MELGAÇO, HISTÓRIAS DE VIDA III
foz do rio trancoso
OS PATRIMÓNIOS ALIMENTARES NAS ROTAS DO CONTRABANDO
Lídia Aguiar
Através de mais esta história de vida se pode confirmar a distribuição dos patrimónios alimentares desde a fronteira até às grandes cidades. Clarifica-se, também, a colaboração dos guardas fronteiriços e dos problemas que começavam a surgir quando os camiões se afastavam geograficamente das zonas de fronteira para se dirigir nomeadamente à cidade do Porto, apesar de levarem sempre batedores a verificarem se a estrada estava livre. Porém, as autoridades longe da fronteira já não tinham a mesma conivência com estas redes. Contudo, quando se entrou em contacto com um patrão espanhol com uma grande rede montada em Portugal, logo se percebeu que não seria bem assim:
Aqui o contrabando passava tudo pelo Trancoso. O café foi a primeira mercadoria mais importante. Nós depois vendíamos tudo para Ourense. Eu trabalhava muito com o Mareco de Portugal. Tinha todas as noites muitos homens aqui a carrejar para os camiões. Numa só noite carregava uns 20 a 30 mil quilos de café.
Daqui para lá cheguei a mandar amêndoa e muita pescada. Nem imagina os camiões de pescada que eu mandei. Cada camião de 20 mil quilos dela e não ia só um por noite. Era os do Eixo que me compravam.
Aqui só se vivia do contrabando. E os guardas também viviam do mesmo, recolhiam a nota e marchavam, tanto os portugueses como os espanhóis. Aqui não se vivia de outra coisa, era a única indústria que existia. Aqui costumava-se dizer que “todos os porcos gostavam de farinha”.
Agora já morreram quase todos, do lado de cá estou eu e um moço que mora ali adiante. Dos portugueses acho que morreram todos. Espere, acho que ainda é vivo o João da Esquina, mas que foi morar para o Porto.
Henrique Piña – Notaria – Galiza – 18-2-2014
O senhor Henrique sempre viveu em Notaria, Espanha, geograficamente situa-se, também, na margem do rio Trancoso, bem ao lado do Posto de Fronteira de S. Gregório, este, do lado de Portugal. Como se pode verificar as grandes redes sabiam como ultrapassar mesmo longe das fronteiras. Pelas quantidades que são referidas pode-se concluir que tudo era vendido nas grandes cidades, com larga predominância na cidade do Porto.
Quem finalmente nos esclarece sobre esta questão, sem deixar qualquer dúvida como era possível fazer seguir os camiões até ao seu destino é a descrição seguinte:
(…) Também cheguei a andar com o meu carro a abrir caminho aos camiões que iam carregados. Tentava-se ir pelas estradas da serra, mas uma vez mandaram-me parar; viram-me os documentos, abriram-me a mala, o capot do carro, já estava a ferver:
- Querem que eu vire o carro?
Lá me mandaram embora, mal cheguei à frente dei a volta e voltei no sentido contrário, tinha de avisar os camiões. Mandaram-me parar outra vez:
- Então o senhor volta para trás?
- Ora essa, eu vou para onde quero, ou é proibido?
Lá me deixaram ir. Toca de abrir a toda a velocidade para avisar os rapazes que vinham nos camiões. Todos se esconderam como podiam para os montes. Um, coitado, entrou lá num sítio tão apertado que nem podia abrir as portas. Era vê-los a fugir que nem ratos, coitadinhos. Mas o jeep que viera atrás de mim ainda apanhou alguns, mas foi fácil, umas notitas e tudo se resolveu, tinha de ser.
José Avelino Castro – Alvaredo – 10-12-13
A história de vida do senhor Avelino está recheada de memórias do contrabando. Impossível aqui transcrevê-las todas, fica, no entanto, a nota, embora já falecido, deixou o seu testemunho de vida gravado em vídeo e representa na atualidade um instrumento fundamental para a recuperação de rotas do contrabando, muito em particular a rota do café, pelo rio Minho. Foi, ainda, fundamental na ajuda que prestou às mulheres contrabandistas que arriscavam a vender os produtos alimentares. Deslocavam-se a Espanha para os comprar e depois vendiam porta a porta em várias áreas de Melgaço.
Comecei com 29 anos, logo que me casei. Ia eu e mais umas colegas a Espanha, trazíamos umas coisitas que depois andávamos a vender pelas portas. Era muito longe. Era mesmo um contrabando de subsistência. Quando acabava aquela carga lá íamos buscar mais. Outro trabalho não havia, aqui não havia fábricas nem mais nada, além da lavoura que se fazia para o gasto da casa. Trazia então, chocolates, bacalhau, arroz, umas bolachas de baunilha. E era muito fácil vender cá, porque nem toda a gente lá ia, pois que julga, isto era trabalho para pessoas que não tinham medo à vida, aí que levávamos cada corrida dos guardas!
Lá em cima em Alcobaça, já se via bem ao longe e logo os víamos, havia que esconder no meio dos tojos e das giestas e fugir pelos carreiros. Por vezes fazíamos mais quilómetros só para fugir deles, não era nada fácil a vida. Nós não lhe pagávamos, porque o nosso ganho não dava para repartir com eles, como faziam os grandes patrões, para isso o nosso contrabando não dava não. Mas devo dizer que mesmo nos guardas havia pessoas compreensivas e boas. Por vezes alguns mandavam a gente não andar na estrada, para não os comprometer.
Assim este contrabando foi dando para sustentar a casa e criar os filhos.
Emília Domingues – Cousso – 7-1-2014
Emília Domingues representa a emergência da mulher no contrabando. Alheias às grandes redes, iam por conta própria e vendiam a quem lhes encomendava, pois como ela própria afirma, ir a Espanha era na altura para quem tinha coragem. No período de verão, as encomendas aumentavam, fruto dos hóspedes que se alojavam nas termas de Melgaço e ansiavam por chocolate espanhol ou pelas bolachas baunilha, inexistentes em Portugal nessa época. Era pelas lavadeiras de roupa dos hotéis que estas mulheres faziam chegar estes produtos tão ansiados a quem vinha das grandes cidades.
Era lavadeira, lavava a roupa dos hóspedes dos hotéis. Onde eu levava o contrabando era no meio da roupa lavada dos hóspedes. Eu lavava no rio Minho, comprava a mercadoria às contrabandistas e vendia um pouco mais caro aos hóspedes, a diferença era o meu ganho. A minha mãe ia à raia, levava ovos, café. O meu pai fora para Buenos Aires e deixou-a. Também ajudei a cordear café, aqui no rio Minho, para Espanha. Foi assim que ajudei a minha mãe a ir sustentando a casa.
Graças a Deus tive sempre sorte, quer no trabalho de lavadeira quer nos negócios de contrabando. Naquele tempo bem se governava a vida. Era uma alegria.
Maria Martins – Peso – 14-11-2013
Através da história de vida de Maria, contata-se o engenho e a arte das mulheres em fazer chegar os produtos de contrabando aos seus clientes. Todos ficavam a lucrar e encaravam a vida com maior alegria.
Chegados às grandes cidades, nomeadamente no caso do Porto, conseguiu-se uma entrevista que nos explicou o difícil circuito nesta cidade. Áurea, foi morar para a então vila de Valongo, a cerca de 15 km da grande cidade, com os seus padrinhos, em casa alugada, por cima de o que na década de 50 do século XX se designava de “loja”.
Foi aí que conheceu a D. Maria, dona da “loja”, mulher de grande despacho e empreendedora. Para ali se tinha mudado, após o falecimento do marido, tendo ficado a cuidar de três filhos. Abandonou a mercearia da Foz do Douro, na rua Padre Luís Cabral, repleta de bons clientes e foi morar para Valongo, terra de mineiros e de pão.
A necessidade de criar os seus três filhos, obrigou-a a procurar um lugar mais discreto para receber as mercadorias que lhe chegavam dos contrabandistas da fronteira. E recebia de tudo. Bacalhau, bom óleo, passas, arroz, farinha branca. Daqui enviava aos clientes da Foz do Douro, que, entretanto, tinham deixado as encomendas na mercearia da Foz que ficara ao cuidado do seu irmão. Por outro lado, Valongo começava a crescer industrialmente, pelo que aí criou outro ciclo de clientes, nomeadamente padeiros, ansiosos por aceder à farinha branca para cozer o pão de boa qualidade e que grande procura tinha.
Ahh, como ainda me lembro de ir buscar a regueifa bem quentinha!!! Entregavam pela janela e depois era sempre a correr pela rua acima.
Áurea Meireles – Valongo – 22-11-2014
Finalmente consegue-se perceber que as pequenas mercearias eram as grandes distribuidoras dos patrimónios alimentares nas grandes cidades. Porém, como D. Maria faria entrar as mercadorias na cidade a partir de Valongo, continua a ser uma incógnita. Sabe-se que ela poderia usar o comboio, ou uma camionete de carreira. Os meios de transporte chegavam ao centro da cidade do Porto. Mas, no entanto, deve-se relembrar que nesses tempos a cidade tinha postos próprios de cobrança de impostos nas principais entradas da cidade. Daí que nos afigura que alguma artimanha existiria que, com a sua morte, não mais foi possível desvendar.
Através de diversas entrevistas e conversas que se proporcionaram pelo trabalho de campo que se desenvolveu no concelho de Melgaço, sabe-se que um supermercado, na esquina da rua Sá da Bandeira, no Porto, há muito encerrado, era propriedade de um dos grandes patrões do contrabando, que assim constituiu, ele mesmo, a sua rede de distribuição na cidade.
Na realidade esta rede de patrimónios alimentares contribui, para que as populações da raia tivessem acesso a um rendimento suplementar, sendo que em simultâneo, foi a única forma que as populações das cidades, com poder de compra, acedessem aos produtos, sendo que se viveu épocas de grandes carências, em que as importações, fruto da ditadura instalada, estavam muito limitadas.
laguiar@iscet.pt
Revista Turismo & Desenvolvimento
Nº 33
2020
cevide vista da frieira (galiza)