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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

NO LARGO DA CALÇADA I

melgaçodomonteàribeira, 05.03.16

 toni costa e berto chiquera na esplanada do café estrela

 

O Barbosinha

 

Estávamos em 1974. A Vila, a maior parte do ano plácida e silenciosa, transformava-se no mês de agosto – e isto quotidianamente – num dia de feira sem tendeiros; o agosto do ano da Revolução dos Cravos fulminara todos os superlativos: os emigrantes, vindos dos quatro cantos do mundo, tinham-se apoderado do concelho.

Muitos destes conterrâneos adoravam externar ostensivamente parte do pecúlio acumulado com grandes sacrifícios durante um ou vários anos, gastando a torto e a direito. Sofregamente, saciavam as abundantes apetências que, por exigências  económicas, se esforçavam por reprimir no país de acolhimento até ao mês libertador. Enterravam, durante uns dias, umas semanas, o papel de humildes, de serviçais e de bajuladores, induzidos a esposar localmente. Exibindo modelos de automóveis recentes e arvorando maneiras pretensiosas, embora grotescas, estavam convencidos de que, socialmente, tinham galgado um degrau considerável.

Esta maneira de ser também se observava em muitos melgacenses radicados nas principais cidades portuguesas, em especial Lisboa e Porto.

Não dispondo de meios para se ausentar e desfrutar de um ambiente bonançoso durante esse mês de estio, a  grande maioria dos melgacenses ociosos tinha, pois, de sujeitar-se e de digerir o restringimento, o alarido e o pandemónio causados por esta maré humana.

Eram umas semanas difíceis, conflituosas que irritavam os autóctones e faziam com que, finalmente, acabassem por ser eles a sentir-se imigrantes na terra natal que raramente abandonavam. Aguardavam pelo fim do mês como o preso pelo dia de redenção.

As divisas enviadas pelos emigrantes através das sucursais dos bancos portugueses no estrangeiro – cujo desígnio era canalizar as suas poupanças para Portugal –, ou trocadas em escudos nas abundantes agências da Vila, faziam a felicidade dos comerciantes que se regozijavam unanimemente. Para eles, fosse qual fosse o ramo, quantos mais emigrantes melhor. « O ideal era haver dois meses como este. Não precisávamos de trabalhar o resto do ano », afirmavam.

Mas agosto já não era mais do que uma má lembrança, e Melgaço nadava no ambiente vegetativo consuetudinário. A população, com a enérgica adinamia que a caracterizava, tinha retomado os gestos, os hábitos, as tarefas, os horários e os gracejos do dia-a-dia com os quais estava familiarizada. Era uma harmonia que duraria pouco mais de dez meses.

Na Calçada, no vasto imóvel pertencente ao Manuel Lourenço (Manuel da Garagem), havia um ano e pouco que abrira um segundo café, o Estrela. Este nome fora uma reposição em homenagem ao que, uns anos atrás, este abastado comerciante, baldadamente, montara noutra parte do edifício.

Naquele tempo, podia dizer-se que passara a ser o centro da Vila, o café que muitos melgacenses – e não só – gostavam de frequentar. A sua clientela constituía um leque com nuances que iam do bêbado ao advogado e incluía funcionários públicos, bancários, políticos, lavradores, elementos da GF, professores do ensino secundário, comerciantes, estudantes, homens de negócios... Apesar desta variegação, ou talvez graças a ela, havia uma afinidade atenta entre os clientes, que, globalmente, engendrava uma atmosfera bastante agradável e cordial.

A existência deste exíguo café era o resultado da associação de dois parentes: um de Soutomendo e outro da Adedela, freguesia de Fiães. O primeiro era um senhor muito polido e afável, chamado Martins, que vivera durante umas décadas no Brasil. « Em Belém do Pará ! », frisava com prazer e uma ponta de nostalgia. O segundo, um trintenário chamado Abílio, sobrinho por aliança do primeiro, era filho do senhor Augusto, conhecido por Meio Quilo ou Augusto Pequeno devido à sua estatura nanica. Astuto negociante, transportador e um dos maiores contrabandistas da margem lusa do rio Trancoso, era um homem que não desperdiçava a menor oportunidade de engravidar os seus haveres. Esta bulimia fora a causa de, em tempos, ter sido vítima de uma burla grosseira que ficou na memória da maioria dos melgacenses: comprara, por bom preço, a um tal Barbosinha, do Extremo, Arcos de Valdevez, uma máquina que, presumidamente, fabricava notas de mil escudos. Não se sentira humilhado pela estafa, pois era um homem habituado a correr riscos, a aflorar o fiasco diariamente, mas por esta se ter tornado pública.

As horas de presença no café eram geralmente asseguradas pelo Martins e pelo Abílio. Porém, por conveniência ou imperiosidade, acontecia que o primeiro deixasse, de vez em quando, o encargo ao próprio filho, o Luís, um simpático adolescente de dezasseis anos que nascera no Brasil.

Este rapaz, como acontece com naturalidade noutras paragens a muitos indivíduos, foi pronta e adequadamente apodado. O Carlos, um jovem estudante maroto, ele próprio alcunhado de Cartucho, quando soube que o Luís era sobrinho do Meio Quilo, crismou-o com o nome do indivíduo que, uns anos antes de ele vir ao mundo, intrujara o tio. Pouco tempo depois, todos o conheciam por Barbosinha.

Nessa sexta-feira de tarde, quinto dia de outono, tanto caía uma chuva forte atiçada por lufadas, como abocanhava; instantes que o sol aproveitava para desferir pontualmente, por entre umas nuvens acinzentadas carregadas de electricidade, uns raios lívidos, cansados. A feira, já debilitada pelo retorno dos emigrantes, ainda o fora mais pela instabilidade do tempo.

Neste dia, os aldeões do concelho, em particular os do monte, vinham à Vila para se aprovisionar; mas também para comprar o necessário no grémio da lavoura (extinto no fim desse mês), nas lojas de ferragens, de tratar de papeladas ou pagar uma contribuição na casa grande (câmara municipal), de concluir ou empreender um negócio...

Havia os que juntavam o útil ao agradável e manducavam uma boa refeição. Na serra, os campos, os animais, mais os diversos afazeres exclusivos das mulheres, pouco tempo lhes deixavam para verdadeiramente cozinhar. Ademais, a penúria de alimentos frescos (carne de vaca e peixe, essencialmente) era uma franca frustração. Os refrigeradores, ou quaisquer outros aparelhos movidos a electricidade, eram inexistentes. A força motriz ainda não dera entrada na maioria dos lugares montanhosos do concelho.

Por esta razão, aqueles que tinham possibilidades, ao meio-dia, depois das aquisições liminares, aproveitavam a ocasião para degustar um repasto inabitual numa das tabernas da Vila. De tarde, davam mais umas voltas, consumavam as minúcias e, ao fim da tarde, encantados, regressavam à aldeia. Podia dizer-se que era um pequeno dia de festa para eles.

Os mais desfavorecidos, expeditos, compravam o devido e voltavam à aldeia antes do fim da manhã num dos numerosos veículos que, ilegalmente, faziam fretes no dia de feira.

Havia, também, alguns que baixavam à ribeira apenas para cortejar. A caneja (caleja) que desembocava no caminho das Carvalhiças (compreendia a parcela da actual rua de Santiago a partir da esquina onde se situa o café Alameda) era o bordel predilecto das parelhas fortuitas que se faziam e desfaziam no mesmo dia.

A partir do meio da tarde, os dois cafés do Largo da Calçada (Estrela e Stop) passavam a desempenhar a função de salas de espera para os utentes da Auto Viação Melgaço, mormente quando o tempo lhes contrariava o movimento, como nessa sexta.

 

FESTA EM SEIXAS

melgaçodomonteàribeira, 07.03.13

  

Seixas - Foto de rapazao

 

   Era a segunda vez que íamos tocar à AAS, Associação dos Amigos de Seixas. A primeira vez fora no carnaval do mesmo ano e, aparentemente, a gente gostara da nossa música. Por isso, naquele dia, dia da festa de São Bento, padroeiro da vila, lá estávamos nós a tocar novamente.

   Seixas é uma linda vila da margem esquerda do rio Minho. A largueza do rio mostra que a foz não está longe e que os efeitos das marés chegam ali.

   Nas ruas, a multidão movia-se como duas ondas, uma de cada lado e em sentido contrario.

   A sala da associação era no primeiro andar de uma antiga fabrica. Estava cheia. Ao ar livre, num largo da vila, havia outro baile com um grupo que se podia considerar uma orquestra: eram uma duzia.

   Foi durante o nosso intervalo, quando estávamos a ver e a apreciar o outro grupo tocar, que se começou a ouvir uma enorme aclamação: “Amália, Amália !” A singular e adorada fadista portuguesa passeava, descontraidamente, pela festa, xale preto pelas costas, em companhia de um homem de certa idade que, pelo estilo, devia ser seu secretário ou empresário. “Amália, Amália !” Era natural que estivesse de visita à zona pois, se tivesse familia ou amizades por ali, não andaria unicamente na companhia de um secretario. Toda a gente gostaria de se mostrar ao lado da grande Amalia. A multidão era cada vez mais numerosa a entoar o seu nome. Os membros do conjunto que actuava, quando perceberam que ela se encontrava na festa, pararam, anunciaram amavelmente  a sua presença ali e, incitados pelas aclamações ensurdecedoras da multidão, convidaram-na a subir ao palco para interpretar uma canção. Depois de uma rapida concertação com o acompanhante, subiu ao palco sob uma torrente de aplausos. Foi um delirio total por parte da gente que, indubitavelmente, não imaginava nem podia acreditar que a maior, mais conhecida e considerada cantora portuguesa os honrasse com a sua presença e os gratificasse, improvisadamente, com uma canção. O reconhecimento que os portugueses lhe tinham estava à altura do seu talento de fadista. Interpretou o velho “Malhão, malhão” e, em dois segundos, pôs as  pessoas alegres, a saltar, como se fossem todas crianças. Foi um momento enternecedor, de sincera amizade partilhada. Só foi pena não termos sido nós a acompanhá-la. Tinha ficado para a história.

   Regressamos à nossa sala e tocamos mais uma hora. Intervalo. Uma da manhã. O estômago dava sinal. Desci e fui à cantina tentar alivia-lo. Numa das mesas estava o Chancas sentado.

   Cada vez que íamos fazer um baile a qualquer lado, havia sempre quem se propusesse como carregador voluntário com a única finalidade de  entrar gratuitamente no baile. Mas também tínhamos meia dúzia de amigos que, quando podiam, se organizavam e não falhavam uma saída nossa. O Chancas fazia parte destes.

   Dirigi-me para o balcão. Havia caldo-verde, coisa boa para satisfazer e acalmar o estômago. “Olha, Coxo, se vais pedir um caldo-verde, pede outro para mim.” Era o Chancas, sentado a uma das numerosas mesas que havia na grande sala. Com as duas malgas na mão, fui instalar-me na sua mesa. Estava numa de caldos-verdes. Já não sabia quantos tinha ingurgitado, disse-me. Além disso, a gaja que os servia estava a ficar danada com ele porque, malandro guloso, fora várias vezes pedir-lhe uma rodela de chouriço, pretextando que ela se tinha esquecido de lha meter no caldo. Estávamos a saborer a deliciosa sopa devagarinho, com um pedacinho de broa, quando entrou o André, nosso amigo, que se dirigiu para o balcão do bar pedir alguma coisa. “Queres ver que o Cabecinhas (alcunha do André) vai apanhar uma boa seca ?”- inquiriu o Chancas. Sem esperar resposta minha, fez-lhe sinal e perguntou-lhe: “André, vais pedir um caldo-verde ?” Não, vou pedir um sumo”, disse. “Olha, não te importas de pedir uma rodela de chouriço para mim ?” - disse-lhe, gentilmente, o Chancas. “A gaja esqueceu-se de  meter chouriço no meu caldo, pá.” O André deu aos ombros, aproximou-se do balcão e quando chegou a sua vez, pediu um Sumol e uma rodela de chouriço, dizendo à mulher que se tinha esquecido de  deitá-la no seu caldo. A mulher, vermelha de calor, no  meio da confusão que, em geral, reina no bar de um recinto de espectaculos durante o intervalo, mal ouviu pedir mais uma rodela de chouriço, fitou atentamente o André e, simultaneamente, num tom de franca irritação, de reprimenda e de contentamento, como se já estivesse à espera, ironisou. “Ai sim ? Desta vez não me leva, não ! Tive muito cuidado em meter-lhe a rodela de chouriço quando lhe dei o caldo-verde há pouco, sabe ? Andava a brincar comigo, mas acabou-se-lhe a brincadeira, meu amigo. Só tem direito a uma rodela, como toda a gente e mais nada. Agora deixe o lugar a outros, se faz o favor !” O André, estupefacto, sem perceber nada do que lhe tinha acontecido, olhava para nós com um ar inocente. O Chancas, malandro, ria e fazia-lhe sinal com a mão para que cagasse, que não fizesse caso da gaja. “Eu não te disse ?”, gracejou divertido, virando-se para mim. Não sei se o Chancas, alguma vez, lhe explicou a brincadeira.

 

Julho de 2010.

 

A. E. C.

 

SOLDADO 404 - 40

melgaçodomonteàribeira, 07.03.13

 

 

Exército Português

Regimento de Infantaria Nº 8

Braga

Soldado 404/40

Caderneta Militar

 

1ª Página

Alberto Caetano de Sousa

Classe 1940 – C.H – 158

 

2ª Página

Estado Civil

Nasceu a 4 de Abril de 1919

Freguesia de Melgaço

Concelho de Melgaço

Filho de Ilídio de Sousa

e de Amândia Augusta Igrejas

Estado  solteiro

Ocupação  Funileiro

Ultimo domicilio, freguesia d Melgaço

Concelho d Melgaço

 

3ª Página

Estado Militar

Alistado em 10 de Julho de 1939 como recrutado

……………………………………………………

para servir por 25 anos.

Incorporado em 4 de Abril de 1940

Pronto da escola de recrutas em 15 de Julho de 1940

para Serv. Metr m/938

Licenciado em 4 de Fevereiro de 1941

Passou à reserva activa em 31de Dezembro de 1946 e à re-

serva  territorial em 1 de Janeiro de 1960

Baixa de serviço em 1 de Janeiro de 1965 por ter

completado toda a obrigação de serviço

Altura

1,605

Sinais particulares

Vacina anti T.H.B.

1ª dose 8-5-940

2ª dose 27-5-940

3ª dose 21-6-940

Habilitações literárias e profissionais

Antes de alistado

Ler escrever e contar

Correctamente (4º grupo)

 

Página 4 e 5

Colocações durante o serviço

Unidades  R. Infª 8  Número 404  Dia  4  Mês  Abril  Ano  1940

C. M. I. 8              404        31        Dezembro     1946

D. R.M. 8             404          1         Janeiro        1960

 

Página 6

Data dos diversos postos

Postos  soldado  Dia 4  Mês  Abril  Ano  1940

 

Página 7

Alterações em tempo de serviço

 

Liquidação anual do tempo de serviço

No ano de 1940  Anos  N  Dias  253

1941            N             34

“               “            261

1942            1              -

1943            -             364

Diminuição

1941 – Discip.  Ano N  Dias  5

 

Página 8

Ocorrências extraordinárias

 

Tirou no sorteio o nº 272. Continua no serviço efectivo nos termos D” C. Confidencial da 3ª  Rep. da 1º D. G. do M. da Guerra nº 11201/122, de 8-6-940, desde 15 de Julho de 1940. Passou à disponibilidade em 4 de Fevereiro de 1941. Destacou para os Açores fazendo parte do1ª Batalhão Expedicionário do R. I. 8 nos termos da circular da 3ª Rep.Da 3ª D.G.M.G. nº 324/MT de 26/3/941 em 24 de Abril. Desembarcou na cidade da Horta em 28. Embarcou no Faial de regresso ao Continente em 18 (a). Desembarcou em Lisboa em 27. Considerado alistado no 1ª Escalão da Legião Portuguesa desde 15 de Abril de 1959. (O.S. do R.I.8,nº 185 de 1945).

(a) de Dezembro de 1943.)

 

Página 11

Domicílios durante o licenciamento e reserva

Lugar Melgaço Freguesia  Melgaço Concelho  Melgaço Dia  4  Mês  Fevereiro Ano  1941

Rua Direita          S. Paio e Vila Melgaço       “                  21           Dezembro 1943

 

Página 12

Apresentações durante o licenciamento e reserva

Motivo

Convª Extraoª

Desde

Dia  10   Mês  Abril  Ano  1941

Até

Dia  30  Mês  Dezembro  Ano  1943

 

Página 13

Condecorações e louvores

 

Louvado pelo Comandante do 1º Bat. Exp. Do R.I.8  por voluntária e desinteressadamente se ter oferecido a dar sangue, para salvar da morte, um doente, não pertencente à família militar, demonstrando com este acto possuir um alto grau de altruísmo e de boas qualidades (G.R. de 19/12/41). Louvado em 4 de Outubro de 1943 pelo Ex.mo Comandante do Bat. pela maneira valente como trabalhou para extinguir um incêndio que se declarou na noite de 24 de Setembro último no abrigo Central de Metralhadoras conseguindo com o auxílio de outros seus camaradas salvarem o material de guerra ali existente. (G.R. 18/11/943).

 

Página 14

Tempo de licença registada

1940 – vinte dias

Licença por motivos de moléstia, tratamento nas enfermarias e convalescença

1940 – Na enfª 10 dias. C.te 4 dias.

 

Página 15

Classificação

Ano  1940 Com espingarda mauser   No tiro  2ª classe

 

Página 16

Registo disciplinar

Crime ou infracção

 

Colocado na 2ª  classe de comportamento nos termos do artº 188 do R.D.M. 4  Abril  1940

Por hontem por volta das 22.30 ter alterado o silêncio e responder com modos pouco respeitosos a um 1º cabo que o mandava deitar, infringindo assim os nº 2 e 4 do artº 4º do R. D. M.

Pena imposta

Dez dias de detenção

Tribunal ou autoridade

Com.te do 1º B. Expº do R.I.8

Dia  28  Mês  Agosto  Ano  1941

Crime ou infracção

 

Baixa à 3ª classe de comportamento nos termos do artº 192º do D. R. M.

Por não estar com a devida compostura à formatura do recolher do dia 2 do corrente e não acatar uma ordem dada pelo sargento que presidia à mesma quando este lhe determinou que avançasse para a frente da companhia, o que deu origem a provocar riso a todos os praças presentes infringindo assim os Reg. 1º e 12º do artº 4º do D.R.M.

 

Pena imposta

Cinco dias de prisão disciplinar (a)

Tribunal ou autoridade

Com.te do 1º B. Exp. Do R. I. 8  Dia  3  Mês  Dezembro  Ano  1941

 

(a) Amnistiadas nos termos do decreto nº 45467 de 27-12-963 –

 

Página 24 e 25

Conta de fardamento (a)

(a)  só referidos os anexos devido à individualização das peças de fardamento.

Conta Corrente

 

Foi-lhe feito espólio de todos os artigos de fardamento que lhe estavam distribuídos com excepção dos abaixo designados”

Quartel em Braga, 3 de Fevereiro de 1941

O comandante da Companhia

 

Por ter sido mobilizado foi-lhe feito o espólio de todos os artigos de fardamento que possuía.

R.I. em Braga 18-4-941

Pel’ O Comt-de da Compª.

 

Página 26 e 27

Conta de Fardamento (a)

(a) devido à sua extensão não foi transcrita a lista

 

Página 39

Apresentação nas revistas de inspecção

R.A.L. nº 5

28 de Maio de 1944

R. I. 8 Braga

16/6/1945

(…..) de recrutamento e mobilização nº 8  Arquivo

 

Foram cortadas 12 folhas das requisições de transportes em c/ferro

Quartel em Braga 16/5/73

O chefe do arquivo,

 

AS PÁGINAS NÃO MENCIONADAS ENCONTRAM-SE EM BRANCO

- IMPRESSO COLADO NA CAPA DA CADERNETA MILITAR DO SOLDADO 404/40 –

 

Unidade  C.M.I. nº 8

Nº 404   Classe de 1940

Nome Alberto Caetano de Sousa

Pôsto Soldado

 

LEGIÃO PORTUGUESA

Comando Distrital de Viana do Castelo

 

Legionário do 1º Escalão

Nº 3070/32214

 

Concelho de Melgaço

S. Paio da Vila

 

Roga-se a devolução

 

Camborio Refugiado

 

SOLDADO 404-40

melgaçodomonteàribeira, 07.03.13

 

 

    A lareira na cozinha quase não se fazia sentir tal era o frio que entrava pelas frinchas de portas e janelas, mal calafetadas com folhas de jornal. Na sala, duas braseiras aqueciam um pouco os pés enregelados; na parede principal, duas litografias, a Rainha D. Amélia numa, seu filho Rei D. Manuel II noutra.

    — Os meus primos, diria Amália, - filha de Félix Igrejas, neta bastarda de condessa – a visitante mais curioso.

    A mesa, nessa noite de Consoada, estava posta para os oito da família. Amália e Ilídio presidiam, em volta os cinco filhos; Ernestina e Guisele, Ná, Tó e Mi. Faltava um, Bé o mais novo, que a guerra levou p’ra longe, levou-o p’rás ilhas dos Açores – como ele diz -, dizia mãe Amália na conversa de vizinhas.

    Não bastava a guerra que tinha acabado na Galiza e no resto da Espanha, que arrasou a terra de sua mãe Conceição, Santa Cristina de Baleixo na Galiza, e que tão mal os tinha feito passar – o irmão Emiliano, Meliano p’rá família e amigos chegados, não diria o mesmo, mas isso era o trabalho dele, na frota -, agora levaram o Bé p’ra outra guerra, para um sítio que ela não conseguia imaginar e isso enchia-a de raiva.

    Guerra sim, mas guerra onde ela controlasse o filho, do frio ao calor, do caldo d’unto ao naco de broa. Foi ela que o pariu!... e agora?

    — Uns montes metidos no meio da auga – berrava p’rás vizinhas.

     Na mesa, o lugar do Bé era ocupado por uma grande fotografia emoldurada do filho soldado, sorriso irreverente, a ler uma carta – quem sabe da namorada?, que a mãe não sabia escrever – devidamente fardado, sob o sol do Faial.

    Debaixo do sorriso benevolente do Ilídio, Amália serviu os pratos dos filhos, Bé incluído.

    Foi-lhes servido o polvo com couves, as tostas e o geremú no fim. Não lhes faltou o tinto do novo, vertido no copo, que naquela noite não se usava tigela.

    A fotografia teve o mesmo tratamento da família, o Bé estava presente.

    Amália, dormiu descansada, sabia que o seu Carricinho estava bem e com eles comungava de um Santo Natal, as raparigas deitadas e o seu Ilídio estava em segurança em casa do Meliano a dar umas voltas de dança e a beber uma tigela, com a musica do rádio que no Inverno era um gaguejo, em vez da concertina de que ela tanto gostava.

    O irmão também gostava, mas desde que se meteu com o maluco do Pires, deu-lhe para a modernice, e agora era o rádio. E até cinema!... Claro que a casa era grande, com garagem e quintal onde não faltava o tanque das lampreias e as uvas colhão de galo. Tinha até aquecimento sem precisar de braseiras, onde é que já se viu!

    No carro, um Ford que o Meliano alugava a quem de médico precisava, ou a senhor p’rás suas voltas, isso sim, gostava ela de andar.

    Chegou a ir a Viana, ver as moças com aquelas voltas, ouro tão rico, nem as mais ricas que apareciam na senhora da Peneda tinham coisa assim; ver o mar – água tanta que o rio parece uma levada – e uma ponte de ferro que parecia um bordado.

    E ao Bom Jesus de Braga, onde faltava a festa, só missa e o farnel, mas tão bonito com aquelas capelinhas todas.

    E São Bento da Porta Aberta… e São Bento do Cando que ficou ali tão perto; até junto de Fiães no S. Bento ficamos, que os ovos cozidos e a lampreia seca ainda estavam quentes e o vinho fresco. Até às carvalheiras de Lordelo em Tangil, na festa do Senhor do Bomfim onde prendiam com alfinetes as notas no manto do santo e davam conta do barril até chegar a hora da Procissão.

    A frota dava-lhe dinheiro mas também muito trabalho, agora estava aqui, logo acolá, o Tó e o Ná ainda davam uma mão nas cobranças do imposto indirecto sobre a mercadoria entrada no concelho – que ele arrematou à Câmara -, mas transportar os galegos fugidos da guerra, com a PIDE e a Guarda sempre atrás, era um risco. Ao pé da casa sabia ele o que fazer, mas quando passava o Douro…

    E a Aninhas cada vez mais tísica deitada naquela cama, só a beber a água da Fonte da Vila, que a outra a matava.

    Mas naquela noite do Menino Jesus, a Amália, nem homem nem frota lhe tiravam o sorriso.

    O seu menino estivera com eles.

    Ninguém cantava o Malhão como ela, e depois de uma malga, atirava o cabelo p’ra trás e saía aquela modinha que não deixava ninguém parado. E foi o que fez.

    Amália, encheu a tigela, olhou para os primos reis pregados na parede, atirou o cabelo para trás, fechou os olhos até ver o filho na guerra e cantou:

 

    Oh Malhão, Malhão,

    Que vida é a tua

    Comer e beber

    Oh de repimpim

    Passear na rua

 

    O Ilídio parecia gozar a essa hora das delícias que o dinheiro da frota proporcionava ao Meliano. Delícias amargas, que o cunhado de bom olho percebeu. O Bé, não estava, o Bé andava p’ra lá.

    As malgas encheram-se e a um chiuuu do Meliano, a rádio calou. Um abraço ao cunhado, um abanão e – não te esqueças que também é meu.

    — Viva o Carriço!

    — Viva!

    — Viva o Carriço!

    — Viva!

    As malgas voltaram a encher-se, outro viva saiu.

    A concertina atirada para um canto por mor da música da rádio, fez a sua entrada a sinal do dono da casa. Logo saltou daquelas gargantas o Ó Oliveira da Serra para em seguida se fazer silêncio e deixar o Ilídio gargantear:

 

    Ó vai ó linda

    Só a mim ninguém me leva

    Ó vai ó linda

    P’r’ onde vai o meu amor

 

    Longe, nuns montes no meio da água, o soldado 404/40 era o rei da Consoada na Vila.

 

(continua)

 

CARTA DO MESTRE AEC

melgaçodomonteàribeira, 07.03.13

 

 

Carta de mestre António El Cambório a seu amigo e compadre Dom Cambório Refugiado Lusitanus ou como viviam uns melgacenses em terras de Bracara Augusta nos idos de 972.

 

   Caro amigo: as suas perguntas são verdadeiramente interessantes e impertinentes. Agradeço-lhe imenso por ter pensado em mim para esclarecê-lo.

   Se a minha memória me não atraiçoa, creio que esses singulares companheiros de uma época muito apreciada por nós eram três: dois irmãos e um primo, nativos da modesta vila de Vinhais, terras dos nossos progenitores da Casa de Bragança.

   Pessoas simplórias, bastante rudes, eram possuidoras daquele vilão lapso distintivo das criaturas primitivas que tentam, claudicantemente, modelar e escamotear as maneiras grosseiras que as caracterizam.

   Um deles, como Vossa Senhoria legitimamente mencionou, permitia-se conceber uma hipotética integração no restrito círculo do universo espacial assim como uma improvável presença nos jogos olímpicos de Munique. Pobre plebeu!

   Mas o mais vil, o mais apócrifo era, sem controvérsia, o primo. Havia que ver como ele agarrava nos talheres mal a Dona Adelaide, ex-rameira no chique bairro da nossa graciosa Sé, pousava a travessa com o restrito conteúdo de massa com frango habitual! Que Vossa Senhoria me perdoe, mas parecia o toureiro que esperava o animal para lhe cravar as “banderillas” no lombo. Depois do “Sirvam-se” consuetudinário, ao qual nós respondíamos com a devida e reverente cortesia : “Primeiro vocês”, o ignominioso indivíduo, sem hesitar, cravava o forcado nas duas pernas de frango como se fossem dois trofeus merecidos. Assim passaram semanas sem sabermos qual era o prazer proporcionado pela delicada e refinada carne das pernas dos galináceos. Nem pelos seus congéneres que, como nós, apenas as viam passar, formulava a mais sucinta consideração. Mas para nós, pessoas com princípios e cultas, que vínhamos de terras onde a deferência é rainha, a afronta não podia perdurar.

   Foi graças à perspicácia de Vossa Senhoria que, determinado dia, não podendo suportar mais o seu arrojo grosseiro, usou as mesmas armas que o vil indivíduo, ou seja, não retribuiu a gentileza ao túrbido plebeu e apropriou-se das duas suculentas gambetas do galináceo servindo-se prioritariamente. Lembro-me da careta de contrariedade, de exasperação incontidas que a sua desprezível fisionomia exteriorizou naquele instante e que se traduziu por uma ausência deliberada de vénias para connosco durante um período assaz longo. Coisa que não foi nada desagradável nem perturbadora para pessoas discretas, de valores e de nobre linhagem como nós.

   Ah! A graciosa donzela, a filha da Dona Adelaide, estava no coração de todos nós sem excepção. Quantas vezes a minha frágil mão direita cedeu aos caprichos de uma verga escaldada e endurecida pela atracção que esta excitante e inebriante polposa criatura exercia sobre o meu instável equilíbrio libidinal! Apesar da sua errónea e frígida indiferença, éramos todos escravos do seu charme.

   Vossa Senhoria, as minhas humildes e limitadas reminiscências têm, apesar de tudo, uma distante ideia do amigo da Dona Adelaide que eu, modestamente, designaria de proxeneta, título honorífico nas camadas da plebe.

   Espero sinceramente ter trazido todos os esclarecimentos às delicadas questões que importunavam Vossa Senhoria. Fico, todavia, à Vossa inteira disposição se por acaso uma das respostas o não satistaz.

 

   Rogo-lhe, Vossa Senhoria, que acredite na expressão das minhas mais sinceras e cordiais saudações de benevolência.

 

   Seu vassalo, António El Cambório, Conde de Parada do Monte.  

 

   A. E. C. correu a Europa a nosso pedido e com cartas de Sua Majestade Senhor de Melgaço e afins. A passagem por Bracara Augusta levou-o a terras de Santiago e, mais tarde, às terras Gaulesas onde desenvolveu a arte da escrita e da musica e, em seguida, a de fazer filhos em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo. Encontrou na sua viagem grandes nomes como Carlos de Valença, Arturinho de Monção ou Zé Pequeno de Cousso, todos eles  destacados e irrefragáveis botânicos, pioneiros na exploração e na experimentação das plantas canabináceas, com os quais celebrou tratados herbáceos,  culminando estes na classificação das subespécies do canábis sativa L. e, por conseguinte, no desenvolvimento da kaya em terras da hespaniola. Actualmente, recolhido em terras de Val-de-Marne.

 

António El Cambório

 

IMPRESSÕES DE UM FRADE

melgaçodomonteàribeira, 07.03.13

 

 

SÍNTESE DA MORAL MELGACENSE

 

IMPRESSÕES DUM FRADE

 

 

I

 

NO CÚ DE PORTUGAL, NARIZ DE ESPANHA

LÁ ONDE O MINHO A COBRA IMITA

ONDE ATÉ ÀS NUVENS SE ARREBITA

DUM E DOUTRO LADO ÁSPERA MONTANHA,

 

 

JAZ UM FEIO CURRAL QUE A VISTA ACANHA.

È VILA (O POVO DIZ QUE DENTRO HABITA

E QUE NOUTROS TEMPOS BEM BONITA)

MAS QUEM PODE ENGULIR ESTA PATRANHA?...

 

 

AQUI DE GENTE BOA POUCA RESTA.

QUASE TODA A PISA ESTE ESPAÇO

É VIL, MALDIZENTE E DESONESTA.

 

 

LEITOR, PELA PINTURA QUE AQUI FAÇO,

NÃO SABES QUE TERRA É ESTA?

É TERRA DE PUTAS, É MELGAÇO.

 

 

II

 

TU DAS TERRAS DO MINHO A MAIS DANADA

Ó ESFARRAPADA VIL, TORPE MELGAÇO,

AINDA TENS MAIS PUTAS QUE BAGAÇO

TODAS AO DEUS BACO CONSAGRADAS

 

 

DE MAROTOS ALBERGAS TAL MANADA

TAMANHO MANDRIÃO, TANTO MADRAÇO

QUE A CONTA POR BARATO QUE LHES FAÇO

SÃO TANTOS COMO MILHO A NÃO SER NADA…

 

 

E QUE LÍNGUAS… QUE PÉRFIDA GENTALHA

EM TODOS MORDE, EM TODOS FERRA O DENTE

ESTA FUTRAGEM, ESTA VIL CANALHA.

 

 

QUASE TUDO O QUE DIZ É MALDIZENTE

AQUI POR GÉNIO SE MURMURA E RALHA.

MALDITA CONDIÇÃO, MALDITA GENTE.

 

 

RESPOSTA AOS VERSOS DO FRADE PELO JUIZ

CÂNDIDO FURTADO DANTAS EM 1798

 

 

FRADE ILUSTRE, PRIMAZ DOS FRADALHÕES,

DE S. BERNARDO O FILHO MAIS PRESTANTE

TONSURADO CAMBRONE, ASTRO BRILHANTE,

TROVADOR DE SOTAINA, FREI CAMÕES.

 

 

TU. Ó FRADE, QUE ENCHENDO OS TEUS PULMÕES

CANTAR SOUBESTE EM VERSO ALTISSONANTE.

MELGAÇO É UMA CORTE RADIANTE

DE ASNOS, FUTRES, PATIFES E LADRÕES.

 

 

QUE NOVO REDENTOR TU FOSTE. Ó FRADE!

TU QUE DISSESTES AOS TRISTES QUE AQUI VEM:

ISTO É MELGAÇO, UM BRADO À SOCIEDADE…

 

 

TAL BRADO UM ENVANGELHO EM SI CONTEM

SEM O QUAL ESTARIA A HUMANIDADE

SEM HONRA, SEM CAMISA E SEM VINTÉM.

 

 

Texto fornecido pelo amigo melgacense Arlindo Vilas Júnior

 

Camborio Refugiado

  

LARÁPIO: PROFISSÃO ÁRDUA II

melgaçodomonteàribeira, 07.03.13

 

 

    Resolvi regressar a Melgaço onde, se tudo corresse bem, o Moisés me preveniria por telegrama, e aproveitar para reconstituir o meu capital bancário que tinha sofrido um desgaste considerável durante aquelas duas semanas. Assim foi.

   Uma semana depois do Ano Novo, recebi o telegrama tão esperado que confirmava o meu ingesso nos TLP.

   Regresso à capital e à rua da Emenda, onde fiquei quase cinco meses. Não ganhava grande coisa, mas chegava para comer e sobrava para ninharias. Os tios do meu amigo nunca quiseram dinheiro por estar no mesmo quarto que o sobrinho e dormirmos na mesma cama.

   O pai do Moisés era sócio da gráfica que havia em Melgaço, onde era imprimido um jornal local, o Notícias de Melgaço e na qual trabalhava. Então, mensalmente, recebia convites para visionar os filmes mais importantes em estreia em Portugal a fim de poder fazer a respectiva crítica no jornal. Como não tinha tempo, enviava os bilhetes para o filho em Lisboa. Durante os poucos meses que estive na capital, vi mais filmes do que no resto da minha vida.

   Uma tarde, depois de uma sessão no São Jorge, descemos a avenida pelo mesmo lado até ao fundo dos Restauradores e fomos merendar a um grande café que ali havia. Já não era a primeira vez e, portanto, conhecíamos bastante bem o ambiente e o género de pessoas que o frequentavam. Havia de tudo: casais de namorados, pseudo-intelectuais, prostitutas, chulos, aposentados, junkies, larápios e pessoas banais, sem interesse, como nós. Era a mistura destas diversidades que nos atraía para aquele café de vez em quando.

   Na mesa ao lado da que nós estávamos sentados, encontravam-se recreados três indivíduos com pouco mais de vinte anos, bem vestidos, camisa com os dois últimos botões desapertados e colarinhos por fora dos casacos, exibindo cordões e pulseiras onerosos e dourados. De cabelos bem penteados e lacados, tinham todo o aspecto de chulos. Mas não o eram.

   Nesse momento, aproximou-se da mesa outro indivíduo igualmente pimpante mas com ar contrariado, quase irritado. Puxou a quarta cadeira e, apenas sentado, perguntou aos outros três com um ar importunado:

   — Ó pá, qual de vós trabalhou ontem à noite na calçada da Estrela ?

   Os três homens olharam uns para os outros, intrigados com a pergunta, e, por fim, um deles pronunciou-se.

   — Fui eu, pá, por quê ?

   — Não gamaste um Opel 1604 S branco com jantes especiais ?

   — Gamei, pois, e foi precisamente por causa das jantes, pá !

   — Pois olha, vais pô-lo no mesmo sítio o mais rapidamente possível porque roubaste o carro da minha irmã, pá ! Estava tão bem na cama hoje de manhã, depois de ter passado uma noite atroz a trabalhar, pá, quando a minha irmã, a chorar, me vem dizer que lhe roubaram o automóvel ! Ó pá, é uma chatice do diabo ! Tem que haver respeito  pelos amigos, carambas !

   Eu e o Moisés, que não perdêramos uma migalha da conversa, tínhamos grandes dificuldades em controlar a vontade incoercível de rir.

   — Concordo contigo, pá, é muito aborrecido, tens toda a razão, mas também deves  perceber que eu não podia adivinhar que o carro era da tua irmã, pá !

   — Prontos, o assunto está arrumado. Quando saires daqui vais pôr o carro no sítio e não se fala mais no caso.

   O outro, contrariado com a facécia, e para temperar o mau humor do colega, disse-lhe alegremente:

   — Não penses mais nisso e vamos mas é tomar alguma coisa. Só é corte porque me encomendaram jantes deste modelo há muito tempo e, para encontrá-las, pá, é um inferno do caraças !

   O outro, que acendera um SG gigante e o guardara no canto da boca, deu duas grandes chupadelas e respondeu-lhe, cansado:

   — Não mo digas, meu ! Por isso fiquei chateado. Nem imaginas as voltas que tive que dar por Lisboa para encontrar estas para a minha irmã, pá ! Isto é um problema...

   Não pudemos aguentar mais. Como se não tivesse nada que ver com a conversa deles, rimos descaradamente, durante uns bons momentos. Estava visto que a profissão de larápio era bem mais difícil e contrariante do que nós pensávamos. Pagámos e regressámos à rua da Emenda.

 

Março de 2010.

 

A. E. C. 

 

LARÁPIO: PROFISSÃO ÁRDUA

melgaçodomonteàribeira, 07.03.13

 

 

   Depois de quatro anos de vadiagem, devassidão e declínio intelectual pela capital provincial, Braga, cidade epónima e muito mais, regressei à terra que me viu crescer, Melgaço. Ali, sendo as actividades laborais mais do que limitadas, e as restantes muito pouco regulamentares, escolhi a mais rentável, menos penível e punível, para a qual possuía as melhores competências: o jogo da lerpa.

   Na Cidade Augusta, tivera como mestres e modelos o Lino e o Batata, batoteiros profissionais que exerciam nos dois maiores cafés da cidade, Sport e O Nosso Café, na avenida da Liberdade. Arvorando sempre fatos de corte e gosto irrepreensíveis, iam diariamente ao cabeleireiro-barbeiro-manicura fazer o penteado, escanhoar a barba e dispensar atentos cuidados aos longos dedos, seus valorosos instrumentos de trabalho, depondo, nas aparadas unhas, uma fina e brilhante camada de verniz transparente.

   Durante meses, o dinheiro que ganhava aos clientes (parceiros) serviu para comer, às noites, depois do trabalho, bons pratos no snack do Mini Sport, rua do Carvalhal, com os amigos. Mas isto é um capítulo de outra história.

   Forte da experiência de quase um ano nas mesas empanadas d’O Nosso Café, as noitadas de lerpa com os clientes de Melgaço, bastante mais simplórios e cuja parada era bem mais digna, permitiram-me, ao cabo de poucas semanas, abrir a minha primeira conta bancária.

   No dia 30 de novembro de 1973, quando passei a ser considerado um homem pela  administração, tinha mais de 17 000 escudos na minha conta. Para festejar a maioridade, convidei um amigo a vir comer uns doces secos e a beber uma taça de vinho espumoso à minha casa. Entre dois doces, contou-me que arrancava no dia seguinte de carro com o pai para Santarém onde, com os seus conhecimentos, tinha a certeza de obter a carta de condução. E, se a coisa corresse como esperava, ia em seguida passar um dia a Lisboa, para festejar o sucesso.

   Farto de passar noitadas a deitar-me quando a minha mãe se levantava, decidi aproveitar a boleia, segui-lo até à capital e, em seguida, procurar lá um emprego.

   Só que de manhã, quando acordei, já eles tinham percorrido uns bons quilómetros. Sem me desencorajar, apanhei o comboio em Monção rumo a Lisboa. Cheguei à estação de Santarém de noite, sem imaginar que a cidade ficava no cimo de um morro. Meia hora depois de um taxi me ter deixado no centro e de ter visitado algumas pensões à procura do meu colega, comia à mesa com ele na pensão onde tinha um quarto alugado para a noite e onde dormi. Na tarde do dia seguinte, depois de passar favoravelmente o exame,  seguimos de comboio para a capital.

   Ali, fomos visitar um amigo melgacense, o Moisés, que ia no terceiro ano de direito. Depois de arranjarmos um quarto e uma boa mesa para aquela noite, serviu-nos de guia e mostrou-nos Lisboa by night. Deitamo-nos tarde, como era de prever.

   Passámos duas noites e um dia delirantes. No terceiro dia de manhã, o meu amigo apanhou o foguete para o Porto. O Moisés, que eu tinha posto ao corrente da razão da minha vinda a Lisboa, propôs-me albergue com ele na casa dos tios que, havia muitos anos, viviam na rua da Emenda, ao lado do Camões.

   No dia seguinte comecei um calvário através da cidade que ia durar mais de duas semanas. Era verdade que o cabelo comprido que tinha também não me facilitava a tarefa para arranjar emprego em determinados postos que postulava. Por fim, o que consegui, depois de uns curtos testes, foi um possível lugar como ajudante de guarda-fios nos TLP. Seria contactado mais tarde por correio, no caso de a minha candidatura ser retida.

 

(continua)

 

ADEUS AMIGO

melgaçodomonteàribeira, 07.03.13

 

 

O BANDOLA E EU

 

NÃO HAVIA FRUTA QUE NÃO ESTIVESSE DEBAIXO DE OLHO. ELE CONTROLAVA O QUE HAVIA P’RA BAIXO DO CONVENTO SEMPRE QUE LEVAVA A SACA DO MILHO P’R´0 MOINHO DO MASCANHO EU FICAVA-ME PELO QUE HAVIA NA VILA E ARREDORES. NO MEIO DESTAS FITAS, SACAVAMOS UMAS GASOSAS E LARANJADAS AO SR. CASTRO, CASTANHAS NO TEMPO DELAS,TODOS ESTICADOS NA MURALHA DO CASTELO QUE OURIÇO APANHADO ERA TROFEU. PASSÁVAMOS AS DE CRISTO NO INVERNO COM OS PÉS GELADOS E DEDOS QUASE A PARTIR QUE UM PROFESSOR DE REGUA NA MÃO AQUECIA. TEMPOS DEPOIS, LIBERTOS DOS PARNÓICOS CATÓLICOS QUE DERAM PORRADA ATÉ FICAREM SEM FORÇAS EM NOME DUM CRISTO QUE O P. JUSTINO APOIAVA COM LISTAS DOS FALTOSOS À DOUTRINA SEM PENSAR QUE HAVIA ALUNOS QUE SÓ TINHAM UM BAGAÇO NO ESTOMAGO E DOIS CESTOS DE ERVA JÁ APANHADOS.

ENTRAMOS NO COLÉGIO, EXTERNATO LHE CHAMAVAM, CRIAMOS O NOSSO CLUBE, XWK DE BAPTISMO, ONDE MAIO DE 68, GREVE E LIBERDADE ERAM PALAVRA CORRENTE.

NO INICIO DO ANO LECTIVO DE 1972 PARTE DA TURMA DO 5º ANO SE REVOLTOU. CHEGA DE BATAS ABAIXO DO JOELHO, CHEGA DO CONTROLE DO CABELO DOS RAPAZES, CHEGA DE LEVAR PORRADA DOS PROFESSORES; ENTÃO O COSTA ARAUJO ERA ESPECIAL NEM QUE FOSSE A DAR CANADAS NA LURDES QUE NA ALTURA ESTAVA GRÁVIDA.

DURANTE UMA TARDE, UMA DEZENA DE ALUNOS, NÃO FORAM ÀS AULAS E GRITARAM BEM ALTO O QUE NÃO QUERIAM – PORRADA. NO FINAL DAS AULAS, OS CONTESTATÁRIOS ENTRARAM NO ESPAÇO DAS AULAS PARA RECUPERAREM OS LIVROS E SEGUIR PARA CASA.

EU, APRESSADO QUE ESTAVA, SEGUIA À CABEÇA DO NOSSO GRUPO QUANDO SOU AGARRADO PELO CORTES:

- ENTRA NA SECRETARIA

- NA SECRETARIA EU? VOU MAS É PARA CASA.

O ENG ARTUR RODRIGUES ACABOU COM A CONFUSÃO OU, DIRIA EU, SALVOU O CORTES.

QUANDO O CORTES COVARDE ME ATINGIU PELAS COSTAS O BANDOLA AGARRO-LHE OS COLARINHOS E ALÇOU O PUNHO:

- AI FILHO QUE É A TUA DESGRAÇA, GANIU O CORTES.

TRÊZ DIAS DE SUSPENSÃO PARA CURAR O CORPO DA COÇA QUE LEVÁMOS. REGRESSAMOS AO CURRAL CHAMADO EXTERNATO.

TENTARAM HIMILHAR-NOS NO DIA SEGUINTE EM FRENTE DOS NOSSOS COLEGAS. SERMOS OBRIGADOS A AJOELHAR E ESTICAR O BRAÇO FASCISTA-NAZI-SALAZARISTA FOI PARA NÓS UM GOZO. QUANDO NOS OBRIGARAM A PEDIR DESCULPA AOS COLEGAS AINDA HOJE O CORTES ESTÁ À ESPERA.

EU, A LUZ E A FERNANDA, O RESTO DOS NOSSOS COMPANHEIROS AMIGOS, AGRADECEMOS AO HOMEM QUE FOSTE E, SE MAIS NÃO FIZEMOS,PELO MENOS ACABÁMOS COM A PORRADA NO EXTERNATO EM MELGAÇO.

 

ATÉ SEMPRE BANDOLA, ATÉ SEMPRE EDUARDO CASTRO

 

TRIPA