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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

AO NELO, IN MEMORIAN I

melgaçodomonteàribeira, 03.10.20

161 - lançamento livro olinda carvalho - e agora,

 lançamento do livro de olinda de carvalho - e agora, luisa

A SALTO

Ao Nelo, in memoriam

 

Desde que se meteu ao caminho, naquela noite escura e fria de um outono invernoso, a sua vida tomaria um rumo que faria dele um homem diferente. Os seus companheiros tornar-se-iam irmãos, as vicissitudes por que passaram aproximaram-nos como se tivessem nascido do mesmo ventre, foi como se os filhos de sua mãe passassem de quatro para oito. A salto para França, em mil novecentos e sessenta e seis. Para fugir a uma servidão que podia mais do que a entrega sem restrições de alguns anos de vida, era um risco para a vida. Quando o edital com os nomes dos mancebos para ir à inspeção aparecia afixado na porta da igreja, era o momento de dar o salto. A decisão de deixar a terra e se recusar a cumprir o serviço militar nem foi sua, mas aceitou-a como natural, era comum à esmagadora maioria dos rapazes em idade de servir o país. Portugal do Minho a Timor era fácil de decorar mas difícil de entender por crianças que viviam livres, arriscar a vida por essa Pátria abstrata não estava no seu horizonte. Os que não conseguiam fugir a esse destino por meios legais, que os havia, arriscavam a fuga numa viagem clandestina que, muitas vezes, raiava os limites da sobrevivência. Pelo menos, esta foi a perceção que o Nelo passava, sempre que o assunto vinha à baila.

A despedida foi cheia de muitas lágrimas, muitas recomendações, muitas saudades antecipadas, que seria da sua mãe com mais um filho de abalada, sem mais dois braços fortes para a aliviar? Parecia ao Nelo que mais do que a partida da sua pessoa, era a falta do que ele deixaria de fazer que a mãe lamentava. E não se atrevia a deixar que uma lágrima sequer se soltasse, seria a nascente de um rio caudaloso que era preciso conter, um homem não chora.

Estava escuro como breu, mas não tanto como o seu coração, quando os companheiros passaram a busca-lo e só a fraca luz das lanternas os impedia de andar ao pontapé às pedras, de mergulhar o pé numa das inúmeras poças que havia pelo caminho. O percurso da primeira etapa era bem conhecido, estavam todos habituados a calcorreá-lo nas viagens de contrabando useiras para um e outro lado da fronteira. Não temiam os carabineiros nem a guarda-fiscal, a carga era leve e o tempo frio convidava os homens da lei a ficar no remanso do lar. O passador largou-os à entrada do lugar combinado, outro tomou a sua vez, galego este.

Até à noite do segundo dia foi sempre a andar, já não aguentavam os pés, o Zé da Eira tinha os seus cheios de bolhas, partira com umas botas novas, para aguentar bem o caminho, viravam-se os calcantes contra ele. O primeiro revés deu-se aí: a comida seria por conta deles. Não sabendo onde se aviar e não querendo expor-se para não se denunciarem, aceitaram o que Paco lhes arranjou pelo dinheiro que quis. Dormiram que nem anjinhos até meio da noite, era tempo de “toca a marchar”, até ao povoado onde iam apanhar o comboio eram muitas horas. Ainda o dia não clareava, o Paco a incitá-los a avançar, como se estivesse conduzindo gado, foram surpreendidos por três indivíduos da cara tapada. Queriam o dinheiro. Depressa. Que esperavam? Era um assalto, não queriam ferir ninguém, só os pesos e os francos. O Nelo foi agarrado por um braço, uma garra a convidar à obediência, resistir seria pior. O guia ficou mudo e quedo, não pertencia àquele filme, foi o primeiro a entregar a carteira. Só o Alberto resistiu, levou um murro no nariz, ficou a sangrar e viu os bolsos serem-lhe virados do avesso.

A voz segura do galego fê-los tomar consciência do que se passara, tinham de se apressar, o comboio não esperava. Não tinham sido alertados para possíveis assaltos, como fariam para prosseguir sem dinheiro? Tinha de fazer algo, o trato era conduzi-los a salvo até ao caminho de ferro, entrega-los ao outro passador, já se tinham sentido ludibriados com a comida, agora era o dinheiro, afinal para que é que servia? Eram jovens inexperientes, não eram parvos, queriam comida e era para já, senão… Senão o quê? Ele também perdera o seu dinheiro, estavam todos no mesmo barco, tinham de deixar aquele caminho. Seguiram com esforço, a barriga a dar horas, o farnel preparado pelas mães forneceu as últimas côdeas, nada capaz de matar a fome. À entrada do casario onde o passador resolveu parar para arranjar comida entregaram o corpo ao descanso, encostados a grossos troncos de castanheiros debaixo dos quais se puseram a apanhar castanhas. Eram grandes e boas, mas não aquilo por que a barriga ansiava. Pelo sim, pelo não, algumas foram parar às sacolas, ao fundo dos bolsos. Umas cabras pastavam perto e um teve a ideia de as mungir. Estava habituado a fazê-lo no monte, sempre que o farnel se mostrava insuficiente ou para presentear a tia Isalina com leite para umas sopas. Era com esta estratégia que a velha lhe guardava o gado e ele ia ver a Berta. Não o fez, porque o Paco voltou com pão, chouriço e latas de sardinhas.

 

(continua)