Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

NADA A DECLARAR! II

melgaçodomonteàribeira, 17.08.24

947 b -Cevide - Nova ponte internacional.-28.JPG

cevide - ponte internacional

ALTO EM NOME DA FAZENDA NACIONAL

“A ‘pareja’ já tinha passado para cima. Havia a hora da muda, que era quando nós atuávamos”, explica o antigo contrabandista. O chamado ‘aguardo’ era feito por dois soldados que percorriam os locais por onde poderiam passar os contrabandistas. Havia um pacto de cavalheiros: quando o guarda avistava alguém, gritava “larga!” ou dava alguns tiros para o ar. O contrabandista devia deixar a mercadoria e fugir sem que os guardas fossem no seu encalço. “Os contrabandistas têm histórias de como nos conseguiam enganar e nós temos as nossas histórias. Às vezes, juntamo-nos e até vamos tomar um café. É uma forma de revivermos um pouco esta vida e esse tempo que aqui se passou”, conta Avelino Fernandes, conta o antigo guarda-fiscal.

Evitavam-se os guardas-fiscais do lado de cá e os carabineiros do lado de lá. O contrabandista socorria-se de truques e artimanhas para passar a mercadoria. O guarda-fiscal fazia o mesmo, mas no sentido inverso. Era o jogo do gato e do rato que fazia parte do quotidiano e que serve hoje para confraternização nesta zona. Era uma fronteira de oportunidades onde familiares, amigos e vizinhos partilhavam o dia-a-dia. Hoje, a zona raiana está isolada, desertificada. O antigo guarda-fiscal explica que a força tinha mais deveres do que fiscalizar os bens que atravessavam a fronteira, sendo a vigia e a segurança nacional uma das missões mais importantes. “Isto era a sentinela da nação. A Guarda Fiscal fazia apreensões aonde os apanhava. Havia aqueles mais habilidosos que diziam: ‘deixa-me ir embora e tal’. Hoje, se vai na estrada e a guarda quer multá-lo, o que é que faz? Se ele tiver um coração mais mole, diz: ‘vá, vá-se lá embora’. Se encontra um com o coração mais duro vai multá-lo e acabou! Aqui era igual”.

A gradual abertura à livre circulação provocou a extinção do contrabando tradicional. Em Melgaço, encontrámos S. Gregório, na freguesia de Cristóval, que outrora vivia sob uma azáfama de pessoas à procura de um negócio ou de uma oportunidade. Quando as fronteiras abriram os comércios fecharam e hoje é uma localidade deserta marcada pelos vestígios da antiga alfândega moribunda e das casas dos guardas.

Catarina Oliveira recolhe testemunhos de contrabandistas e de passadores pela região de Melgaço. “Conheci vários tipos de contrabandistas, desde aqueles que o praticavam para sobreviver, porque as famílias eram numerosas na altura e viviam principalmente da agricultura; os outros eram os patrões, os detentores do monopólio. Havia hierarquias dentro do contrabando”.

“Vivia-se na miséria”, conta Catrelo. Ser contrabandista era ter uma vida de perigos. A possibilidade de ser preso pela Guarda Fiscal, quando ainda em Portugal, ou, bem pior, ser-se preso pelos carabineiros, quando já dentro de Espanha, era real. Havia ainda o perigo de cair em algum poço de água. No entanto, o maior medo dos contrabandistas portugueses era ser apanhado por uma bala perdida dum carabineiro. Catarina Oliveira, socióloga na Câmara Municipal de Melgaço, conta-nos que “os carabineiros atiravam a matar! Sem dó nem piedade. Os guardas-fiscais eram mais fáceis. O ordenado deles não era excecional”. Catrelo acrescenta: “Os carabineiros, havia alguns que comiam, outros que não. Eu tinha muita confiança lá. Na zona raiana tenho mais amigos na Espanha do que cá. Quando o Vaqueiro e o Gaúcho dissessem pára, tinha-se mesmo de parar”. Para exemplificar conta-nos uma história: “Num dia que não pude ir aconteceu a tragédia. O meu colega, (José Maria Pereira, o Ratinho) levou um rapaz novato. O carabineiro gritou: Alto! Mas o rapaz não parou. Se ele parasse não lhe acontecia nada porque ele não tinha nada. Mas assustou-se e começou a correr. Aconteceu a desgraça. Matou. Matou”. Não vemos lágrimas nos olhos do antigo contrabandista mas a exaltação revela desconforto e angústia ao recordar a situação. A socióloga explica que, “a miséria era para todos e assim todos tinham a ganhar. Cada um recebia a sua parte. Em dinheiro ou em mercadoria. Temos registos de apreensões, tanto da Guarda Fiscal como da Guardia Civil”.

Normalmente, o contrabandista era pessoa conhecida. “Os criminosos, nós não sabíamos o que ali estava. Podiam ser assaltantes de bancos. Pessoas à mão armada que tentavam fugir pela fronteira, clandestinamente. Chegamos a prender alguns indivíduos”. Na zona fronteiriça, era obrigatório passar na alfândega quando se queria ir a Espanha. Segundo Avelino Fernandes, as pessoas tinham de pagar para passar. “Havia de tudo. Havia malfeitores. Havia pessoas que pediam para ir a Ourense porque estavam doentes. Era a vida da fronteira”. “Íamos para lá ganhar seis escudinhos”.

“Desmontámos um camião Volvo no meio de um campo de milho. Para a cabine, eram nove homens. Quem trouxe o saco das ferramentas fui eu, centenas de chaves que até arriava. Eu era espia, eles iam no barco e eu ficava a vigiar. Havia os guardas, uns enfiavam o barrete e outros não. Cada um safava-se”, conta.

Nascido em 1937, João José Costa Oliveira foi para Melgaço em 1957. “Foi lá que aprendi com o Manuel da Garagem, o maior contrabandista que houve na zona norte. Era o chefe da equipa daqui da zona do contrabando: lingotes, cobre, emigração, café”. Era à hora combinada, sempre à “primeira hora”, quando o dia adormecia que o grupo se juntava e ia buscar a carga, tomando conhecimento do percurso e do destinatário. “Diziam-nos: precisas de estar ali em tal sítio. Não há que falhar! Mais tarde é que abri os olhos e trabalhei por minha conta. Mas antes é que foi o duro do contrabando”. Quando interrogado acerca da sensação que sentia, Catrelo não hesita em responder: “Não sentia medo nenhum porque a gente já estava viciado naquilo e o serviço tinha que se fazer sem prejudicar o patronato. Nunca falhei aos meus patronatos!”

O contrabando não era só de mercearia. Pelo rio Minho passava também gado. Catarina Oliveira fala-nos que os porcos levavam-se pelo rio. “Há quem conte que também os passavam a nado”. No rio Minho usavam uma batela para fazer a passagem. Quase sempre durante a noite. Havia uma grande conveniência com a Guarda Fiscal, mas havia aqueles que eram mais fiéis ao regime e que não contemplavam a atividade. O contrabandista cerveirense exemplifica: “Cheguei a trazer suínos injetados no barco, de lá para cá. Trouxemos três. Quando vínhamos do barco já estrebuchavam”.

EMIGRAÇÃO

O contrabando de mercadorias também o foi de pessoas. “É engraçado que estas pessoas esquecem-se de muitas coisas, ma não têm dúvidas sobre o dia que marcaram a viagem, o dia que partiram e o dia que chegaram a França”, conta Catarina Oliveira.

Catrelo percorria o Alto Minho como árbitro da Associação de Futebol de Viana do Castelo. Usava-o para ir recrutando pessoas para dar o ‘salto’. “Quando aqui não se podia passar na emigração, arrancava-se com eles nos carros. Telefonávamos para a D. Maria e para os filhos. Ficavam lá numa serração e ia um táxi levar as malas”. Conta-nos que tinha já tudo combinado com os passadores em Espanha e que um dos cafés, próximos da linha do comboio, abrigavam os portugueses até a hora de partir chegar.

Depois do 25 de Abril, o contrabando e a emigração não pararam. “Levei centenas delas. Trabalhava para os outros, ganhava 500 escudos”. Aprendida a arte de passar as pessoas para o outro lado, começou o negócio por conta própria. “Eram 1500 escudos para os por lá na França”. Numa madrugada, pelas cinco da manhã, um táxi parou à porta da sua casa. Ao lado do condutor estava o chefe da polícia de Vila Fria. “Era o senhor Abel”. Catrelo recorda: “Perguntei se havia novidade”. Havia sim, o taxista, Joaquim Vilaça pediu-lhe para levar a filha do senhor Abel para França porque esta ia casar dentro de dois dias. Catrelo teve receio que fosse uma ratoeira e ainda tentou escapulir-se. No entanto, após verificar que o assunto era sério, aceitou fazer o serviço. “Aqui há ratoeira, tive medo! Mas disse que ainda que fosse preso, se ela quisesse ir no dia seguinte, que estivesse na caseta ao dar o meio-dia”. A filha do senhor Abel partiu e nada aconteceu a Catrelo. São muitas as histórias que nos conta e as atuais são sobre as pessoas que regressam e o reconhecem. “Ás vezes, aparecem aqui tantos e tantos que me dizem: “já não me conhece, mas foi você que me levou para a França”.

(continua)

947 c posto gf s gregório.jpg

guarda-fiscal  -  s. gregório