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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

NUMA FRAGA O COTINHO II

melgaçodomonteàribeira, 01.07.23

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(continuação)

O caminho para as águas santas coincide durante um bom bocado com uma calçada romana, pelo menos é o que o povo diz, custando a crer, porém, que os milicianos de César se dessem a tanto trabalho para abrir e manter vias por encostas tão árduas e que aparentemente não conduziam a lado algum. Sempre a subir, curvando ora à direita ora à esquerda, são vários quilómetros que fizeram suar as estopinhas a muito pastor, a muito roçador de tojos, a muito animal de carga obrigado a transportar sustento e material para lhe fazerem a cama que, depois de transformada em estrume, voltaria a carregar talvez de novo encosta acima.

A vista é quase sempre deslumbrante, ampla, alguns lugarejos distantes a lembrarem que afinal há gente por aquelas bandas, para usufruir de ares tão puros, do azul de um céu tão luminoso que, à hora de mais calor, até fere a vista, obrigando a olhar para o chão e sempre a voltar as costas ao astro rei. As peregrinas mais velhas paravam, de vez em quando, para um curto repouso mas também para relembrar peripécias juvenis que associavam ao evento. A tia Palmira pediu uma pausa maior, o seu coração não gostava de subidas, e sentaram-se. Entretanto, Justino, que se limitava a subir, um pé atrás do outro, passo a passo, sem entrar no tagarelar das mulheres, continuou com as crianças, não sem antes explicar que era só seguir a calçada e quando a mesma acabasse estaria ele à espera num altinho, não havia nada que enganar.

Durante todo o percurso não se encontra água, nem de nascente nem de corga ou poça nalgum campo de feno mais afastado das casas. O calor não apoquentava por demasia mas a dureza da caminhada convidava a beber e, golinho agora, golinho logo, a água ia descendo nas garrafas. A mãe da pequenada alertava para não beberem tudo antes de chegar, era preciso deixar alguma para o piquenique, no final da subida ia saber melhor água do que Coca-Cola, esperassem para ver.

Juntou-se o grupo todo num planalto inesperado. Quem diria que após tanto subir se iria dar a um espaço tão amplo? Havia vacas a pastar e muitos cavalos, os afamados garranos que os proprietários das aldeias vizinhas largam no monte e vivem à solta, sem lei nem dono a domá-los. Dizem que são selvagens mas pouco, não fogem quando veem humanos, limitam-se a olhar altivamente e a manter alguma distância. Às vezes, um macho, com fêmeas ou crias por perto, pode oferecer algum perigo, mas aí cumpre ao homem respeitar o animal e não invadir o seu espaço. Não há notícias significativas de ter havido ataques por parte destes animais livres e belos no seu espaço natural, embora haja sempre medos ancestrais que afastam naturalmente os menos audazes. Naquele contexto, respeitando os conselhos do homem do grupo e também das mulheres mais experientes, as crianças mantiveram-se afastadas e sossegadas, olhando de longe, admirando sobretudo as mães e os potros, que havia de vários tamanhos e cores, um bem negro, dois ou três quase brancos, vários em tom de castanho. E a caminhada prosseguiu, com algum cansaço a dar sinal, dando-se por terminada três boas horas depois de iniciada.

Subiram ao coto. Água, nem sinal dela. Se calhar não era ali, alvitravam todos os que nunca lá tinham estado. As crianças corriam, procurando a fonte encantada. Justino e Maria garantiam que o local era aquele, não havia água, tinham-se dado ao trabalho de fazer pouco dos poderes de quem podia mais do que a gente, tinham o resultado à vista: a santa secara a fonte. E mais não disse. Sentou-se e preparou-se para comer a merenda. O mesmo fizeram os outros todos. Como se de uma festa se tratasse, partilharam-se petiscos, apesar da abundância não ter nada a ver com a de uma merenda festiva. Tostadas ninguém levara mas as velhotas rememoraram tempos idos e farnéis fartos, com uma enumeração detalhada de tudo a que tinham direito numa festa como a de São Bento ou a da Senhora da Boa Vista, no tempo em que se ia comer à sombra dos carvalhos e se convidavam os passantes para partilhar um naco de carne ou um prato de aletria ou arroz doce e beber uma pinga.

A deceção foi grande mas durou pouco tempo, se calhar porque a expetativa era pequena. Surgiu do nada, logo de foi, com as lembranças de antigamente, a algazarra da pequenada e a pose diante da máquina fotográfica, que alguém levara para assinalar o momento. Algumas das fotografias do grupo que todos os participantes receberam teriam direito a moldura e a figurar em sala de visitas. Foi um dia de convívio entre pessoas reunidas com um objetivo inalcançável à partida para alguns, que a falta de fé dos mesmos fez gorar para outros. Vá-se lá saber se alguém tinha razão e quem! Mais tarde viria a constar que o guia da expedição ficou agastado, sentira-se de certo modo humilhado, daí não ter dado um pio desde que foram confrontados com a ausência de água.

 

(continua)