Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

AO NELO, IN MEMORIAM III

melgaçodomonteàribeira, 31.10.20

165 - ob_17b383_1106-22a-bidonville-portugais.jpg

Chegaram a França de noite, seguindo a linha de comboio de longe, por sorte ainda tinham as lanternas. Pararam debaixo de um viaduto para passarem a noite, aconchegaram-se uns nos outros. Antes de adormecerem, a conversa girou entre as saudades de casa, maldições aos passadores gatunos, a bela panela de sopa com que o senhor Xosé lhes aquecera o corpo e a alma antes de correr com eles, o que fazer nos dias seguintes, como chegar a Paris. Já era dia alto quando se fizeram ao caminho, esperando encontrar indicações na estrada, uma venda para comprar pão. O mais afoito era o Alberto e foi ele que se aventurou a ir às compras. Voltou com uma peça para cada um, era a ração do dia. Caminhavam depressa, sempre em direção a Bordeaux. Estavam exaustos e deram com uma estação de comboio. Tentavam apanhá-lo? Era um risco, mas se tivessem sorte… valia a pena esperar pela noite e entretanto dois deles podiam ir ver se arranjavam comida. O Zé e o Nelo ofereceram-se. Fartaram-se de andar e não lhes ocorria nenhuma ideia. Sentaram-se à entrada de um portão, desanimados, passado pouco tempo surgiu um homem e um cão, que começou a rosnar-lhes. Não entendiam o que o homem lhes dizia, mas entenderam que deviam sair dali. O Nelo falou com o cão, os animais eram todos seus amigos, aquele começou a ladrar-lhe, parecia que os estava a expulsar. E eles obedeceram. Pararam num estaminé, vários camiões à porta. Entraram e vinte olhos em cima deles. Entender o que lhes diziam, nem patavina. Queriam comer e disseram com gestos o que a língua não conseguia, apontando para as sandes que estavam à vista, pediram cinco, os dedos de uma mão. As pesetas que puseram em cima do balcão não pareciam interessar ao dono do café, acabando por retirar as que quis, os rapazes não controlavam nada. A cena continuou, cada vez mais insólita, com um homenzarrão a dirigir-se-lhes, só entendiam Paris, saiu com eles, mostrou-lhes um camião, Paris, Paris e mais nada. Largaram-no e desataram a fugir, de volta para os companheiros. O Nelo e o Zé atropelavam-se a contar o episódio, se calhar estava a oferecer-se para os levar, intuía o Alberto. Voltaram ao café, o camião tinha partido.

Andaram nestas andanças por mais uns dias, a dormir onde calhava, alimentados a pão e água e umas maças que tinham ficado como refugo nas árvores, a fugir de cães que lhes ladravam como se fossem salteadores, a ver portas que se lhes fechavam na cara. Pareciam maltrapilhos quando se abeiraram da grande cidade. Para se protegerem da chuva que os trespassava até aos ossos escolheram um abrigo de autocarros e aí se deixaram ficar, famintos, sem dinheiro, sujos e rotos, metiam nojo aos cães, na expressão do Nelo. Foi aí que até a comida que a mãe dava aos porcos lhe acudiu à ideia para matar a fome. Já nem falavam uns com os outros, todo o diálogo era interior, solitário, repleto de saudades e lágrimas escondidas, todos se sentiam no maior desamparo, nenhum queria ser o primeiro a dar parte de fraco.

Durante a noite, o Tono começou a tossir sem parar, a dizer coisas estranhas. O Berto pôs-lhe a mão na testa, ardia em febre. Tremia como varas verdes, doía-lhe muito o peito, tinha dificuldade em respirar. Tinham de fazer algo. Até ali, tinham procurado afastar-se da polícia, mas, no estado a que tinham chegado, mais pobres do que os pobres que andavam a pedir de porta em porta na terra deles, com o Tono incapaz de se mexer, a delirar, parecia que tinha gatos no peito, deviam entregar-se, que fosse o que Deus quisesse.

Na esquadra da polícia, tomaram banho, vestiram roupas lavadas, comeram até querer. Menos o Tono, que levaram de imediato para o hospital. Pareciam animais assustados, encolhidos, encostados uns aos outros, buscando algum conforto na proximidade física. Chegou um intérprete, explicaram que iam ter com familiares a Paris, tinham sido roubados, o Nelo desatou a chorar, incapaz de continuar. Tomaram-lhe o papel quase desfeito da mão, iam verificar, não se preocupassem, nada de mal lhes iria acontecer. Levaram-nos para uma camarata, deram-lhes cama para descansar, quando acordassem veriam tudo menos negro.

O tio Jaime confirmou que esperava os rapazes, partiria para Bordeaux tomar conta do caso na mesma tarde. No dia seguinte, apresentou-se na esquadra, identificou o sobrinho e os outros, responsabilizava-se por todos, pelo que estava no hospital também. Antes de partir, foram visitá-lo, o tio Jaime e o companheiro deram a morada, o nome do chefe, a empresa onde trabalhavam, quando o rapaz estivesse bem da pneumonia iriam busca-lo.

Três semanas de pesadelo, praticamente desde que saíram de casa até ao encontro com o tio Jaime, numa esquadra de polícia às portas de Bordeus, foi quanto durou a viagem dos jovens para a terra da promissão. Ainda não tinham entrado na idade adulta e já tinham provado até ao âmago a fome, o frio, o medo, a desconfiança. Ficavam vacinados contra a maldade dos homens, mas ganharam confiança na polícia e na bondade das instituições do país que os acolhia para lhes proporcionar uma vida melhor.

 

                                                                        Olinda Carvalho

 

Publicado em A Voz de Melgaço

1 de Novembro de 2014