AMORES EM TEMPO DE GUERRA 3
delfina e o filho de eudosia, paul féron
Sem possibilidade de apresentar números exatos, todos dizem que por Castro passaram centenas de refugiados. “Algo que foi possível porque a raia seca é muito fácil de ultrapassar”, prossegue Américo Rodrigues. “Nos primeiros tempos da guerra, os polícias portugueses nem sabiam bem o que fazer. É que os que fugiam eram inocentes. Vinham para não ter de morrer a combater.”
Nesse espírito de solidariedade, revela o investigador, muitos castrejos foram presos por acolher refugiados. “Se o conflito fosse do lado de lá, nós também seríamos ajudados por eles”, defende, argumentando que as redes de amizades dos negócios clandestinos foram uma alavanca para os que fugiam. “O contrabando aqui era uma forma de se ganhar a vida e de sobrevivência.” Contrabandeava-se azeite, café e bens de primeira necessidade, “não era droga”, remata Américo.
NOVE ANOS SEM VER O PAI
Matavam-nos a tiro. Mataram tantos, que ela bem ouviu. Ela e muitos dos antigos de Castro Laboreiro. Por vezes, à noite, as balas que furavam os corpos ecoavam no silêncio. Ainda hoje o fazem, mas só na memória dos poucos que sobram daquele tempo. “Matavam-nos pelos montes fora.” Aos “rojos”, os que não alinhavam no regime fascista de Franco. “Ainda lhes posso mostrar por onde fugiam”, diz, apontando para as montanhas que a rodeiam.
Lucinda Alves tem o sobrenome da mãe portuguesa, mas tem sangue espanhol a correr-lhe nas veias e nas palavras. “Já a minha avó me dizia que esta aldeia foi montada por refugiados”. Vestida de negro, abre os braços ao vento, ali no alto, ao lado do cemitério, depois de ter mostrado a campa dos pais, um refugiado da Guerra Civil e uma lavradora castreja.
“Sou filha da guerra. Não fosse ela, eu não estaria aqui.” Sendo que esse “aqui” é um lugar chamado Além, algures no Ribeiro de Cima, em Castro Laboreiro. Uma das terras que durante o conflito da vizinha Espanha mais terá acolhido refugiados.
A guerra, garante, está marcada no coração das pessoas. “Deus nos livre dela. Eu nem gosto de falar sobre isso. Mas deixem-me contar esta que, para mim, é a história mais importante.” Bate com a mão no peito e pede novamente. Na verdade, não pede – suplica, já com o choro a embargar-lhe a voz. Tinha ela uns sete anos quando ouviu a avó gritar o nome dos dois filhos. “Ai meu Jaime, ai meu Manel!” Um chamamento desesperado que ainda parece ouvir aos 78 anos. “Deixem-me contar, que eu era canalha, mas ainda tenho isto aqui ‘atrancado’ no peito. Choro porque me lembro. Eu que sou mãe de três só posso imaginar o que ela sofreu. Já as tenho tido boas, mas nenhuma foi como aquela por que passou a minha avó, que não sabia dos filhos fugidos.”
Quando a guerra estalou em Espanha, Manuel Vasquez, pai de Lucinda, escapou para o Além, que fica depois de Rio de Ossos e antes de Terços. Manuel era de Entrimo, um município raiano da província de Ourense. E era contra Franco. “Se o apanhavam matavam-no.” Então fugiu para Portugal e o irmão Jaime para França. Manuel escondia-se onde podia, nas casas dos amigos portugueses. E corria para os montes quando recebia avisos de que as autoridades portuguesas andavam à caça de fugitivos espanhóis.
Entretanto, ele arranjou namoro com a minha mãe, uma mulher divorciada. Não sei como aconteceu porque não havia grandes explicações”, aponta Lucinda. O certo é que Ermezinda, que Lucinda descreve como “um pedaço de uma mulher”, andava “às escondidas” porque o “Manuel não podia estar em sítio fixo, não fossem os fiscais andarem por aí à procura de refugiados.” Mesmo que a maioria do povo os encobrisse, “porque a gente era humana”, todo o cuidado era pouco. Até porque entre eles havia bufos. Poucos, mas existiam.
Ermezinda e Manuel tiveram duas meninas. O irmão de Lucinda, a mais nova, morreu há pouco mais de um ano. De todo o modo, é ela que se lembra de “mais cousas”. Quando o pai emigrou para França ela tinha sete anos; a necessidade levou a que entrasse clandestino em França, onde a grande procura de mão-de-obra na construção civil proporcionava um salário fixo. Eram 850 escudos por mês, enviado pelo correio.
Lucinda foi quem “deu fôlego” à mãe até o pai regressar, tinha ela 16 anos e estava prestes a casar. No regresso, Manuel foi apanhado e ainda passou uns meses na cadeia de Ourense, até que a madrinha, com contactos, o conseguiu tirar de lá. “O meu pai tinha de tudo. A minha mãe gostava dele, embora ele por vezes bebesse uma pinguinha a mais. Se calhar pelos passados que teve, porque não foi fácil.”
Manuel morreu em 2002, a mãe em 2005. “Tenho aí um bocadinho de terreno. Uma horta que ando a trabalhar. Eu nem sou muito de falar. Mas não hay dia nem noite que esqueça o meu passado. Está todo aqui”, aponta para a cabeça. E, devagarinho, pousa a mão sobre o peito.
JN – NOTÍCIAS MAGAZINE
Texto de Filomena Abreu
Fotos de Artur Machado/Global Imagens
19/9/2018