FRAGMENTOS DE VIDAS RAIANAS 12
Já um pouco curvado para diante e arrastando os pés, o septuagenário desceu com cuidado o reduzido declive que havia entre a estrada e o prédio do Manolo.
Foi quando os dois agricultores, esgotados pela espera ilimitada, acharam que, no fim de contas, era melhor concluir a expectativa. Impulsivamente, abandonaram o bar, perseverando, todavia, com o maior alarido, em rejeitar-se a culpa do absentismo do taxista.
Um deles entrechocou-se com o senhor Ângelo, indelicadeza a que foi insensível. Penetrou no café e cumprimentou os presentes com a cortesia costumeira. Abeirou-se do balcão, deu aos ombros, puxou pelas golas e deu dois saltinhos, obviamente.
O Manolo acolheu-o com o entusiasmo usual.
— Senhor Ângelo, então que tal o tempo pela estação?
Não replicou. Com a característica equanimidade que toda a gente lhe reconhecia, exigiu:
— Po... po... põe... mum...mum... mum branco!
— Que diz, senhor Ângelo?
— Po... po... põe... mum...mum... mum branco!
— Quem foi para o campo?
— Na... não... bran... bran... branco! – repetiu, levemente incomodado.
— Que diz, senhor Ângelo? Não o ouço. Fale mais alto, carambas!
Impaciente, suspirou e sacudiu a cabeça com firmeza em sinal de agastamento e de lassidão. Arranjou o capote à pressa esticando as golas, deu os saltinhos e arremeteu de novo.
— Po... po... po... põe mum... mum... muuun bran... bran... branco! – empenhou-se, quezilado.
O gaguejo enfatizara-se com a aflição, e o seu rosto purpurara, tanta fora a instância.
Para reprimir o riso que estava prestes a deflagrar, o Fernando simulou contemplar o regato e o lugar de Cevide, do lado português, observáveis do janelo do fundo do salão do café. Era, também, para dar mais credibilidade à chocarrice.
— Ah! Um branco? – exclamou finalmente o Manolo – Já podia ter dito há mais tempo, senhor Ângelo! – e deu um dos seus singulares risos – Eu pensei que me dizia que andava manco, já viu? Ai meu Deus!
Agarrou na caneca e baixou-se diante do pipote de vinho branco que confinava com o de tinto.
Foi a altura apropriada para o padeiro delivrar a forte pressão que o sufocava e dar azo à pândega. Era a primeira vez que participava a uma brincadeira implicando o senhor Ângelo. Intrometeu-se amavelmente na conversa.
— Este, senhor Ângelo, já perdeu o juízo e agora está a ficar mouco. Mete pena! É tão novo! Há quem diga que foi por isso que o correram da França. Não me estranharia nada.
O homem ignorou as suas palavras, como se fosse pusilânime. Nem um célere olhar de solicitude se dignou conceder ao panificador. Ergueu um braço e buliu duas vezes a mão entreaberta diante da testa, como quem quer dissuadir um insecto desenvolto e importuno. Era a sua modalidade. Desta forma, mostrava implicitamente – a quem tinha faculdade para tal – que interpretara o chiste, que este não o estimulava nada e, sobretudo, que não era nenhum títere.
Para coroar o painel, e sem piar, acomodou o capote, desfraldou-lhe as lapelas e deu os saltinhos compatíveis.
No olhar irónico do dono do café reluzia um afecto real. Meneando a caneca como se fosse um ioiô, a fim de fazer espumar o líquido, encheu a tigela que pousara diante dele. Estava tão acostumado que, uma vez a tigela cheia, não ficava praticamente nada da quantidade de vinho retirada do pipote.
Deglutiu a primeira tigela de uma golada e a segunda de duas. Despejou o recheio do porta-moedas – que abria em forma de vulva – sobre o balcão, destacou umas quantas moedas e saiu, silencioso, como se não tivesse estado no bar. Viria umas quatro vezes mais durante o dia.
O Fernado sentiu-se embasbacado. Intimamente, admitiu que o homem tinha a sua personalidade. Não era sem razão que todos o tratavam por senhor.
— Já viste, Fernando? Esta gente põe-me louco! – bradou o Manolo.
O Manco era seguramente a pessoa mais conhecida da Frieira, indubitavelmente a mais temida e, incontestavelmente, a mais amaldiçoada. Hercúleo e titânico – mais de um metro e oitenta e cinco e uns bons cento e dez quilos –, tinha uma força assombrosa e, ademais, um temperamento de suíno.
Ninguém sabia a razão por que tinha o cognome de manco pois, na realide, era maneta. Segundo rumores, o drama dera-se uma tarde, no centro da cidade de Orense, havia bastantes anos. O que ainda não era Manco estava na esquina de duas ruas à espera de uma oportunidade para atravessar com confiança. Subitamente, um velho camião atulhado de canos de cerâmica para o saneamento, vindo de uma transversal, largou parte da carga diante dele e doutros. Acordou no hospital. Os estragos foram plurais, mas o dano irreversível deu-se no braço esquerdo, triturado pelos tubos maciços. Do úmero, os médicos apenas foram susceptíveis de lhe preservar um toco com cerca de uma dezena de centímetros.
Desgraça que, pouco mais tarde, o não impossibilitava de manipular uma enxada ou uma pá e de trabalhar, ocasionalmente, como qualquer indivíduo consumado.
O traumatismo engendrado pela deficiência fora o inodoro fermento que fizera com que, passo a passo, medrasse nele um carácter irascível e provocador que, por vezes, alcançava proporções excessivas e preocupantes. A mínima adversidade era vista por ele como um opróbrio, uma vexação e mesmo como um insulto.
As pessoas, com os seus aforismos e as suas paródias ásperas, justificavam a sua força excepcional afirmando que a do braço perdido fora herdada pelo outro. O caso é que onde deitasse a mão nem Cristo lha abria, diziam.
Fumava como as primeiras locomotivas e bebia vinho branco como um tudesco. Quando estava de mala hóstia – mal disposto –, coisa mais amiudada do que o contrário, era mais idóneo evitá-lo ou abordá-lo apenas se o caso fosse francamente imperioso.
Continua.