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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

CASTELO DE MELGAÇO POR CARLOS A. BROCHADO DE ALMEIDA III

melgaçodomonteàribeira, 24.07.21

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(continuação)

De acordo com a documentação disponível há três momentos em que se fala da cerca e das obras que nela se faziam. Em 1205 o documento é taxativo quanto ao facto de já haver um muro e uma porta. Como a obra era demorada, digamos que terá começado nos primeiros anos de reinado de D. Sancho I, provavelmente após a sua passagem pela terra, facto que nos é relatado pela Inquirição de 1258 “veo Rey don Sancio Iº a Melgazo, et filou Sancta Maria da Orada porá si, et deu a Feaes por ela Figueiredo et C. maravedis”. A ser válida esta hipótese, como pensamos que o seja, então a primeira fase da construção do muro da vila ocorreu praticamente em simultâneo com o levantamento da torre de menagem e logo após a conclusão dos torreões que defendiam a cerca do castelo. Estes estão adossados à muralha e a dois deles encostam, por sua vez, os arranques do muro da vila.

O segundo momento está expresso no pacto, que em 1245 foi celebrado entre o abade João de Fiães, os juízes João Pires de Caveiras e Miguel Fernandes, mais o concelho de Melgaço, isto é, as autoridades máximas que superintendiam no burgo. No texto do acordo – “ut abbas et Conventus cum hominibus suis quibus in presenti et de certero in hereditate ipsius monasterii in canto villeniostre fuerint faciant decem et octo brazas de muro in illa parte nostre ville ubi modo est apoteca sua secundum naturam et formam quam nos fecimus et fecerimus in circuitu ipsius ville per totum. Et si murum quod fecerint ceciderit semper teneatur monasterium ipsium reparare in propriis expensis, sed si forte habitatores eius dem villa in propriis expensis murum fecerint lapidibus quadratis in circuitu per totum et turres in turrem quam iam dictus abbas instanti incipiendam promittit – há, como aliás já foi notado, diversos pontos a reter e a saber: o muro da vila foi feito por três entidades distintas: o concelho, o convento de Fiães e o rei.

Quem começou a defender o burgo foi o concelho, isto é, as autoridades que na altura ali exerciam jurisdição. O Convento de Fiães continuou a expensas suas a dita obra, porque tal empresa também os favorecia. Ali, no couto e na própria vila tinham propriedades – metade da igreja de Santa Maria da Porta e uma adega – e não era nada salutar às suas finanças que, em caso de novo ataque, houvesse devastação nas suas propriedades. É evidente que o concelho concedeu ao mosteiro e aos homens das suas herdades algumas isenções, mas a necessidade de começar a obra rapidamente – “instanti incipiendam promittit” – era bem demonstrativa da real necessidade que havia em completar-se o circuito defensivo do burgo. Onde não havia ainda o muro, a defesa assentava na natureza do próprio terreno, completada por obras menores que poderiam incluir uma estacaria de madeira, terra e mesmo pedra miúda, longe da solidez de uma verdadeira muralha em pedra como aquela que estava em construção.

O segundo aspecto a reter relaciona-se com a dimensão dos trabalhos acordados entre o mosteiro e os homens do concelho. Segundo o acordo, o abade João comprometia-se a realizar dois tipos de trabalhos distintos: construção e reparação. A construção incluía nada mais que dezoito barças de muro, algo que traduzido para as medidas actuais, equivale a 32,91m. A reparação, essa far-se-ia sempre que a parte construída pelo mosteiro caísse – não especifica se por causas naturais ou se devido à guerra – e sempre a expensas dos frades. O terceiro item respigado deste acordo é de longe o que mais dúvidas suscita. O texto informa que se os moradores da vila fizerem o muro e as torres de pedra quadradas, de iguam modo o terá de fazer o mosteiro no troço que lhes estava atribuído, tal como a torre que o dito abade prometia começar imediatamente.

Várias são as leituras que se podem inferir desta passagem.

A primeira é que o concelho construiu a parte inicial do muro com pedras não quadradas, isto é, em alvenaria, mas aventava a hipótese de o poder vir a fazer. É esta a opinião de Bernardo Pintor, mas não a nossa, porque tendo presente os restos arqueológicos que ainda subsistem junro à torre do castelo acreditamos, que desde o início a muralha foi integralmente feita em silhares de cantaria, num aparelho pseudo-isódomo, muito semelhante, se não mesmo igual, aquele que ainda subsiste entre a Porta de Baixo e a torre próxima ao antigo edifìcio da Guarda Fiscal. O que muito provavelmente os homens do concelho quiseram dizer ao mosteiro, foi que a construção e reparação do muro teria de obedecer ao modelo escolhido pelas autoridades do burgo, já que elas eram as responsáveis pela sua defesa desde  a altura em que o rei D. Sancho II transferiu para a sua responsabilidade tal encargo. A contrapartida era a obrigação de indicar um cavaleiro fidalgo, natural do reino, de boa reputação, para ser investido como alcaide.

A segunda é que o abade de Fiães tinha também de erguer uma torre. Mas qual? Como no muro da vila não parece que as tenha tido – a defesa fazia-se com balcões assentes em matacães – só resta a possibilidade de estarem a referir-se a uma das três da cerca do castelo. Provavelmente à torre próxima ao quartel da Guarda Fiscal que mostra ter um aparelho em tudo semelhante à do muro que se lhe adossa.

A terceira observação relaciona-se com a torre que o abade prometia iniciar de imediato. O texto diz que prometia começar, não que havia começado. Mas se realmente anunciou a construção de uma torre na cerca da vila, esta só pode ser uma que estaria voltada a Sul, à Alameda de Inês Negra e que numa gravura de 1758 aparece representada com o traço interno interrompido. A confirmar-se esta nossa observação, então ficávamos a saber que a parte do muro da vila erguida pelo mosteiro de Fiães foi o troço meridional, aquele que na actualidade está voltado à praça Hermenegildo Solheiro e à Alameda de Inês Negra.

De acordo com este raciocínio a primeira fase corresponde ao troço compreendido entre a torre do castelo voltada à Praça da República e a Praça Hermenegildo Solheiro, a segunda ao troço meridional, incluindo a terceira, todo o pano oriental e o setentrional, espaço que incluía a Porta de Baixo aquela em que está a inscrição datada de 1263.

A terceira fase da construção do muro da vila corresponde ao troço ocidental, aquele que inclui a Porta de Baixo e todo o pano que se estende até à torre B do castelo. Foi da responsabilidade do rei, tal como o aventa a inscrição comemorativa colocada junto à Porta de Baixo.

A epígrafe que se distribui por três silhares graníticos, metidos na parte exterior da muralha, do lado direito da porta que, pelo lado oriental, dá acesso à Rua Direita tem a opinião de Mário Barroca a seguinte leitura: IN TEMPORE: REGIS : ALFONSI : / : PORTUGALIE : MAGISTER : FERNANDUS : COM/POSUIT : MURUM : ISTUN : ERA : Mã : CCCãã :

MARTINUS : GO(n)CALVIZ : CASTELARIUS : / : DomiNI : REGIS : CIRCUNDAVIT : HANC : VILLAN : / IN (h)AC : PARTE

No ano de 1263 reinava em Portugal o rei D. Afonso III, irmão de D. Sancho II que se viu obrigado a abdicar no ano de 1245 por imposição do clero português que obteve a simpatia actuante do Papa. Foi política deste monarca mandar elaborar as Inquirições Régias de 1258 e no caso específico de Melgaço concedeu-lhe um novo foral, mas os moradores, vendo agravadas as suas contribuições, reclamaram e foi-lhes restaurado o anterior que vinha do tempo de D. Afonso Henriques. No tocante à inscrição está por demais claro que o rei ordenara a conclusão da obra à custa do erário régio. Era castelão ou alcaide do burgo Martinho Gonçalves. O construtor ou empreiteiro (mestre) foi um homem de nome Fernando.

Tal como os castelos também as cercas românicas eram de pequena dimensão e de formato sub-circular. As suas aberturas eram mínimas, como convinha a uma defesa passiva, reforçada pela espessura dos muros e dos terreões adossados, quando os havia. Não é o caso de Melgaço, onde estes foram substituídos por balcões assentes em matacães, tendo cada um deles – nos que subsistiram – quatro aberturas cada.

A proibição de construir-se junto dos muros da vila é algo que pertencia aos tratados militares de então. Afonso X recomendava que casas e outros tipos de construção fossem erguidos a uma distância de 4,5m da face interna dos muros das cercas dos burgos e castelos. A autorização só era concedida na condição de, em tempo de guerra, tais construções serem demolidas.

Exemplos de casas encostadas à face interna do muro da vila não faltam em Barcelos, Viana do Castelo, Monção ou Ponte de Lima. Por seu lado Melgaço não fugiu à regra. As casas encostaram, sempre que puderam, mas há sítios onde isso não aconteceu. O melhor exemplo do respeito pela distância entre o muro e as casas de habitação está ainda hoje patente na Travessa da muralha, junto da Porta de Baixo e num outro espaço, junto da Porta da Rua do Carvalho, que só em tempo recente é que foi tapado pelo acrescento da casa que foi Quartel da Guarda-Fiscal na vila de Melgaço.

 

PORTUGALIA

Nova Série, Vol. XXIV, 2003

 

A “COURAÇA NOVA” DA VILA DE MELGAÇO

RESULTADO DE UMA INTERVENÇÃO ARQUEOLÓGICA NA PRAÇA DA REPÚBLICA

 

Carlos A. Brochado de Almeida