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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

NADA A DECLARAR! I

melgaçodomonteàribeira, 10.08.24

946 b Trancoso em S. Gregorio.JPG

rio trancoso - s. gregório

CONTRABANDO, EMIGRAÇÃO, DESERTIFICAÇÃO. COMO SE VIVE NA FRONTEIRA

DEPOIS DO 25 DE ABRIL?

04/12/2016

Texto: Luís Leite

Foto: Luís Leite & Nuno Sampaio

Apoio: Sofia Moleiro

O contrabando foi o sustento de muitas famílias. Após o 25 de abril e o Acordo de Schengen, a atividade tornou-se obsoleta e a Guarda Fiscal foi suprimida. Percorremos a fronteira em busca de memórias desses tempos. Contrabandistas, guardas-fiscais e passadores eram vizinhos, amigos e até familiares. Hoje, a fronteira está deserta.

 

“Na raia não havia nacionalidade. Este espírito de fronteira era de facto diferente” conta Avelino Fernandes, antigo guarda-fiscal. Hoje, aos 68 anos, sente saudades da confraternização com os colegas de profissão. Mais a sul, entre Caminha e Valença, onde o rio Minho começa a alargar o seu leito em direção à foz, situa-se Vila Nova de Cerveira. “Se não fosse a emigração isto estava tudo muito mal. O que é que faríamos?”, a saga dos contrabandistas que atravessavam o rio Minho é contada por João José Costa Oliveira, mais conhecido como ‘Catrelo’, hoje com 77 anos.

“S. Gregório virou uma localidade fantasma. Havia três ou quatro lojas que vendiam uma barbaridade. Acabou-se o cambio da moeda”, relembra Alfonso Viso, um espanhol apaixonado pela história da região. Em Melgaço, todos dizem conhecer alguém que andou no contrabando, mas poucos são os que têm vontade de falar, quer por receio de represálias antigas, quer por pressões familiares. “Infelizmente, algumas pessoas tem um certo receio de falar porque se sentem reticentes, mas há outros que fazem-no com muito prazer, com muito orgulho”, diz Catarina Oliveira, socióloga e funcionária do museu Espaço Memória e Fronteira.

O Trancoso, um pequeno afluente do rio Minho – que pode ser cruzado a pé – fez desta fronteira uma das mais conhecidas do país. O rio, de curto caudal, também fazia parte da rota do contrabando. Trazer a mercadoria de um lado para o outro era uma arte que poderia ser crime mas que não era pecado. Pão, açúcar, ovos, sabão, café e tecidos eram alguns dos produtos contrabandeados. A fronteira não delimitava a ação de homens e mulheres, adultos e crianças que percorriam a obscuridade para ir buscar ao lado de lá o que fazia cá falta.

Estamos com um pé em Portugal e outro em Espanha na fronteira de S. Gregório, freguesia de Cristóval. Andávamos à procura do marco nº 1, em Cevide, a localidade portuguesa conhecida por ser o lugar mais setentrional de Portugal, quando decidimos dar um salto a Espanha. Nos dias de hoje, quando atravessamos a fronteira para a Galiza não há nenhum guarda para nos pedir o passaporte. Antigamente, para ir comprar alguma coisa ao outro lado – quer porque cá não havia ou porque lá era mais barato -, a adrenalina seria diferente. Parámos no café Frontera, em Ponte Barxas, Padrenda, onde encontramos Alfonso Gómez Viso. O galego conta que anda a promover a localidade de Padrenda e que escreveu um livro sobre a região, ainda à espera de ser editado. Convida-nos a fazer uma visita guiada pela zona da antiga ramboia – o termo galego usado para falar do contrabando nesta zona.

“Eu, com quatro anos, dormia em cima das caixas das bananas”, conta Alfonso Gómez Viso. Com 37 anos, as memórias que tem do contrabando cingem-se aos anos 80, quando o tráfico de mercadorias aparece em grande escala. Gado e bananas são os produtos mais conhecidos, mas também se passavam outras frutas, vacas e porcos de um lado para o outro. Nas aldeias raianas havia uns barracões, as garagens, onde guardavam tudo. Catarina Oliveira conta que “as pessoas que se recordam dessa altura, falam de um contrabando não tanto impactante como o de antigamente”.

Subimos a serra do Laboreiro. Num instante estamos em Espanha e sem dar conta regressamos a Portugal. Parámos na fronteira entre uma aldeia portuguesa e uma galega, Alcobaça e Azureira, separadas pelo rio Trancoso. Para além do tradicional marco fronteiriço nada indica que mudámos de um país para outro, a fronteira não passa de uma linha imaginária entre marcos situados a muitas centenas de metros uns dos outros.

- Para lá fica Portugal, para cá fica Espanha – ouço a voz de uma senhora, vestida de negro. É um sotaque português, vindo de uma senhora toda vestida de preto, com um lenço na cabeça. Eu, do lado português. Ela, do lado espanhol. Dois palmos distanciava-nos.

- Não quer contar uma história do contrabando? –, pergunto.

- Eu não sei nada do contrabando, ainda para mais sou mulher de um guarda. Como é que posso saber? – responde.

A proximidade do comércio espanhol fazia com que a população se deslocasse às terras vizinhas para poupar. “Aqui, o contrabando era de alimentos, televisores, marisco. Era o contrabando de não pagar o imposto. De passar de um lado para o outro sem tirar dividendos disso”, explica Alfonso. Inicialmente, na década de 40, o contrabando começou com o café porque Portugal tinha-o em abundância e era de melhor qualidade. “Também levavam sabão porque as principais fábricas situavam-se no norte. Em compensação, bens alimentares como arroz, açúcar, amêndoa, chocolate, eram mais baratos em Espanha e vinham de Espanha para Portugal”, explica Catarina Oliveira.

“É muito curioso. Aqui dizem que as vacas mudam de cor. Mas o que acontecia é que mudavam de sítio. O vitelo ia para Espanha e a vaca ia para Portugal”, conta Alfonso. É frequente haver terras de cultivo de um mesmo proprietário com metade em Portugal, metade em Espanha. “Era a desculpa perfeita para passar o gado de um lado para o outro. Não era um contrabando mau, era de subsistência. As pessoas têm receio de falar porque não querem assumir que era uma forma de vida que havia”, acrescenta Alfonso.

A ponte é o que marca a zona de contrabando das pessoas desta zona. Uma garagem, outra garagem, mais uma garagem. “A sinalética é típica, quando deixavam uma janela aberta queria dizer que podiam passar. Estava tudo acordado com o guarda”. Hoje em dia, está tudo fechado. Destas garagens saiam e entravam produtos. Um dos locais era a povoação de Cela, onde se construíram enormes garagens nos anos 70 e 80.

Regressamos a Alcobaça, a aldeia onde começa a raia seca. A aldeã conta-nos: “Na Azureira havia ainda aqui três lojas, veja lá, para vender a quem?” Durante as noites, as lojas estavam abertas para se poder conviver, beber cerveja e petiscar. Alfonso continua a nossa visita guiada: “Aqui era mais convivência porque toda a gente conhecia tudo. Agora não há ninguém”. A aldeã remata: “Estavam abertas quando a gente lhes batia à porta”.

(continua)

948 d 57-S. Gregorio - Alfândega.-81.jpg

fronteira em s. gregório