Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

OS CALÇÕES DO GÚ

melgaçodomonteàribeira, 17.05.14

 

Desenho de Manuel Igrejas

 

 

OS CALÇÕES DO PONTA DIREITA

 

 

    O Manelzinho conseguira do pai o bilhete para a Dona Olívia o deixar sair mais cedo da escolinha. Tinha-se estabelecido entre os alunos que sair mais cedo era demonstração de superioridade, esperteza, sobre tudo. O filho do Augusto do Félix era um dos que se sentiam inferiorizados por não ter, até então, conseguido sair mais cedo.

    O garotinho pegou o bilhete que o pai acabara de escolher, observou-o bem, especialmente o algarismo quatro. Dobrou o papel, meteu-o no bolso e saiu que nem uma faísca. Ia feliz que nem um passarinho que fugiu da gaiola. Já pelo caminho ia anunciando a sua saída mais cedo aos coleguinhas que encontrava. Na escola era alvo das atenções, pois já fazia alguns dias que ninguém saía mais cedo, pela impossibilidade de conseguir o bilhete do pai.

    Houve um dos maiores, que já soletrava, que tentou fazer um bilhete falso. Levou tamanho raspanete da professora e ainda ficou mais tarde, de castigo. Mas o Manelzinho estava super feliz. O seu bilhete corria de mão em mão e ele apontava para os outros o numero quatro.

    Havia na escola dois alunos novos, irmãos, filhos do sargento da Marinha. Esse sargento era o comandante do posto de marinheiros que vigiavam as actividades pesqueiras no Rio Minho, naquelas paragens. O Sr. Silva, sargento, muito querido do povo, que retornou mais tarde e ficou no posto até final dos seus dias, havia sido transferido para reciclagem, e para o seu lugar veio aquele outro sargento, que tinha os dois filhos. Estavam vindo do sul, tinham hábitos diferentes e até sotaque. Usavam bonés de couro, redondinhos, em gomos, com uma bolotinha no topo e uma pala comprida. Bem diferentes dos bonés e boinas de pano usados na terra. Eram bonés iguais aos que apareciam nas gravuras representando caçadas. Desses dois irmãos intrusos, o mais novo, da idade do Manelzinho, era o diabo em forma de gente. Fazia os maiores disparates que se possa imaginar. Arreliava, batia nos outros, roubava as merendas, pegava moscas e metia na boca assim como botava tudo o que pegasse. Levava rebuçados da Belabucha ou do Belchior, aqueles grandões que não repartia com ninguém. Pois o bilhete do Manel que andava em exibição de mão em mão foi parar na mão do irmão mais velho dos filhos do sargento. O mais novo, rápido como um relâmpago, rapou-lhe o bilhete da mão e num piscar de olhos, amassou-o, botou-o na boca e… engolindo-o ficou rindo para os outros com cara de parvo. Deus do Céu, que calamidade! O safado comeu o bilhete! O Manelzinho gritou desesperado e avançou para agredir o tolinho. A D. Olívia, apavorada com a gritaria, veio de lá de dentro, correndo. Acalmados os ânimos vieram as explicações. A professora não acreditou na história do bilhete e o filho do Augusto do Félix ficou frustrado para o resto da vida por não ter saído mais cedo algum dia.

    Um dia, remexendo, em casa, numa grande caixa de madeira onde guardavam roupas fora de uso, o Manuel descobriu um calção de jogar futebol, do irmão Gú. Aquilo foi um achado sensacional!

    O irmão mais velho era para ele um ídolo, o ponta direita do Sport Club Melgacense, o melhor jogador da terra, reconhecido por todos. Transmitiu o achado ao Rogério e este teve uma ideia genial: organizar um desafio de futebol. Iria arregimentar meia dúzia de rapazes que, com ele e o Manuel, comporiam um grupo. Faltava arranjar um adversário. Como o Manel andava na escola da D. Olívia, o Rogério incumbiu-o de levar ao Zeca o recado para um desafio lá no castelo. O Zeca da D. Olívia aceitou. Escalou os seus jogadores entre a canalha da escola e combinaram que no dia seguinte, entre as dez e as onze horas, que era quando a professora ficava mais tempo na cozinha preparando a comida, iriam todos urinar ao mesmo tempo e fariam o desafio. O Rogério recomendou ao Manel que não esquecesse os calções que era o principal do jogo. A bola, de pano, naturalmente, era o de menos. Qualquer rapazinho tinha uma ou rapidamente se faria com uma meia velha. No dia aprazado, quando o Manelzinho ia para a escola, o Rogério que tinha faltado à escola oficial, abordou-o para saber dos calções e ficar com eles até à hora do jogo e para o primo não ir com aquilo para a escola. O outro não queria ceder, pois já desconfiava que o Rogério o que queria era vestir os calções. Com a habitual conversa mais uma vez o convenceu de que ele muito pequeno e não iria ficar bem. Para contentar combinou: ele, Rogério, jogaria o primeiro tempo com os calções e o Manel, o segundo tempo do jogo.

    Ainda não tinha aparecido nenhum dos garotos que iriam tomar parte na contenda e já o Rogério, lá em cima, na bombardeira, trocara as suas calças pelos calções do Sport Club Melgacense. Todo imponente, com os calções que lhe passavam dos joelhos e mais parecia uma saia, foi bater à porta da escola chamar o Zeca e a sua turma. O Zeca ficou zangado pois não queria que a D. Olívia soubesse. Mandou o Manel avisar que ainda era cedo, quando fosse a hora ele avisaria. Ao levar o recado, enciumado, aborreceu-se com o Rogério por andar exibindo-se com os calções de futebol antes do jogo. O primo vestiu novamente as calças e esperou impaciente. Apareceram os outros rapazes e enfiou novamente os calções, saracoteando-se entre eles causando admiração. Mandou dois portadores chamar a outra turma. Outra vez o Zeca ficou zangado e mandou dizer que se não ficasse quieto não haveria jogo. Decidiu o Rogério, enquanto aguardava o grupo adversário, ficar treinando, só que ninguém havia levado bola. Foi mandado novo recado ao Zeca para trazer a bola. Além de não ter bola foi impedido de sair. A D. Olívia estranhara que tanto garoto que não era da escola viesse chamar o Zeca e acabou descobrindo a tramóia.

    O Rogério ainda ficou por ali mais uma hora até os outros saírem da aula. Chegou até a vir à Rua Direita para ser mais visto, enfiado nos calções. Passou a Leonor Balaca que rindo, perguntou: Oh, rapaz, que andas fazendo de saiote? O Manel saiu da escola aborrecido com o Rogério, tirou-lhe os calções e cada um foi para o seu lado. Não houve desafio de futebol, mas não teve importância, o Rogério realizara-se como futebolista, exibindo-se de calções de verdade. O Manelzinho, para não ficar frustrado, quando chegou em casa, vestiu os calções, que quase lhe chegavam aos pés, e andou do quarto para a sala, até chegar a irmã, que lhe ralhou por ter mexido na caixa da roupa.

 

                                                                         Manuel Igrejas

 

Publicado em: A Voz de Melgaço