? O Cerdeira, sem se intimidar e sem, todavia, o mirar, deu uma passa no cigarro e, sussurrou enlanguescido:

- Eu, não, mas o meu cão sim – e apontou para debaixo da mesa.

Uma toalha de pano branca, salvaguardada por uma de plástico hialina, encobria as mesas e, em parte, ocultava-lhes os pés. O Manco teve de recuar e inclinar-se vagamente para poder ver por debaixo da mesa. De facto, um pequeno cão rafeiro regalava-se serenamente com o conteúdo dum prato.

Desta vez o sangue ferveu-lhe nas veias e acidulou. A mala hostia fez com que a bronquite crónica se manifestasse com a consagrada tosse produtiva e lhe anelasse a respiração. Dar uma iguaria cozinhada pela Vicenta, um manjar fresco e saboroso, feito na hora, a um cão, como se não fosse assaz bom para ele? Alguma vez pressentiria uma coisa destas? Era um desafio, uma agressão petulante. Talvez estivesse louco, como se dizia, mas isso não lhe dava o direito de insultar a sua comida e a sua mulher. Era coisa que nunca permitiria. Sem claramente se aperceber, estendeu o braço, cravou os densos e imponentes dedos da única mão no pescoço encolhido e bojudo do Cerdeira. Com metade da língua fora da boca, o estarrecimento era patente nas suas feições. O Manco, olhos arregalados pela cólera e avermelhados pelo álcool, clamou, esborrifando-o:

- Me cago en tu puta madre, maricón! Se não te agrada a minha comida, ninguém te força a pores cá os pés. Agora vires humilhar-me à minha casa, isso não! Comigo não brincas, hijo de puta! Sei que estás louco, mas eu estou-o mais do que tu, sabes?

O pobre demente sentia-se como o veado a quem o leão crava as fortes mandíbulas de imprevisto na garganta e, sem saber contra quê ou quem, não para de estrebuchar.

- Sais imediatamente da minha casa com o teu cão e não voltas a pôr aqui os pés. Percebeste-me, percebeste-me bem? – invectivou.

A interrogação foi um berro tão forte que, apesar do alarido vigente, as pessoas presentes na sala, assustadas, voltaram-se para assistir à cena.

Com um gesto seco, sacou-o da cadeira como se fosse uma caixa de cervejas, atraiu-o a si e projectou-o brutalmente contra a mesa desocupada que estava por detrás. A cena durou uns segundos. Desta vez, o estrondo originado ouviu-se no bar e algumas cabeças assomaram por cima da porta vaivém.

Sem revelar qualquer oposição, contenção ou mesmo fúria, o louco de Quintela deitou as mãos à cadeira que o acompanhara e, sem piar, pôs-se de pé. Com a mão, limpou o cuspo aspergido pela cara. Deu uma rápida visada ao adversário, como quem reconhece e aceita a sua superioridade, e dirigiu-se para o bar. O rafeiro, alheio à ocorrência, não interrompera a refeição; escoltou-o, portanto, com o osso de uma costeleta entre os dentes.

Pela reacção, ficara fortemente emocionado com a força excepcional, atípica do mastodonte que era o Manco. O Cerdeira, com o físico de estivador, sinzelado durante anos no porto de Vigo, se aflorasse a mais pequena chance, não deixaria de reagir da maneira mais violenta e inesperada. No fundo, o Sérgio, verdadeiro nome do Manco, fascinava-o; era uma massa que devia ser muito difícil de fazer vacilar, quanto mais derruir. Não ignorava, decerto, a sua supremacia, mas a avidez de o incitar para se aferir prevalecera, puxando-o a dar a comida ao cão.

O Manel, satisfeito, presenciava a zaragata com infinito prazer. Sorriu, com ironia, afixando os dentes podres, quando se afastou para passar o Cerdeira. Já tivera uns ligeiros aborrecimentos com ele quando trabalhara em Quintela.

- Que barulho foi este?

Desta vez, a Vicenta chegara atrasada e não pudera utilizar as suas capacidades de conciliadora. O Manco não contestou. Levantou a mesa e pôs as cadeiras à sua volta. A sua expressão repercutia o grosseirismo do gesto do Quintela. Propeliu as portas vaivém e penetrou no movimentado bar, não dando importância aos olhares de admiração e de respeito, com que o congratulavam os clientes.

- Foi uma boa lição que deste a esse bastardo, Sérgio – confessou-lhe o Manel, arreganhando a tacha e dando-lhe umas palmadinhas amigáveis nas costas.

Direccionou-se para de trás do balcão, pegou na garrafa de branco que deixara por cima do móvel do tabaco, e verteu o conteúdo no copo. Ficou meio. Dobrou-se, estirou a mão por baixo do balcão e recolheu outra.

Esse estúpido, esse apoucado do Cerdeira, com a sua louquice, exacerbara-o desmedidamente. Via-se condenado a beber mais do que de costume para sossegar a mala hostia que o invadira.

 

XII

No bar, por volta da meia-noite, o Benito do Capela juntou-se ao Manel; era um pobre diabo, companheiro e colega de trabalho ocasional quando lhe apetecia vergar o rinhão. Era precisamente o que mais pasmava o Manel: trabalhava quando queria, mas andava sempre bêbado. Quando o denegriam, comentava: «Vós viveis como se fosseis eternos, mas eu vivo como se cada dia fosse uma vida». Entendiam-se bem.

- Se tivesses vindo uns minutos mais cedo, cumprimentavas o teu amigo Cerdeira – brincou o Manel.

Mais ou menos da idade deste, era morgado e vivia com o pai, perto dali.

Também andava permanentemente de boina na cabeça, mas não pelo mesmo motivo que o Manel. Nunca tirara a boina em público, mesmo para coçar a cabeça. Escondia uma calvície precoce. A última vez que fora a Ourense renovar o bilhete de identidade, constrangeram-no a desguarnecer a cabeça para o medirem. Apavorado, indagou duas vezes, ante a perplexidade dos funcionários, se não podiam fazer de outro modo. Um moço da Notária que ali se encontrava detalhou, mais tarde, o que viu. O sucesso não tardou a entrar nos ouvidos da maioria dos malandros da região, entre os quais o Cerdeira. Uma tarde, no bar do Manolo, valendo-se do seu vantajoso físico, aliviou-o da boina, pondo-lhe a calva à vista. O Benito, paralisado pelo medo e pelas gargalhadas dos presentes, imprecou-o em silêncio e, a partir daí, fugia dele como da peste. Tinha um receio surreal do Loco de Quintela.

Era um grande pescador, dotado de amplos conhecimentos apenas superados pelos do Adriano. Como este, aprendera a compreender o rio muito antes da barragem vir a adulterar a região e impedir os peixes migradores de se deslocalizarem livremente.

Estava de bom humor. Àquela hora, naturalmente, tinham ambos a caldeira bem quente. Beberam umas chiquitas (tigelas) e o Manel, já meio nebuloso, contou-lhe a tareia que o Manco deu ao Cerdeira. Riram, radiosos. O ambiente do bar escalara e chegara ao cúmulo. Os cubalivres e as tigelas – maioritariamente – faziam chover uma hilaridade desenfreada. O Manco surgia, apreciava o ambiente, dava uma olhada nas notas que acolchoavam a gaveta e, encantado, prosseguia a sua ronda depois de ver o cu a outro copo de branco.

À uma da manhã, saíram e foram para a tienda do Biquitos, cem metros acima. Este brioso comerciante, pai do Chino, estivera expatriado mais de 20 anos no Brasil, onde conheceu a Glória. Pequena, gordinha e olhos puxados, parecia uma esquimó. O filho devia o epíteto à fisionomia legada da mãe.

Na sua cozinha, situada entre a especiaria e a sala de jantar, a Glória acomodava, até altas horas da noite, uns deliciosos pratos tabernais.

A sua especialidade eram os miúdos. Contudo, as bochechas de vitela, marinadas em vinho tinto com certos condimentos, representavam o pitéu mais solicitado. Tiraram muita clientela ao Manco porque, além da mulher cozinhar bem, praticavam uns preços honestos. Nos últimos dez anos de estadia nos subúrbios da cidade carioca, tinham explorado um pequeno restaurante o que os impregnou da simpatia, da alegria e dos gracejos representativos do povo brasileiro. Questão índole, eram a antítese da «Casa Manco».

O Manco, intratável, dizia aos clientes que lhe eram fiéis que a Glória cuspia no óleo para saber se estava quente. E terminava a frase com um expressivo «Me cago en Dios!».

Encomendaram duas doses de orelhas de porco cozidas, polvilhadas com uma pitada de pimento picante, nas quais se notava, todavia, uma leve ponta de sal. Comeram com sofreguidão, ao mesmo tempo que despejavam garrafas e motejavam. Era uma noite de regabofe, das que os dois adoravam quando o quadro era favorável.

- O outro dia – disse-lhe o Benito, hílare – o Seba (diminutivo de Sebastião) pediu-me para lhe ir arrancar as batatas dos dois campos que tem depois da ponte, do lado de cima da curva, sabes?

- Hã – hã grunhiu o Manel com a boca cheia.

Depois de uma ténue pausa, concatenou, risonho:

Então, perguntei-lhe quem as tinha plantado.

«Foi o Rique», disse-me.

- Sabes o que lhe respondi?

E deu uma gargalhada sonora.

- Que fosse pedir ao Rique, que sabia onde elas estavam! Se visses a cara que me fez!

Encostavam-se à parede, batiam com os punhos por cima da mesa ao mesmo tempo que gargalhadeavam.

Por volta das três da madrugada, saíram da mesa e do estabelecimento do Biquitos com dificuldade, atirando-se pela estrada abaixo a cantar em coro:

 

DE LA SIERRA MORENA

VIENEN BAJANDO

UN PAR DE OJITOS NEGROS

CIELITO LINDO DE CONTRABANDO.

 

AY,AY,AY, CANTA Y NO LLORES

PORQUE CANTANDO SE ALEGRAN

CIELITO LINDO LOS CORAZONES

 

Encostados a um automóvel, o Padre e o Chino fumavam um porro (charro) quando eles desfilaram claudicando. Apenas deviam estremar sombras.

- Que puta de cacetada levam! – admirou-se o Chino.

O Padre, enojado, cuspiu para o lado, como lhe tinha feito o pai.

O Chino, que tinha dado uma boa passa no charro, tossiu e acrescentou meio rouco:

 

Os promotores, que, naturalmente, eram os melhor servidos, esses, mostravam-se bastante discretos na abundância de bens locais. Mas os rumores de que possuíam propriedades aqui e ali, até em Espanha, à beira-mar, não deixavam lugar a dúvidas rapidamente. A jactância, beatitude profunda dos abastados, é uma das fraquezas mais traiçoeiras do ser humano; é uma faca à double tranchant. Os raros que tiveram o infortúnio de cair na reda da Justiça ficaram nus.

 

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 david de carvalho

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