Fragmentos de vidas raianas, 1978 a 1981 - VIII
Continuação do post do 31 de março de 2018.
Apesar disso, com as parcas recompensas da lavoura, os magros teres e uns trapicheos – negócios ilegais – circunstanciais, a existência jocosa desta população era visiva.
A gente aceitava a vida rotineira, estóica, compassada pela carrinha que, de manhã, lhe trazia peixe fresco de Vigo; pelo tempo, que era o decisor invariável da viveza e dos encargos colectivos; e pelos crebros comboios que faziam ou não uma transitória paragem no povoado.
O prestigioso e sumptuoso Expreso Rías Bajas que unia a Ciudad Olívica – Vigo – à capital do Reino – Madrid –, e ali apitava por volta das onze da noite, deixava-os impressionados, atónitos. Cópia do famigerado Orient Express, fora fornido, como outros, pela Compagnie Internacionale des Wagons-Lit, depois da sociedade belga que criara o ilustre comboio cessara toda exploração como operadora ferroviária em 1971.
Através das vastas e lustrosas vitrinas do vagão-restaurante, enxergavam os viajantes endinheirados diante de pantagruélicos e refinados pratos. Este espectáculo mirífico e, ao mesmo tempo, fantasmagórico – possível devido à morosidade da locomotiva, compelida pela sinuosidade da linha – pasmava-os e devolvia-lhes a modicidade e a inanidade com as quais se debatiam
Para a prosperidade das aldeias e os seus moradores, a estação era capital, era o seu âmago; a linha Vigo-Orense, o sendeiro para as deslocações inevitáveis. O comboio constituía a única alternativa para os poucos jovens que ainda havia nos lugares redondezes de ambas margens, e cujo futuro dependia dele. Os colegiais utilizavam-no para ir a Ribadávia onde se situavam os colégios mais acercados; os que faziam estudos superiores apanhavam-no à sexta e ao domingo à tardinha para regressar a Santiago de Compostela, depois de um fim-de-semana entre os seus.
Da orla esquerda, distinguia-se um belo, harmonioso e sólido casarão burguês. O contraste com as casas das aldeias das duas ribas era espectacular. Os que se dirigiam para a estação ficavam uns instantes admirativos diante daquele solar, apesar de já o terem visto. O considerável terraço e as colossais galerias envidraçadas, face ao rio, ofereciam uma vista fantástica sobre o Minho e Portugal. Mais abaixo, na parte traseira, uma serração inteiramente mecanizada era imperceptível. Nela trabalhava perto de uma dezena de homens. Mensalmente, despachavam vários vagões abarrotados de pranchas, vigas, traves, troncos e outras madeiras para toda a Espanha. O caminho-de-ferro, ao qual estava subordinada, configurava a sua artéria indispensável.
Era pertença da família Alves Gomes. O genitor, natural de Ponte de Lima, casara com uma espanhola, mas tanto ele como os numerosos filhos eram conhecidos pelos Branquinho. O contrabando fez dele um homem fértil. Várias casas e terrenos disseminados pela zona, serviam-lhe de entreposto para tudo o que contrabandeava. Excluindo o chefe da estação, só ele usufruía de telefone. Apesar da sua influência e dos seus conhecimentos, teve de se refugiar uns tempos em Cevide – onde começara a negociar antes de se instaurar do outro lado – por ter sido objecto de delação. Alojou-se na casa onde vivera, meio degradada. Dali, com um cúmplice, coordenava o seu business sem ser molestado. Para controlar os guardas fiscais com mais facilidade, comprou o moinho junto do Trancoso, a dois passos do posto. Intencionara fazer umas obras de conforto na moradia, mas não teve tempo: o obstáculo que o compulsara a espaçar-se dos seus fora revogado. Reinstalou-se no casarão da Frieira, de onde pilotou os negócios até falecer.
A família Branquinho fora a mais virente e basta da Frieira da margem direita do Minho. Graças ao pé-de-meia amealhado pelo Alves Gomes, os filhos puderam reciclar-se um pouco por toda a Galiza. Só o mais novo, o Carlos, prorrogou o business que enriquecera a dinastia Branquinho: o contrabando. O seu terreno era o lugarejo de Pousa, em frente da freguesia de Chaviães, por onde circulavam os artigos postulados pelos fregueses portugueses. O petate, dificilmente levado às costas por uma rampa até à beira-rio, era, em seguida, transportado para o lado português numa batela que fazia um vaivém infindável durante a noite.
Todas as casas que fizeram parte do esquema concebido por Alves Gomes para o exercício da ramboia – contrabando – foram-se deteriorando progressivamente até se transformarem em ruínas. A algumas apenas se lobrigavam partes, tanta era a vegetação bravia e daninha que as cobria.
Oficialmente, a tienda do Manolo estava aberta em permanência e sem excepção das oito às vinte horas quando o sol se deitava mais cedo – de Outubro a Março –, e até às vinte e duas horas quando o sol arredava mais tarde – o resto do ano. No entanto, os horários eram flexíveis, raramente respeitados; o fecho era decidido pelo número de clientes e pelas obrigações do contrabando.
Como acontece ordinariamente nas mais pequenas aldeias ou lugares, a sua loja era o local crucial onde tudo o que ocorria, se fazia, se dizia, se sabia ou se pensava na aldeia da margem esquerda era propagado, discutido, comentado e reiterado pela aldeia homónima da banda direita do Minho.
Na loja, ao lado do café, o Manolo vendia um pouco de tudo: géneros alimentícios, louças, recordações, roupas, tintas, panelas, ferramentas, produtos e alfaias agrícolas, e tudo o que reivindicasse o pescador mais intratável e cerimonioso.
Era dono dum autêntico minimercado bastante rentável, que lhe permitia uma vida planturosa e livre de dificuldades factuais. Porém, os proveitos mais roborativos tirava-os do contrabando.
No seu negócio coexistiam pessoas que tinham trabalhos variegados e, visto o leque de produtos que propunha, as razões de lá encontrarem o que era urgente não faltavam. Os consumidores provinham de todo lado e formavam uma clientela fixa e leal.
O escudo, sobreavaliado – não andava longe das duas pesetas –, tornava um grande número de vitualhas muito mais acessíveis em Espanha. Aos sábados, domingos e feriados, mas especialmente aos sábados, naquela região fronteiriça o escudo e os portugueses eram os patrões das lojas, dos cafés e das limitadas boutiques.
Regra geral, quando o tempo estava bom, já o Manolo tinha o café e a loja abertos antes das oito. A Rosa, a criada portuguesa, era a primeira a madrugar a fim de passar a esfregona no chão do café e da loja; o patrão, o segundo, cerca de meia hora mais tarde.
Continua.