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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

FRAGMENTOS DE VIDAS RAIANAS 24

melgaçodomonteàribeira, 31.12.20

Os diabos dos guardas civis não demonstravam vontade nenhuma em mexer, e isso abespinhava-as. Portanto, àquela hora da tarde, os raios de sol abrasavam as placas esverdeadas da casota onde descansavam. A atmosfera interna, indubitavelmente irrespirável e perspirante, convinha-lhes, pelo visto.

Mas havia dias assim, que eram embirrentos, impedientes. Tinham, provavelmente, adivinhado a intenção das duas mulheres. As urdiduras dos guardas eram-lhes familiares e havia dias que adoravam contrariá-las, aborrecê-las. Era, para os detentores da autoridade, um modo de lhes notificar a hegemonia de que eram senhores e à qual tinham de se arriar.

Para as pessoas como elas que tinham de ir com frequência à outra riba fazer umas lidas, a vista do jipe, em parte, tranquilizava-as. A sua ausência decuplaria a ambiguidade e a desconfiança; os carabineiros podiam aparecer de repente ou, emboscados em qualquer lado, vigiar a ponte e a estação com binóculos.

Languidamente, taramelavam, palratório decerto asséptico, que, em essência, não diferiria dos que tinham diariamente em qualquer outro lugar e situação.

Tiveram de pacientar mais cinco minutos, antes de ouvirem ronronar o motor do potente Land-Rover Santana. Ainda houve uns instantes de suspense acerca do destino dos guardas civis. Tremulavam, ou simulavam. Às vezes, vinham ao café do Manolo dar uma vista de olhos e beber algo, embora não fizesse parte da circunscrição deles. Finalmente, deram meia volta e desapareceram na curva.

A Otília e a Maruja, a mulher do Virgílio, permaneceram amouchadas nos degraus. Com o tempo, descobriram que a impaciência era capaz de originar surpresas amargas. Dali, o troço final da estrada estrangulada que conduzia à estação era claramente visível. Perscrutaram-no demoradamente. Não, os guardas civis não tomaram a direcção da estação, de outro modo já tinham divisado o jipe. Levantaram-se e prepararam-se para atravessar a ponte.

Colaboravam, havia bastante tempo, com o Firmo, o chefe da estação de ferrocarril –caminho de ferro –, personagem poderosa e respeitada pelos aldeões. Alto, fortinho, o passo do homem seguro de si, era a calma personificada. Moinante desconforme, sempre bem disposto, era dotado de um humor fino, inaudito.

Entre dois comboios, abandonava o seu cubículo duas vezes por semana. Ia ao bar do Manolo na companhia do seu amigo Bárcia, um sexagenário tão forte como ele. Ex-membro da Benemérita, havia anos que fora ejectado da instituição por corrupção quando prestava serviço no porto da Corunha. Desde aí, explorava um modesto restaurante em Arbo, sua terra natal, o Casa Bárcia. Sita junto da estação ferroviária, a casa tinha como especialidades angulas al ajillo (meixão) e lampreia do rio Minho. Era o sósia de Clark Gable.

Além da amizade que os associava, deslocava-se igualmente à Frieira por causa dos atributos da carne do Celso.

O Firmo era sempre o primeiro a transpor a porta do bar. Fosse quem fosse que estivesse presente, nasalava acentuada e invariavelmente o mesmo enunciado:

— A ver, põe-nos dois vermutes num pronto e com carinho !

Enquanto bebiam dois ou três cada, entretinham-se soltando meia dúzia de palavras vãs. Pagavam por turno e, quando o Manolo estava presente, como despedida, o Firmo resmungava:

— Cada vez tenho menos ganas de vir beber um aperitivo a este bar. Somos mais mal recebidos do que um cigano, joder!

Eram homens de poucas palavras, que se apreciavam admiravelmente, e que sabiam mais coisas do que na realidade desejariam.

O Firmo residia em Ribadavia. Como chefe de estação, tinha uma situação vantajosa. No entanto, quando se tratava de ganhar umas pesetas suplementares fazendo um jeito aos amigos, ou simplesmente aos amigos dos amigos, aceitava com grande alegria. Certos dias, finalizado o dia de labor, quando subia para o ferrobus das seis da tarde para volver ao lar, carregava uma caixa de papelão de considerável tamanho bem encordoada. O conteúdo não era novidade para os habitantes dos dois lugares.

A Otília e a Maruja, como os antepassados e todas as velhotas das aldeias mais ou menos da mesma idade, tinham um abdómen desenvolvido. Depois dos numerosos partos, não usaram – não fazia parte dos seus costumes – os artifícios das citadinas para o ventre reassumir a planura anterior.

O Firmo teve, pois, a brilhante ideia de fazer dessa especificidade um recurso e de tirar proveito dele, tanto para si como para as mulheres. Por meio delas, o chefe da estação abastecia em café Sical alguns amigos e quase metade dos proprietários dos cafés de Ribadávia, a vila que fora capital da Galiza.

Alternativamente, e mais do que uma vez por dia, a Otília, a Maruja e outras mais convergiam para a estação com dois quilos de café dissimulado no baixo ventre. O Firmo nunca fora molestado pelas autoridades. Esta imunidade era legitimada pela sua posição.

Os guardas civis e as famílias beneficiavam de um desconto de sessenta e cinco por cento no preço dos bilhetes da RENFE, qualquer que fosse o destino em Espanha; o Firmo recompensava-lhes o privilégio acordado com uns bilhetes especiais que os dispensava dos trinta e cinco por cento restantes. A colaboração fazia o bem-estar de todos.

O chefe da estação também ajudava as pessoas que ansiavam visitar os seus parentes dispersados pela Europa, adquirindo-lhes na agência Wasteels de Ribadávia os notórios bilhetes BIGT – bilhete internacional de grupo para trabalhadores.

Criadas por um belga no início dos anos cinquenta, estas agências destinavam-se exclusivamente aos emigrantes e dominavam o mercado dos bilhetes a baixo custo. Graças aos seus preços imbatíveis – menos 30% –, a Wasteels facilitava a centenas de milhares de imigrados pela europa ocidental e central a viagem aos países atinentes. Contudo, para aceder a estes títulos de transporte era indispensável fundamentar o estado de emigrante.

Com o Firmo, a agência era pouco ou nada formalista. Permitia mesmo encarecer ficticiamente de cinco por cento o preço dos bilhetes, suplemento reavido pelo chefe de estação quando entregava o bilhete ao pedidor.  

Este favor que fazia aos parentes dos emigrantes – evitava-lhes a perda de tempo, o sumpto da ida e volta a Ribadávia e concedia-lhes o desconto a que não tinham direito – era-lhe amplamente agradecido.

 

Continua.

 

 

UM GRANDE ABRAÇO A TODOS OS QUE ME VISITAM

E

2021 SEM OS BICHOS