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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

SARAMAGO 1

melgaçodomonteàribeira, 23.11.19

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AS MENINAS DE CASTRO LABOREIRO I

 

Até Melgaço desfruta-se de uma paisagem agradável, mas que não sobressai particularmente sobre o que é comum encontrar no Minho. Qualquer destas bouças faria figura de preciosidade paisagística em terras menos avantajadas de mimos, mas aqui os olhos tornam-se exigentes, nem tudo os contenta. Melgaço é vila pequena e antiga, tem castelo, mais um para o catálogo do viajante, e a torre de menagem é coisa de tomo, avulta sobre o casario como o pai de todos. A torre está aberta, há uma escada de ferro, e lá dentro a escuridão é de respeito. Vai o viajante pé aqui, pé acolá, à espera que uma tábua se parta ou salte rato. Estes medos são naturais, nunca o viajante quis passar por herói, mas as tábuas são sólidas, e os ratos nada encontrariam aqui para trincar. Do alto da torre, o viajante percebe melhor a pequenez do castelo, decerto havia pouca gente na paisagem em aqueles antigos tempos. As ruas da parte velha da vila são estreitas e sonoras. Há um grande sossego. A igreja é bonita por fora, mas por dentro banalíssima: salve-se uma Santa Bárbara de boa estampa. O padre abriu a porta e foi-se às obras da sacristia. Cá fora, um sapateiro convidou o viajante a ver o macaco da porta lateral norte. O macaco não é um macaco, é um daqueles compósitos animais medievos, há quem veja nele um lobo, mas o sapateiro tem muito orgulho no bicho, é seu vizinho.

Logo adiante de Melgaço está Nossa Senhora da Orada. Fica aà beira do caminho, num plano ligeiramente elevado, e se o viajante vai depressa e desatento passa por ela, e ai munha Nossa Senhora, onde estás tu? Esta igreja esta aqui desde 1245, estão feitos, e já muito ultrapassados, setecentos anos. O viajante tem o dever de medir as palavras. Não lhe fica bem desmandar-se em adjectivos, que são a peste do estilo, muito mais quando substantivo se quer, como neste caso. Mas a igreja de Nossa Senhora da Orada, pequena construção românica decentemente restaurada, é tal obra-prima de escultura que as palavras são desgraçadamente de menos. Aqui perdem-se olhos, registos fotográficos que acompanhem o jogo da luz, a câmara de cinema, e também o tacto, os dedos sobre estes relevos para ensinar o que aos olhos falta. Dizer palavras é dizer capitéis, acantos, volutas, é dizer modilhões, tímpano, aduelas, e isto está sem dúvida certo, tão certo como declarar que o homem tem cabeça, tronco e membros, e ficar sem saber coisa nenhuma do que o homem é. O viajante pergunta aos ares onde estão os álbuns de arte que mostrem a quem vive longe esta Senhora da Orada e todas as Oradas que por esse país fora ainda resistem aos séculos e aos maus tratos da ignorância ou, pior ainda, ao gosto de destruir. O viajante vai mais longe: certos monumentos deveriam ser retirados do lugar onde se encontram e onde vão morrendo, e transportados pedra por pedra para grandes museus, edifícios dentro de edifícios, longe do sol natural e do vento, do frio e dos líquenes que corroem, mas preservados. Dir-lhe-ão que assim se embalsamariam as formas; responderá que assim se conservariam. Tantos cuidados de restauro com a fragilidade da pintura, e tão poucos com a debilidade da pedra.

De Nossa Senhora da Orada, o viajante só escreverá mais isto: viram-na os seus olhos. Como viram, do outro lado da estrada, um rústico cruzeiro, com um Cristo cabeçudo, homenzinho crucificado sem nada de divino, que apetece ajudar naquele injusto transe.

 

VIAGEM A PORTUGAL

José Saramago

Editorial Caminho

1995

pp. 82, 83

 

Publicado por: https://edoc.site/viagem-a-portugal-pdf-free.html

 

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