NUMA FRAGA, O COTINHO I
UM PASSEIO À INFÂNCIA
O COTINHO DAS ÁGUAS SANTAS
(À TIA PALMIRA)
Desde sempre que se comentava que fulana e sicrana usavam a água do cotinho das águas santas para os seus “trabalhos”, sobretudo depois de uma ida à bruxa. Ninguém sabia ao certo o que faziam, quando o faziam e o fito com que se davam ao trabalho de deixar certas marcas pelas encruzilhadas do lugar, em certas noites de lua cheia. Mas que apareciam, apareciam e ninguém ficava muito à vontade quando encontrava sangue, borralha, penas de galo, pelos de gato e sabe-se lá que mais que o comum dos mortais desconhece, sobretudo quando há uma grande dose de ceticismo à mistura.
A certeza, dita e redita pelos próximos da tia Maria Santiago, de que nascia água no alto de uma fraga e que, depois de retirar todo o líquido do pocinho que se formara no cimo do penhasco, a cova volta a encher-se, passou para o imaginário de todas as crianças que o foram nos anos cinquenta e sessenta do século XX. A fraga onde tal mistério, vulgo milagre, se podia comprovar ficava ali ao lado, acessível a qualquer mortal com pernas para uma boa caminhada, quase sempre a subir, duas horas bem andadas, três no máximo, havendo crianças ou cansados, quiçá doentes do coração, a retardar o passo.
Sabendo que havia interessados em fazer uma excursão até ao cotinho, o Justino, do alto do seu saber de experiência feito, pois já lá tinha ido mais do que uma vez, prontificou-se a mostrar o caminho. Algo surpreendente esta disponibilidade vinda de alguém tido por pouco amante de conviver, cioso da sua distância, com um espaço vital bem mais amplo do que o da maioria dos vizinhos. Era de aproveitar, pois se Justino se prestava a tal prova era porque o assunto era sério. Combinou-se dia e hora, acertaram-se pormenores, como o piquenique a fazer no local, a distribuição dos participantes pelos carros que os levariam até ao ponto de partida, a fora de saída, que seria bem cedinho para evitar subir pelo calor que ainda se fazia sentir bem forte naquele início de setembro.
O grupo era seleto, escolhido entre próximos, a bem dizer íntimos, tudo família, à exceção do guia e de uma amiga. Três mulheres mais velhas, uma de meia idade mais os seus rebentos e uma primita, jovem na casa dos vinte e tais, todos levados pelo sentido de orientação do Justino e da Maria. Numa terra onde a água pelos montes só se faz sentir com as chuvas de setembro, acautelaram-se vários caminhantes de que não faltasse o precioso líquido nos farnéis. Que não seria preciso, ia-se ao encontro da água, para quê levá-la? Levasse-se antes vinho ou coca-cola para a merenda, que água não haveria de faltar no cimo da fraga. Pelo sim, pelo não, várias garrafas de vários tamanhos foram cheias na fonte, com crianças no grupo, mais valia prevenir. O Justino não pareceu gostar muito da falta de fé de quem assim ousava contrariar o seu bom senso mas nada disse, decidido a gozar o proveito de homem de poucas falas como era tido. Guardava-se para a chegada à fraga e fazer ver que os tolos é que desconfiam, mulheres inteligentes deviam ser menos dadas a essas fantasias de ver para crer, se um homem diz que é verdade é porque é, ele sabia do que falava. Certezas destas eram difíceis de rebater, mas pelo sim pelo não as garrafinhas de água seguiram em várias mochilas de grandes e pequenos.
A partida foi acompanhada por alguns curiosos, melhor dizendo, curiosas, que não se atreviam a participar na aventura, uma subida tão custosa não era para joelhos que rangiam e já habilitados a infiltrações para combate às dores nem para noventa ou cem quilos em cima de um metro e cinquenta e umas perninhas de macieira, que é o mesmo que dizer uns canivetes ou uns paus de virar tripas, dependendo da região onde se faz jus à comparação. Como não podiam ir mas ambicionavam a aguinha santa, só lhes restava pedir que lhes trouxessem uma garrafinha, ou um garrafão de dois litros, como queria a Alzira, que essa nunca foi avara a pedir. Dizem que hoje também não é pobre a dar e até se comenta, com alguma surpresa, que dá mais do que alguma vez se esperou dela, fazendo jus ao dito o liberal busca a ocasião para dar. Mudam-se os tempos, mudam-se as condições, mudam-se os hábitos.
(continua)