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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

ÁGUAS DE MELGAÇO

melgaçodomonteàribeira, 07.09.24

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ÁGUAS GASOCARBONOTADAS

ÁGUAS DE MELGAÇO

As nascentes do Peso, freguesia de Paderne, concelho de Melgaço, situam-se a cerca de 2 km a SW da vila de Melgaço. Destacam-se na localidade do Peso duas ocorrências distanciadas 120 m, dispostas segundo direcção E-W (Ribeiro e Moreira. 1986). As nascentes situam-se, concretamente, na confluência entre a Corga de Surribas e o Ribeiro da Cividade (Nascente Principal) e mais a oeste, na margem esquerda do Ribeiro do Peso (Nascente Nova). Estes ribeiros juntam-se e formam um pequeno afluente do rio Minho, o ribeiro da Folia.

Na zona distingue-se, sob ponto de vista hidrogeológico, um granito de duas micas, cortado por filões pegmatíticos orientados segundo direcção N-S, filões de granito claro, de grão mais fino que o granito encaixante, com orientação E-W (Ribeiro e Moreira, 1986).

A nascente principal é captada por galeria ao longo de um filão pegmatítico orientado segundo N-S e a Nascente Nova é captada em poço, contribuindo com o maior caudal.

A água mineral que nasce na Concessão de Melgaço é mesossalina, com reacção ácida e função pronunciadamente alcalina. É uma água gasocarbónica, bicarbonatada, cálcica e ferruginosa (Silva, 2002). D’Almeida e D’Almeida (1988) referem que certas propriedades químicas, nomeadamente a presença de elevada quantidade de ferro num ambiente rico em gás carbónico, conferem a estas águas uma capacidade muito notável, verificando-se a turvação e a precipitação de alguns dos seus minerais pouco depois de expostos ao ar. Tendo em conta as suas propriedades mineromedicinais é comercializada e engarrafada com o nome de Águas de Melgaço.

O primeiro registo das Águas de Melgaço data de 1884, altura em que corre a notícia do caso extraordinário da cura da mulher de um médico de Vila Nova de Cerveira que sofria de uma doença do estômago. A partir daí as águas ganham fama pelos seus poderes ao nível digestivo. Em 1885 efectuou-se a primeira análise química detalhada da água da fonte principal de Melgaço e consecutivamente foi criada uma infra-estrutura de madeira onde se processa o engarrafamento que serviu simultaneamente para abrigo e comodidade dos doentes. Em 1924 foi criada a estância balnear, altura em que recebia pessoas de todo o país, tendo o seu edifício e espaço envolvente contribuído para um maior afluxo de visitantes. Hoje a estância termal encontra-se bastante degradada e sem actividade, estando a decorrer obras de requalificação de um espaço que pelo seu valor cénico e hidroterapêutico muito contribuiu para a divulgação da região.

PATRIMÓNIO GEOLÓGICO DO VALE DO MINHO E SUA VALORIZAÇÃO GEOTURÍSTICA

Marta Susana Fernandes Rodrigues

Universidade do Minho

Escola de Ciências

Novembro 2009

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ÁGUA DE MELGAÇO EM MANAUS - SEC. XIX E XX

melgaçodomonteàribeira, 25.03.23

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 festa da cultura, anos 1980

 

DA ÁGUA DOS RIOS ÀS ÁGUAS ENGARRAFADAS

 

Tratamos aqui de estabelecer uma pesquisa não com o artefacto em si: a garrafa de água termal da marca portuguesa, “Águas de Melgaço”. Mas com um contexto que acabou por ser materializado durante o final do século XIX e início do século XX, estabelecido com diferentes partes do mundo, sendo uma delas, Manaus.

Os exemplares estudados no Laboratório de Arqueologia Alfredo Mendonça ilustram a frase em alto-relevo impressa no vidro da garrafa, e que foram consideráveis na pesquisa que se seguiu. As Águas de Melgaço acabaram por se transformar numa ferramenta para uma análise sociocultural da sociedade manauara através do seu consumo.

Em que se pese que ao analisar a cultura material como fruto de uma sociedade e suas especificidades, possa-se também estar considerando como a cultura do consumo modifica a própria sociedade, e esta, por sua vez, colore em diferentes tons essa cultura: é um processo recíproco (Lima, 1985).

Há de se considerar que a cultura do consumo exposta através do marketing das Águas de Melgaço torna-se uma janela ampla na compreensão dos mecanismos que mantém a sociedade em constante funcionamento e modificação, e como estes são possibilidades de pesquisa e investigação (Trigger, 2004).

A “Águas de Melgaço” faz com que reconheçamos as relações entre os bens de consumo e a sociedade manauara, explicados por McCracken (2003), e nos faz entrever e compreender como um bem diferente de todos os outros encontrados no mercado local do período, pode influenciar a cultura de consumo, e nos faz avaliar as possíveis consequências e mudanças sociais causadas pela circulação da marca na cidade de Manaus.

Pode-se reconhecer, através dos resultados até agora obtidos, que o grande sucesso e fama obtidos pela marca em questão não foi apenas o resultado da qualidade do produto ou excentricidade deste. Na verdade, deveu-se muito mais às táticas propagandísticas traduzidas em promoção publicitária que, além de ser em grande número, possui agregado em si valor simbólico que pôde atuar de forma a moldar hábitos, influenciar o consumidor e criar uma imagem idealizada do produto, que é a água engarrafada portuguesa em questão.

As Águas de Melgaço em Manaus do início do século XX serviram como fontes de recursos e meios pelos quais podemos visualizar as trocas culturais de uma sociedade de consumo e seus contextos. De elemento da natureza, facilmente obtida nos muitos rios e igarapés da região, usada no lazer, nos balneários públicos, para água engarrafada e consumida por parte da população a “preços módicos” como se lia no seu rótulo.

Esta água medicinal portuguesa como cultura material daquele contexto vem ilustrar o estabelecimento de normas, proibições, tabus e hierarquia político-social estabelecida através da propaganda que massifica o seu aspecto curativo e medicinal. “A água, na medida em que é hierarquizada, tem uma história (…). É em torno destes parâmetros que se constroem as representações sociais sobre a água)” (Quintela, 2003, p. 180).

Levar em consideração que as formas de expressão artística e publicitárias relacionadas a produtos medicinais e afins possuem poder de influência no comportamento do público consumidor é reafirmar a existência de interações intrínsecas entre o simbólico e o imaginário com o meio cultural e material.

A água comum, aquela que mata a sede, também foi utilizada como copartícipe de uma série de ritos formadores da cultura e do consumo daquele contexto. Bem como serviu para extinguir, sanitarizar, higienizar e expurgar para a periferia uma série de práticas sociais que não condiziam com a lógica globalizante e capitalista. Contribuindo para uma política de classes na época e tirando uma oportunidade daqueles que estavam à margem desse sistema, e cujo paradoxo era o de não possuir meios necessários para consumir a água engarrafada. As Águas de Melgaço não só selaram um contexto em seus rótulos, como também selaram as muitas vidas de quem continuava com sede: ora com a sede de uma sobrevida melhor, ora com a sede de quem a tinha como fetiche de consumo.

 

A SAÚDE ENGARRAFADA NAS ÁGUAS DE MELGAÇO:

CULTURA E CONSUMO NA MANAUS DO SÉCULO XIX-XX

Tatiana de Lima Pedrosa Santos

Doutorado em História

Universidade do Estado do Amazonas

Samuel Lucena de Medeiros

Mestrando em História

Universidade do Estado do Amazonas

2018

ACÇÃO SÓCIO-ECONÓMICA

melgaçodomonteàribeira, 28.05.22

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 parque termal  - peso

 

ACÇÃO SÓCIO-ECONÓMICA

 

Os habitantes de Melgaço construíram o seu modo de vida com características particulares, dedicando-se à agricultura, pecuária e desenvolvimento de utensílios e outros instrumentos necessários que foram marcando a vida quotidiana desta população. Apresentam tradições ligadas ao artesanato, como a tecelagem em linho e lã, alfaias agrícolas, canastros e moinhos, formando um conjunto de actividades definidoras da história do concelho. O rico património do concelho de Melgaço é o ponto forte de atracção turística, impulsionado pelo aproveitamento das suas potencialidades históricas e rurais, sendo assim, o turismo um sector muito importante, gerador de crescimento económico, complementando a actividade agrícola, que continua a ser a actividade predominante. A aposta no turismo é recente e acompanha uma tendência de procura cada vez mais intensa. Através da promoção da gastronomia pretende-se atrair novas pessoas, divulgando um leque mais alargado de atractividades para além da beleza natural das paisagens. Complementando, o Parque Naciional da Peneda-Gêres constitui-se como uma importante referência no desenvolvimento de actividades de proximidade com a natureza, tirando partido de cenários naturais e promovendo a prática de desportos radicais como o rafting, rappel, slide, escalada, canoagem e caminhadas, que são cada vez mais procurados. O interesse no investimento em modalidades turísticas rurais está a aumentar, verificado em projectos de recuperação que impulsionam a diversidade económica local e na prestação de serviços e comércio tradicional (Melgaço, 2013).

A comercialização de produtos termais e outros complementares aos tratamentos, bem como produtos relativos à identidade local são muito importantes pela sua vertente diferenciadora. Os objectivos de crescimento de cada estància levam a perseguir outros seguementos de mercado, renovando instalações, diversificando os produtos, subindo ou baixando preços, em busca de uma melhor situação competitiva. É visível uma gradual exigência a nível de diversidade turística, de modo que a componente terapêutica se apresenta como factor fundamental na escolha das termas, influenciando também a elevada qualidade, conforto e tranquilidade. No parque termal do Peso, o início do engarrafamento e comercialização das águas termais de Melgaço foi um importante factor de desenvolvimento económico local (Mangorrinha, 2006).

Apesar do engarrafamento e comercialização da água termal funcionar como factor mais ligado ao termalismo, apenas uma pequena parte das águas passa pelo processo de industrialização. Na manutenção destes equipamentos industriais de recolha das águas minerais, o factor sustentabilidade é cada vez mais importante para uma equilibrada integração paisagística, tendo em vista as necessidades  das gerações futuras e adaptando o processo de captação da água termal a este princípio, bem como a preservação do meio ambiente. Para a indústria termal ser sustentável é importante atender a questões sociais, entendendo o ser humano como parte integrante do meio ambiente; questões energéticas, considerando que a energia é geradora de produção económica e da consequente melhoria das condições de vida da população.

O termalismo em Portugal nunca atingiu valores de oferta e procura semelhantes aos restantes países europeus, por razões políticas e económicas e também devido à sua secundarização pela classe médica. Portugal possui uma das mais completas variedades de água termal da Europa e condições climáticas favoráveis que permitem o funcionamento anual das estâncias termais (Mangorrinha, 2000). Daqui parte a importância de se dinamizarem as termas e de se criar uma rede termal a nível nacional que demonstre consistência e seja projectável internacionalmente.

 

Medeiros, Daniela Faria Vilela Lourenço

RECUPERAÇÃO E REVITALIZAÇÃO DO PARQUE TERMAL DO PESO

http://hdl.handle.net/11067/1506

Universidade Lusíada do Porto

Dissertação para obtenção do Grau de Mestre

Porto 2013

PARQUE TERMAL E ÁGUAS DE MELGAÇO

melgaçodomonteàribeira, 09.04.22

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RECUPERAÇÃO E REVITALIZAÇÃO DO

PARQUE TERMAL DO PESO

 

No lugar do Peso nasceram as águas minero-medicinais, junto ao ribeiro da Bouça Nova um afluente do rio Minho. Foi em 1884 que se registou, na Câmara de Melgaço, o pedido de aproveitamento das águas do Peso para fins medicinais, e no ano seguinte, em 1885, já se engarrafavam as águas num pequeno abrigo. O terreno das águas do Peso foi passando por várias empresas que muito contribuíram para o seu crescimento. Entre 1897 e 1898 a afluência dos aquistas teve um grande aumento devido ao desenvolvimento dos meios de transporte e vias de comunicação, encurtando as distâncias entre Portugal e Espanha. Com o aumento do consumo da água termal, foram investidos vários recursos na procura de novas captações para aumentar o caudal da água e, em 1904, foi descoberta e adquirida uma pequena nascente localizada em terrenos adjacentes. O parque é constituído por três fontes próximas, mas com características diferentes a nível de composição química e volume caudal, encontrando-se junto aos limites do ribeiro, o que resulta na união dos dois afluentes. A orientação dos cursos de água está directamente relacionada com a posição das três nascentes. Na direcção Sul/Norte corre o ribeiro da Bouça Nova, passando em frente ao pavilhão da fonte principal, onde a água é captada por galeria e mais à frente existe a fonte mais pequena que abastece o edifício do balneário. Ao ribeiro da Bouça Nova junta-se o ribeiro da Folia, que corre de Este para Oeste, passando por trás da fonte Nova cuja captação é feita por um poço com cerca de dois metros de profundidade. Foi através de análises químicas que se concluiu que a fonte principal continha a mais rica das águas gasocarbónicas bicarbonatadas cálcicas portuguesas (Leite, 2007). Esta água tem propriedades hipoglicemiantes e hipocolestrolémicas, possuindo a faculdade de ajudar a controlar os níveis do açúcar e gordura do sangue, sendo por isso indicada para o tratamento de doenças do aparelho respiratório, digestivo, cardio-circulatórias, metabólico-endócrinas, reumáticas e músculos-esqueléticas (Barata, 1999). Deste modo, a programática termal revela-se abrangente, contemplando tratamentos para problemáticas de diferentes índoles, permitindo um melhor e completo usufruto das propriedades da água.

 

RECUPERAÇÃO E REVITALIZAÇÃO DO PARQUE TERMAL DO PESO

Daniela Faria Vilela Lourenço Medeiros

Dissertação para obtenção do GRAU DE MESTRE

Porto 2013

 

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HOTEL RANHADA, UM HOTEL COM HISTÓRIA

melgaçodomonteàribeira, 07.08.21

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capela do hotel ranhada

TERMAS DE MELGAÇO:

OS DIAS SABOROSOS DE UMA GLÓRIA SUBMERSA

ROTEIRO SENTIMENTAL

Por Pedro Leitão

 

Estamos em Agosto, o ano será de 1948, pouco mais ou menos. São seis da manhã. A esta hora, a senhora Condessa de Saborosa já está levantada e vestida. Desde que enviuvou apronta-se sempre de preto carregado. Dá os últimos retoques ao cabelo no seu quarto, é dos melhores que se alugam aos hóspedes de mais posses. Tem mesmo quarto de banho privativo, é dos poucos que existem assim no hotel. Os outros são bons, estão bem mobilados e decorados, mas ficam-se pelo lavatório e pelo bidé de porcelana. A senhora condessa vai descer daqui a nada à sala de jantar para um pequeno-almoço sóbrio, para não desfalecer pelo resto da manhã. Anda a águas nas termas, e a dieta pede mais respeito pelas manteigas e pelos açúcares. Por todo o grande Hotel Ranhada, o dia desperta aos poucos com o tufa-tufa dos passos delicados de outros hóspedes madrugadores. São senhoras distintas, do melhor que haverá na nossa aristocracia. Mas a mais exemplar no madrugar é, sem dúvida, a senhora Condessa de Saborosa. Há muitos anos que lhe conhecem este hábito aqui pelo hotel, onde é tratada como se fosse da família. Mesmo agora, que ultrapassa os sessenta anos, teima em se levantar cedinho, da mesma maneira que o fazia aos vinte. A menina Julinha, filha do senhor Mário Ranhada, o dono do hotel, ainda dorme a sono solto, indiferente a este suave bulício. Só o pai já está levantado para a azáfama matinal, orientando os criados, que a canseira da manhã ainda está para vir, pois haverá que cuidar do almoço para duzentos hóspedes (A pequerrucha haveria de chegar a avó sem nunca ter sabido o nome desta condessa. “Só a tratava de senhora condessa” desculpa-se, hoje, a senhora D. Maria Júlia Ranhada).

A senhora condessa está a sair agora mesmo do hotel. Sobressai pelo seu cabelo branco, com carrapito bem feito atrás e popa alta à frente, são arranjos que encaixam melhor ainda nas suas feições muito finas, diferenciando-se, à saída, das demais senhoras da sua condição, que lhe seguem o passo. Salta à vista que sabe zelar a linha. Apesar de sexagenária, irradia ainda beleza e faz adivinhar que, na mocidade, fora bem capaz de arrastar atrás de si muitos pretendentes. Cá fora, o arruado que conduz ao balneário termal ainda se resguarda do calor arrebentadiço neste começo de mais uma manhã estival. A fresca vem-lhe do manto sombrio destes plátanos e destas acácias, que correm o trajecto, embelezando-o como prelúdio de uma vida termal que se adivinha intensa lá para o meio da manhã. À porta, está o calhambeque do hotel para que estas senhoras e outros hóspedes não façam a caminhada a pé, que é sempre coisa para um quilómetro (noutros tempos, ia-se de charrete, o cocheiro era o senhor Rocha, que acumulava estas funções com as de corretor do hotel, até ia à estação de Monção esperar os hóspedes, depois deu-lhe para ser também dono de um hotel, o Hotel Rocha, hoje devoluto).

O senhor Mário Ranhada faz questão que embarquem todos no pequeno autocarro, mas não há nada a fazer: todos recusam. A pé é que se vai bem, as diabetes mandam andar. Partem assim cedo para guardar vez no balneário termal. A meio da manhã, já bebidas as águas e tomados os banhos, a senhora Condessa de Saborosa encontra-se no Parque das Termas com a senhora D. Amélia. Esta sua grande amiga é esposa do professor doutor Eduardo Costa, director do Instituto Pasteur em Lisboa, que acumula agora estas funções com as de director clínico da estância. Andam atarefadas com a quermesse, eu organizam todos os anos a favor dos pobres das redondezas, enquanto estanciam no Peso de Melgaço. Passam estes dias a recolher donativos e compram roupas e outras coisas necessárias. Depois da cura do corpo, fazem a do espírito. A excelentíssima dona Amélia é uma senhora muito alta. Quando está ao lado do marido, que é assim sobre o baixinho, vê-se que a diferença entre ele e ela vai a modos de capela para catedral. O distinto médico anda sempre de lacinho clássico, mesmo de bata branca nunca o tira, fica a dar consultas até tarde, às vezes são nove da noite e ainda está a atender aquistas. La noblesse oblige.

Por esta manhã a meio, já outros aquistas percorrem, por mero passeio, as avantajadas alamedas do Parque das Termas, colmadas pela abundante ramaria. O seu traço urbanístico saiu do lápis do senhor José Ranhada, tio da Julinha, quando geriu as termas, faz já alguns anos. Por esse tempo o senhor José Ranhada tinha o estranho hábito de se entrincheirar no escritório das termas, nas quentes tardes de verão, e, de arma de pressão apontada, mirava, de olhinho caído, toda a truta que subisse, arteira, o regato cristalino que desce à ilharga daquele ponto. Qual águia-real, era certeiro de visão e muito mais de mira, não precisava de garras, nem de voos picados, a chumbada garantia-lhe boa pescaria para a janta.

A senhora Condessa de Saborosa será dessa época, pois há muito ano que vem aqui às termas. Escolhe sempre o Julho ou o Agosto. São os meses melhores para estar, em grupo, com a gente da sua condição. Nunca reserva hotel em Setembro. Este é o mês mais procurado pelos novos-ricos, e a senhora condessa e o seu grupo não querem misturas. Mas, se espreitarmos a bolsa duns e doutros, veremos que uma outra D. Amélia, a senhora D. Amélia de Ascensão Moutinho, burguesa típica do Porto, mete muita fidalguia no bolso. Ostenta jóias até ao pescoço, põe-se toda “um luxo”, é podre de rica, não tem descendentes, vai deixar tudo a uma afilhada (“Boa senhora, esta D. Amélia Moutinho. Estava atenta às asneiras que eu e as minhas irmãs fazíamos em pequenas, metia-nos respeito, mas, apesar da sua aparência austera, repreendia-nos com coração de mãe”, recorda, hoje, a D. Maria Júlia Ranhada, a Julinha).

  1. Amélia Moutinho, dona do Porto Meia, é há muito hóspede do Hotel Ranhada, está cá todos os anos, traz motorista e dama de companhia, já tem reserva para os primeiros vinte dias deste Setembro que vem, prefere sempre o Setembro, e faz bem em não escolher o Agosto, ao menos escapa ao irritadiço marido da senhora Condessa de Feijó. É uma criatura insuportável aquele homem assim baixinho e gordinho, oh! se não é. Em Setembro que vem teremos aqui no Hotel Ranhada os Teixeira, eles são donos de uma cadeia de talhos. Trazem a família toda, são para aí umas trinta pessoas. Vêm os avós, os netos, as noras, as sogras, a prole é de banzar. São dos mais antigos hóspedes do Hotel Ranhada. Esta família já cá vem a águas desde finais do século XIX, os mais velhos ainda privaram com o fundador, o senhor António Maria Ranhada. Hóspedes tão antigos como eles só os da família Linhares. Um dia antes de se instalarem, já cá está uma carrinha para despejar as malas todas. Menos canseiras dão os lavradores ricos que chegam por finais de Setembro e que por aqui ficam até 10 de Outubro se tanto. O senhor Mário Ranhada chama-lhes os “hóspedes das castanhas”. Nesta última leva chegam os Sousa Lopes, que, não contentes com o que ganham na lavoura, ainda se metem a fabricar botões. Pelo fim desta manhã de Agosto, há-de comentar-se à mesa, com pilhéria, estas e outras bugiarias.

Boas maneiras

Os empregados de mesa do Hotel Ranhada nunca iam vestidos “às três pancadas” para a sala de jantar. Faziam sempre duas mudas diárias. Ao almoço envergavam casaquinho branco, com botões dourados, e calça preta. Ao jantar, iam de trajo escuro, tipo smoking, com os colarinhos de camisa branca virados e laçarote preto. Mas José Meleiro de Castro, que lá trabalhou ainda no período áureo, já não é do tempo dos colarinhos virados e do fato “à grilo”. Embora vestisse à noite fato escuro, a gola do casaco já levava cetim preto. Ao almoço era a farda do costume. Os hóspedes não se aprontavam por aí além para a refeição do meio-dia. Mas à noite já iam para a mesa mais aperaltados. Os cavalheiros caprichavam com “bom fato de fazenda lisa, de tons azuis ou castanhos, e gravata a condizer”, tanto quanto se recorda José Meleiro. As senhoras apareciam com vestidos de seda, muito “levezinhos”, e não esqueciam os seus colares. Só as mais idosas faziam questão de levar, às vezes, o seu “xailezinho”. Em Julho e Agosto, serviam-se entre 150 a 200 hóspedes. “Todos ao mesmo tempo naquela sala de jantar”, lembra José Meleiro. Eram rápidos a comer, estavam quase todos a dieta, “tudo à base de peixe cozido e de carnes grelhadas”. Durante a refeição conversavam baixinho, eram muito delicados, não se ouvia sequer um bater de talheres. “Até exageravam”. Mas eram pessoas “de muito respeito e muita educação”. À noite, acabada a refeição, passavam à sala de jogos e não resistiam a contar anedotas “sem palavrões, nem grandes gargalhadas”. Os cavalheiros falavam também de negócios, mas a conversação era cordata. Aos fins-de-semana, a sala de visitas virava, às vezes, sala de baile, mas apenas se polcava, à falta de melhor orquestra, ao som das concertinas do senhor Avelino Gonçalves e do seu sobrinho. Ambos trabalhavam como afinadores daquele género de instrumentos no Peso de Melgaço. Mas Avelino Gonçalves ganhava também a vida como corretor do Hotel Figueiroa, há décadas em completa ruína, junto ao Parque das Termas. (O último dono foi um tal Manolo, galego, o filho é médico em Madrid e a filha foi viver para Vigo. “Nunca mais voltaram a Melgaço”). José Meleiro de Castro ainda é primo afastado dos Ranhada. “O António Maria Ranhada, fundador do hotel, casou com uma irmã da minha avó”. Foi trabalhar para o Hotel Ranhada muito novo, para escapar ao duro trabalho nos campos de que o pai era proprietário. Começou como despenseiro, passou a empregado de mesa e, por último, ao fim de 20 anos, já era chefe de mesa. “Era o último a sair e a fechar as portas”, recorda.

A nostalgia do comboio que trazia gente da Galiza

A estação ferroviária é galega, mas nela desembarcaram, durante anos, até 1915, muitos portugueses que iam tomar águas a Melgaço. Fica em Arbo, na margem direita do rio Minho. Desta terra raiana da Galiza avistam-se as termas de Melgaço. A estação de Arbo servia, assim, de alternativa para os aquistas que, naqueles tempos, só tinham comboio até Valença. Para não fazerem o resto da viagem até Melgaço em carros de cavalos, passando por Monção, onde a via-férrea chegara tarde (e mal), seguiam então de comboio por Tui e, daqui, subindo a margem direita do Minho, chegavam à estação de Arbo. Só tinham, depois, de atravessar o rio em barcaça. Na margem esquerda esperavam-nos as charretes postas à disposição pelos hotéis das termas melgacenses. Maria Júlia Ranhada não viveu esse tempo, mas a estação galega de Arbo aviva-lhe sempre a saga desses hóspedes, que fazem também a história dos primitivos tempos do hotel, fundado por seu avô, António Maria Ranhada. Quando lá vai, sente a nostalgia dos comboios que, outrora, traziam gente para as termas de Melgaço. Nesta gare, correm-lhe ainda as histórias da infância, que ela e as irmãs ouviram contar. Vem-lhe à memória o avô António Maria, que ali desembarcara um dia, muito doente, para se salvar com a água de Melgaço.PL

 

Retirado de: SIM Revista do Minho

 

www.revistasim.com/pt/?p=1795

 

 

MELGAÇO, ÁGUAS DO PESO

melgaçodomonteàribeira, 07.09.19

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LUGARES DE CURA E DE LAZER: PRAIAS E TERMAS DO NORTE DE PORTUGAL ENTRE OS FINAIS DO SÉCULO XIX E INÍCIOS DE NOVECENTOS

 

Alexandra Esteves

 

Eram igualmente afamadas as águas das termas do Peso, na freguesia de Paderne, concelho de Melgaço. O pedido de aproveitamento das águas do Peso para fins medicinais foi registado na Câmara Municipal de Melgaço em 1884. Após uma época aurea, em que se enchia de aquistas em busca de cura para os seus males, seguiu-se um período de abandono que se prolongou por mais de 15 anos. Entretanto, o complexo termal do Peso retomou a sua atividade.

O desenvolvimento da vertente lúdica e social acabou por se verificar nas estâncias termais, como consequência das longas estadias que os tratamentos exigiam. Deste modo, a falta de saúde acabava por servir de pretexto para momentos de reunião familiar, pois raramente o aquista partia sozinho. Para ocupar os tempos livres, os hotéis proporcionavam muitas vezes actividades de entretenimento, procurando atrair e satisfazer uma clientela cada vez mais exigente. Por isso, contratavam atores e músicos, organizavam-se bailes, festas, jogos, soirees e passeios.

 

http://academia.edu