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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

O BASTARDO V

melgaçodomonteàribeira, 08.03.13

 

 

   Félix continuava a viver do trabalho que aparecia e que dava para se manter, mas também a explorar a terra. Tendo ele o ofício de alfaiate, começou a procurar lugar onde instalar habitação e oficina. Aquando da sua partida de Ourense, Félix foi chamado à madre abadessa que, depois de advertências e recomendações, lhe entregou um pequeno pacote.

   Ajoelhando aos pés da madre, pediu-lhe a bênção:

   — A sua bênção madre.

   — Que Deus te abençoe, meu filho. E agora vai, vai com Deus, meu filho – respondeu a abadessa.

   Félix recuou, fechou a porta e suspirou. O pacote era pesado e algo tilintava lá dentro. Começou a suar quando lhe veio à ideia que ali poderia estar a sua vida. Sentou-se num banco do jardim dos claustros a pensar no que fazer e depois de algum tempo disse para si próprio: - Só és aberto quando Deus Nosso Senhor quiser! Agora sabia o que continha: uma carta de arrependimento – p*ta de m*rda, pensou - que devia ter sido escrita com vinagre tinto, e uma bolsa com umas moedas de ouro. O ofício na palma da mão.

   Fifi foi recebido por D. Zinaido no escritório – Dona Beatriz já há anos que se passara – e deu-lhe conta da sua preocupação:

   — D. Zinaido, o moço é a cara do dr. João, e pela idade que aparenta …

   — Falas-te com ele? – perguntou o senhor.

   — Ouvi mais do que falei, e se quer que lhe diga, tirando a cara, é mais um jovem galego a tentar a sorte por cá – responde Fifi com um sorriso.

   — Olho e ouvido aberto, que eu falo com a Mia e a Antónia e vamos esquecer o assunto. Mais alguma coisa Fifi? – sorriu com escárnio D. Zinaido que já sabia o que vinha a seguir.

   — D. Zinaido, se eu pudesse passar...

   — Na adega? Leva lá um cabaço e poupa-o.

   — Obrigado, D. Zinaido, vossa senhoria é como um pai – fazia vénias o Fifi.

   — Vai, vai e não te esqueças. Olho e ouvido aberto – recomendou o fidalgo.

   Foi a ultima vez que se falou de um assunto que tinha teias de aranha na história da família e preocupava menos que o atraso na floração das cerejeiras.

   A casa foi encontrada; com boa sala que dava para mesa de corte e máquina de costura, quarto e cozinha acanhados.  Uma saltada a Ourense e no regresso, bem atada num carro de bois, uma máquina de costura como nunca se vira por aquelas bandas e abertura ao povo de uma alfaiataria., benzida pelo abade com o Cintran a acolitar. E era ver os dois amigos nos dias de romaria a deslumbrar as moças com seu ar e vestimenta; vestir assim, só os ricos. Era vê-los bem perto do altar na missa de domingo ou a pegar o andor de Santa Maria em noite de procissão. Naqueles seis meses na vila estavam a lançar os caboucos duma nova vida.

   Álvaro, pousou o sacho que trazia ao ombro, passou um trapo pelo rosto suado, encarou o patrão e disse:

   — Patrão, tenho que ir à minha casa.

   — E o trabalho, Álvaro, quem o faz? – retorquiu o patrão de má catadura.

   — Patrão Gabriel, o senhor me desculpe, mas eu vou ainda hoje à minha casa e daqui a dois dias estou de volta. Perdoe, patrão, mas tem que ser – os olhos do homem brilhavam.

   O fidalgo Gabriel, que conhecia como ninguém os seus trabalhadores, sabia que o galego Álvaro estava numa aflição e merecia ser ajudado.

   — Daqui a dois dias aqui – disse o fidalgo virando-lhe as costas.

   Álvaro, galego de Santa Cristina de Valeixo, há anos a trabalhar para a família de D. Zinaido, dirigiu-se para o tanque para se lavar que ao romper do dia tinha que pôr pés ao caminho. Tinha tudo acertado com o irmão, de nome Albano e nomeada Silvano, negociante de peixe que duas vezes por semana carregava o burro em Vigo para alimentar a vila e arredores. Atravessou o Minho de batela, cortou por campos e pinhais e à hora do jantar estava sentado à lareira, a comer um caldo de couves e um naco de pão, a contar à família quem vivia em Melgaço.

   — E todos janotas! – diz Álvaro levantando-se para dar dois passos de dança.

   — Ai é? Amanhã vamos ver como é – gritou como pocessa a irmã Concepção, secundada pela irmã Filomena.

   Estas apresentavam barrigas proeminentes e não paravam de gritar, apontando o dedo ao irmão com ameaças e pragas pelo meio. Galegas de pelo na venta não demoraram a atravessar o rio de batela no Louridal e foram-se instalar na quinta onde trabalhava seu irmão. Quase clandestinas, as irmãs Costas, que sabiam muito bem não serem as únicas que em Santa Cristina se divertiram nas medas de feno ou atrás do canastro com os dois manganas, trataram de lhes deitar a mão. Álvaro passava o tempo de descanso em correria para a alfaiataria e daí para o Regueiro levando novas das irmãs que se resumiam a: - Estou prenha, vem ter comigo.

   Os apelos não tinham resposta e as irmãs não tinham paciência, já que viam a barriga crescer todos os dias.

   Ficar escondidas não era solução, tinham que aparecer.

   No domingo ao fim da missa - na Igreja de Santa Maria do Campo, para os lados da Feira Nova -, quando Félix, já Igrejas, se dirigia com o amigo Cintrão

que não Cintran para o almoço dominical, viram o caminho barrado pelas barrigas da Concepção, depois Conceição, e Filomena Costas.

   — Álvaro, temos cozido para o jantar, somos muitos, mas dá para mais um – disse a sorrir o Félix, enlaçando a cintura prenhe de Conceição.

   Era o primeiro de muitos, dezoito paridos e dez sobreviventes.

 

   O Félix Igrejas, mais tarde, optou pela nacionalidade portuguesa. Recebeu um dia a visita dum cidadão que o convidava a visitar Barcelos, onde alguém desejava conhecê-lo. A mulher dele, Conceição, não deixou ele ir, alegando que talvez quisessem eliminá-lo.

 

 

Para a história ficou a alcunha daqueles bons moços:

 

Os Pinantes de Santa Cristina.

 

 

PARA OS MEUS BISAVÓS FÉLIX E CONCEIÇÃO


O BASTARDO IV

melgaçodomonteàribeira, 08.03.13

  

Conceição Costas

 

      Aldeia pequena mas de terras férteis, com o Minho a passar por perto, milho e vinho em abundância mas também com a pobreza à porta, Félix praticava o seu ofício quando não havia trabalho no campo e Cintran estava sempre ocupado. Muito bem vistos pelo povo pelo trabalho que faziam, mais bem vistos pelas mocetonas galegas, fartas de ver sempre as mesmas caras; e quando Cintran assobiava aquelas muineras que até parecia duas gaitas de foles, até os cães se calavam. Desde Ourense que não viviam tão bem. Para os moços, eram tempos de felicidade, com trabalho, umas patacas e muitas namoradeiras. Hoje uma, depois a outra, até que resolveram que não era a vida que pretendiam e como o povo já falava – não eram cegos, surdos ou mudos -, estava na hora de partir, até porque as irmãs Costas não lhes davam um minuto de descanso. Essas mais que as outras.

      — Para onde? Qual o caminho, por aqui, por ali, por acolá? – riu-se o Cintran.

      — Por aqui! – a cara de Félix mostrava decisão e decisão já tomada – para o rio.

      — O rio? Portugal? – As gargalhadas do Cintran eram tais que as lágrimas lhe humedeceram os olhos – Vamos lá então que pior que isto não pode ser.

      Não sabia, ainda, o Cintran que o rio Minho não divide, antes une as gentes dum mesmo povo. Que Galiza e Alto Minho são irmãos na riqueza, na pobreza, no choro e na alegria. Se um lado é pobre o outro não pode ser rico. È celta.Foi ao romper da aurora que meteram pés ao caminho, uma trouxita na mão que haveres não abundavam, saltaram valados e atravessaram corgas até chegar ao coto de Mourentan onde descansaram, que o sol já ia alto e aquecia naquele inicio de verão.

      — E Portugal? – perguntou o Cintran, sorriso no canto da boca.

      — Andamos um pouco e depois é só atravessar o rio. Vamos preguiçoso… – riu o Félix, dando-lhe uma palmada na perna.

      Na margem do Minho, procuraram águas com pouca corrente e tirando a roupa que tinham vestida, fizeram uma trouxa maior do que a que traziam, ataram-na à cabeça e deslizando nas calmas águas do rio, nadando com prudência, em poucos minutos chegaram à margem contrária.

      Numa língua de areia desfizeram as trouxas e estenderam a roupa nos arbustos para que o sol do meio-dia a enxugasse da pouca água que apanhou.

      Deitados na areia, a descansar da travessia do rio, Félix sorriu:

      — Terras de Portugal! – gritou Félix.

      — Terras de Portugal! – gargalhou Cintran, iniciando de imediato um concerto de gaita de foles de assobio.

      Os moços sabiam da existência de um castelo e uma pequena vila, rodeada de campos cultivados e pequenas aldeias espalhadas pela serra, dos seus passeios que davam pelos montes de Albeios e Crecente, e das conversas que ouviam, morava lá gente com prata. Félix sentia que qualquer coisa o empurrava para aquela terra, algo no seu intimo lhe dizia que aquele era o seu destino; mas o quê? porquê? Cortaram pelos campos, até encontrarem um caminho, pouco empedrado, que subia para a vila. Foi num rápido que se acharam numa praça, junto ao castelo e logo viram que a terra era bem maior do que as aldeias galegas de onde vinham. Havia gente nas ruas e comércio aberto, carros de bois a chiar com o peso da carga, movimento a que não estavam habituados.

      Com uma gargalhada, Cintran, sentenciou:

      — Este é o meu poiso.

      — E não é só o teu – atirou o Félix.

      E foi em Melgaço que fixaram poiso.

      Ao fim de dois dias na vila, já Fifi investigara os dois galegos, que uma das caras lhe era bem conhecida. Na verdade, os moços, não escondiam que queriam trabalho no ofício que conheciam, perguntando um pelas casas ricas da região, mirando a vestimenta dos homens, o outro. Respeitadores, passaram também a ser respeitados, quer pelo trato, quer por não recusarem trabalho proposto. Só as gargalhadas e assobios do Cintran ainda faziam voltar cabeças, a maior parte delas, de jovens prontas para o namorico. Chegou-se a dançar na praça, tal a qualidade do artista. Mas foi pela competência no tratamento dos animais, até aí demonstrada, que foi contratado pelo morgado da Quinta do Regueiro, para os lados de Remoães.

 

(continua)

 

O BASTARDO III

melgaçodomonteàribeira, 08.03.13

  

Félix Igrejas

 

      Dona Beatriz virou-se, com calma, sorriso no rosto:

      — E nem uma palavra!

      — Chamo-me Maria da Fonte da Vila – o rosto já sorridente.

      — Eu sei Mia, sei muito bem, quando terminares vem ter comigo lá baixo.

      Os gritos continuavam, mais pausados, criada e aia a correr com água e panos quentes e os homens na caça, uma batida a um porco bravo, que começou não muito cedo, mas empregou toda a gente da quinta. Se a caçada fosse boa, havia carne e vinho para todos, desses estavam livres.

      Pelo meio da tarde, Dona Beatriz é chamada ao quarto. O choro do recém-nascido enchia o quarto. A aia à volta de Cândida da Luz deu o lugar à sua velha patroa, que acenou à Mia e perguntou:

      — Está tudo bem?

      — Ela é forte, daqui a uma semana já anda a cavalo – acenou com a cabeça, Mia.

Não é cavalo, é carroça, e com o João vou falar eu, pensou Dona Beatriz.

      — Ouves Cândida, logo regressas a casa, do resto trato eu – rematou Dona Beatriz, saindo quarto.

      Mia, Antónia, com a criança embrulhada num xaile, seguiram-na escada abaixo. Entraram no escritório e as ordens seguiram:

      — Antónia, ficas aqui com a criança; tu, Mia, volta ao escurecer – e atirou-lhe uma bolsa para as mãos – vou ver como está a rapariga e já te mando companhia.

      Subiu as escadas e entrou no quarto, sentando-se na borda da grande cama.

      — Como te sentes minha filha? Queres uma canja de galinha, acabadinha de fazer? Tens que te pôr forte – falou com suavidade a velha dama.

      Um gemido foi a resposta

      — Ao escurecer – a voz de D. Beatriz era agora autoritária – sairá desta casa e vai para o Mosteiro de Ourense. Leva um bom enxoval e uma boa carta de apresentação. Não te preocupes que tem o futuro garantido, vai sair dali um mestre, não será um qualquer pé descalço dos campos. Mas isso agora não interessa. Vou mandar subir a aia…, não queres mesmo uma canjinha? – e acaricia os cabelos de Cândida da Luz, antes de deixar o quarto Ao entardecer uma carruagem passa os portões da quinta, dela descendo Fifi, o homem de todos os serviços de Dona Beatriz, o único em quem ela confiava para os serviços mais delicados da família.

      Entrou em casa e logo saiu, acompanhado de dois vultos negros, carregando cada um seu embrulho.

      No interior da carruagem, os vultos transformaram-se em Antónia, com o bebé ao colo e uma mocetona de farto peito, que o alimentaria durante a viagem.

      Fifi já definira a rota e as paragens a efectuar tendo em conta a presença do recém-nascido. Foi já de noite – após dois dias de viagem – que deram entrada na cidade galega, seguindo directamente para o Mosteiro de Ourense.A carruagem parou junto de uma das portas laterais do Mosteiro, envolto na escuridão da noite, e dela desceu Fifi. Puxou a corda da Roda e momentos depois abriu-se um pequeno postigo na porta, pelo qual ele entregou um envelope lacrado. O postigo fechou-se e Fifi começou a andar de um lado para o outro, que a noite estava fria, do rio Minho vinha um nevoeiro gélido. Quando o postigo se voltou a abrir, a um sinal de Fifi, as duas mulheres desceram da carruagem e depositaram os embrulhos à porta do Mosteiro. A criança e o enxoval.

      Entre missas e matinas, cresceu na fé em Deus, Félix Iglésias, nome dado pela abadessa – ou não fosse o enxoval como era. A porteira também costumava baptizar alguns, mas esses, geralmente, sem enxoval. Enquanto cantava loas a Deus, Félix, começou a ser instruído na profissão de alfaiate, logo se destacando por ser um bom aprendiz e ter método de trabalho; acarinhado pelos mestres rapidamente progrediu no ofício que lhe fora destinado. No convívio com os restantes Expostos logo se agradou de um calmeirão que aprendia o oficio de curador de animais, de nome Cintran, um vivaço, sempre alegre e com um assobio melodioso que treinava até à exaustão enquanto tratava dos cascos dos burros. Com o tempo a amizade cimentou-se de tal forma que quando deixaram a Roda dos Expostos de Ourense, completados os 18 anos, decidiram partir juntos.

      Juntos na Roda, juntos para a vida.

      Deixar a cidade e tratar de ganhar a vida com os seus ofícios, era decisão há muito tomada mas logo perceberam que só precisa de alfaiate quem tem roupa e de animais todos eles sabiam. A pobreza era tal, que iam saltando de aldeia em aldeia. Nesta eram pedreiros, na outra havia milho para apanhar, as vindimas vinham a seguir e a refeição era pobre e a paga muito minguada. Fartos de andar aos saltos, resolveram assentar por uns tempos em Santa Cristina de Valeixo.

 

(continua) 

 

O BASTARDO II

melgaçodomonteàribeira, 08.03.13

 

 

      Ensinou-a a cavalgar, levou-a a serras distantes onde o cão do lobo que guardava o rebanho lhe lambia as mãos e abanava o rabo numa critica à sua ausência, e lhe mostrava os domínios da família, à volta da velha torre de menagem, um pouco em ruínas, que atestava o bom sangue português que lhe corria nas veias.

      Cândida da Luz chegava feliz e cansada das caçadas, mas não pálida e melancólica. A doença, há muito que desaparecera e aproximava-se a data da partida. Aí, voltou novamente a doença a Cândida da Luz. João, o Dr. João, tentava tudo, até sangraduras, mas melhoras não havia.

      Um dia, Dona Beatriz, no fim do jantar, pediu a Cândida da Luz que a acompanhasse para lhe fazer um pouco de companhia. Fechada a porta do escritório, onde ninguém entrava sem autorização da velha senhora, em poucas palavras e cara zangada descobriu a doença.

      — Estás prenha minha filha!

      Depois de chorar e lamentar-se, ser consolada e animada, ouviu-se um:

      — Sim… - muito lamuriento e arrastado.

      — O João! - o nome saiu como uma chicotada em rês teimosa.

      — Sim… - voltou a lamuriar a jovem.

      — Tratamos imediatamente do casamento, o mal fica resolvido.

      Aumentou o choro de Cândida da Luz ao ouvir tais palavras.

      — Não gostas do João e ele de ti? – quase gritou a senhora.

      — Não é isso, gostamos muito…, mesmo muito… - soluçou a jovem.

      — Então por que choras? – berrou Dona Beatriz, já farte de choraminguices.

      — Estou prometida a Teodorico, filho do conde de Alviar. Estou perdida, ai Jesus Nossa Senhora, estou perdida – e os soluços enchiam o quarto

      — Não sais do teu quarto que eu vou resolver o assunto - a voz rude da dona da casa fê-la engolir os soluços e desaparecer entre os lençóis de linho.

      Após a ceia, foi deliberado por Dona Beatriz que D. Cândida da Luz apanhara uma doença contagiosa, não podia sair do quarto e só ela, a aia e Mia a podiam visitar.

      — Contigo, João, falo mais tarde – falou com voz dura a velha e rija senhora.

      Depressa partiu mensageiro para Carvalhosa a anunciar o acontecimento, mas também com garantias que não era grave mas contagiosa a doença, e… sempre havia dois médicos em casa.

      Três meses depois, recomposta e com boas cores, D. Cândida da Luz entrava em terras do conde senhor seu pai, onde era esperada pelo garboso D. Teodorico.

      Mia acordou de madrugada com os gemidos de Cândida da Luz. Era para aquele dia, disso ela tinha a certeza. Foi acordar a criada de casa, Antónia, mulher de grande saber e de toda a confiança, que rapidamente se escapuliu pela porta das traseiras ainda mal o sol raiava. Regressou passado um bocado, acompanhada de um vulto negro, pequeno e estreito, que um xaile preto encobria.

      Sem uma palavra, dirigiram-se para o quarto onde Cândida da Luz gemia cada vez mais alto. Sem o xaile, um rosto encarquilhado e escuro, mãos cumpridas e calosas, acercou-se da cama, passou-lhe suavemente a mão pela testa ao mesmo tempo que lhe fazia um sinal da cruz abençoado, pegou-lhe na mão e foi recitando uma ladainha que só ela entendia.

      Pelo fim da manhã, os gemidos já eram gritos, Dona Beatriz entrou no quarto. A aia e a criada afadigavam-se a correr do quarto para a cozinha acarretando panelas de água quente e panos fervidos.

      — Como vai isso, Mia? – perguntou a velha senhora, rosto fechado e olhar faiscante.

      Mia passou as costas da mão pela testa afastando umas ripas de cabelo que lhe encobriam a cara e sorriu:

      — Vai correr bem, senhora – disse com voz gaiata -, ela é nova e forte, daqui a nada está cá fora.

      — Tens a certeza que está bem? – insistiu Dona Beatriz - queres que chame o Dr. Zinaido para ajudar?

      O olhar de Mia chispava quando respondeu:

      — P’ra atrasar! Vossa senhoria sabe quantos estas mãos trouxeram ao mundo?

 

(continua)

 

O BASTARDO I

melgaçodomonteàribeira, 08.03.13

 

 

      Pó e solavancos; o sacrifício da dama e sua aia que seguiam na carruagem serra acima até ao pequeno e histórico lugarejo onde se quedariam por uns tempos para a dama refazer a saúde um tanto abalada pela vida aristocrática que levava em Barcelos, terra de seu nascimento.

      Cândida da Luz de seu nome, nos seus dezoito anos, ouviu sem interesse a decisão de médicos e dos seus pais que o melhor para ela era sair do grande burgo e passar uma temporada num lugar calmo e de bons ares onde, por certo, recobraria da sua palidez melancólica que a cobria como mortalha.

      O lugarejo era distante, muitas léguas a cumprir, mas tinha a vantagem de aí viver o médico D. Zinaido, amigo de longa data e linhagem fidalga, que proporcionaria tudo o que fosse necessário para o restabelecimento de Cândida.

      Como boa cristã e filha, com um simples olhar de esguelha, entreviu o seu próximo destino; um salto no desconhecido, bem longe dos risos e segredinhos que eram o dia-a-dia no palacete familiar, o cheiro bafiento das damas, primas, tias e outras que tais.

      Quando escolta e carruagem pararam no largo empedrado, D. Cândida da Luz condessa por linhagem, entreabriu as cortinas, viu-se perante casa solarenga, de boa pedra, rodeada de vinhedos e pomar, com um fundo de serras onde nos altos picos ainda restavam uns pontos do ultimo nevão.

      Desceu da carruagem, apertou a capa que o ar era frio e com um sorriso tímido apertou as mãos que lhe estendiam; finalmente o seu destino, a casa do médico D. Zinaido, que se propunha recompor a saúde abalada da futura condessa.

      Encaminhada pelas criadas que a aguardavam para o quarto que lhe fora destinado, grande, de largas janelas e uma lareira acesa que lhe reconfortou corpo e alma depois de tão penosa viagem, sorriu, o que há muito não fazia.

      Liberta de capa e rendas, um corpo formoso a condizer com a beleza do rosto, logo foi aplaudida pela criadagem, encorajada pela simpatia que irradiava. Foi de descanso a primeira tarde, à ceia seriam feitas as apresentações.

      Mais tarde foram-lhe apresentadas desculpas pela ausência de Dona Beatriz da Anunciação, mãe de D. Zinaido, e dos filhos João e Gabriel que andavam a fiscalizar o trabalho dos rendeiros nas muitas terras pertencentes à família, pelo que à ceia só estariam presentes, D. Zinaido, sua esposa D. Epifania Joaquina e ela.

      A conversa versava as maravilhas que os ares proporcionavam e o serão que seguiu à ceia foi curto que a canseira da viagem ainda não desaparecera e os bocejos, ainda que disfarçados pela jovem, não tardaram a aparecer.  O tronco de carvalho aquecia o corpo, a roupa e a cama, Morfeu ditou a sua lei e dormiu até o dia ir alto. Virar a cara para a porta e não encarar com uma criada a perguntar se a menina deseja o almoço foi uma bênção, esquecer que era uma Souza dos Souzas que estiveram sempre ao lado do filho de Henrique e seu filho Sancho, uma Ribadouro, uma Moniz e até quem diga que vai mais além, até João Peculiar metropolitano de Braga.

      O cheiro das compotas de amora silvestre, pêssego e ameixa, do leite acabado de ordenhar e do café bem forte, o frio do sol que enchia de luz a serra em frente, prepararam-na para o dia que aí vinha e ela desconhecia. Um sorriso tímido e: - vamos ver o que o destino nos reserva.

      As apresentações decorreram em conformidade com o estatuto da bela futura condessa e se ainda restava palidez no belo rosto da jovem, a melancolia, essa foi-se desvanecendo mais rapidamente.

      A vénia a Dona Beatriz foi como a manhã, radiosa, aos irmãos mais cerimoniosa. A verdade é que desde que lhes pôs o primeiro olhar sentiu-se retraída quase com vontade de fugir, só a disciplina com que foi educada o não permitiu. Logo a seguir às palavras de circunstância, a conversa e o cálice de porto, o digo eu, eu mostro, os sorrisos com mais ou menos dentes, Cândida estava rendida a estes desconhecidos.

      Gabriel, alto e pesado, era homem das terras, das tabernas e cantares ao desafio, jogo do pau na romaria da Peneda, precisão no tiro à perdiz e ao coelho com o Mosquito ou o Nero sempre por companhia O Mosquito era tudo para ele e quando o deixava de ver por dois ou três dias já sabia que a prole tinha aumentado. Vadio quando farejava cadela saída, morreu a defender o dono dum porco bravo de mais de cem quilos.

      Se num olho, Gabriel, tinha a serra, no outro tinha a ribeira. Sável e lampreia na rede, escalo e truta na cana.

      João, mais jovem, recém formado em medicina em Lisboa, cultivava a arte da galanteria própria da corte e das mais nobres casas do Reino, mas quem olhasse bem os seus olhos via reflectido o verde do seu rincão e não os lustres de salão.

      O jantar, desaparecido o cansaço, mostrou uma Cândida da Luz em toda a sua beleza e breve a timidez começou a desaparecer e a aparecerem uns pontinhos vermelhos no rosto. A comida estava óptima, o arroz doce divinal, a conversa agradável e quando o D. Zinaido lhe ofereceu um cálice de um velho vinho do Porto, sentiu-se no céu.

      João era o guia perfeito nos passeios pela quinta; mostrando-lhe o esforço dos homens que cavavam, semeavam, ensinava-lhe o nome das flores em latim e acabavam o passeio comendo fruta arrancada da árvore.

 

(continua)