Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

A MISERICÓRDIA DE MELGAÇO

melgaçodomonteàribeira, 20.01.24

909 b igreja misericordia vila.bmp

MISERICÓRDIA DE MELGAÇO

Esta Santa Casa estava em funcionamento já na primeira metade do século XVI. Inicialmente governou-se pelo compromisso da Misericórdia de Lisboa de 1516 e adoptou posteriormente o de 1618. A vila de Melgaço integrava o senhorio da Casa de Bragança, estando, portanto, sob a sua jurisdição. Em 1531 a Santa Casa estava já em actividade e, nesse mesmo ano, recebeu de D. João III o consentimento para integrar a gafaria de S. Gião, situada extra-muros. O pedido tinha partido dos mesários da Santa Casa, que afirmaram que «avya muitos anos que hy não avya» nenhum lázaro e «tinha o ditto espritall certas propriedades que rendiam entre em cada humm ano juntamente setecentos e trinta e dous réis». Acrescentavam ainda que as mesmas propriedades andavam mal aproveitadas e sem administradores.  Após consulta do provedor de resíduos, hospitais e capelas da comarca de Viana, a quem D. João III ordenou que se munisse de informação completa, o monarca concordou com o pedido dos irmãos. Declarou, contudo, que os confrades cumprissem os legados da responsabilidade do referido hospital e das suas rendas reconstruíssem a sua igreja, para se celebrassem as missas a que este estava obrigado. O remanescente seria empregue em obras de misericórdia. Embora, a incorporação fosse autorizada pelo monarca, um alvará de 1562, para que o referido hospital fosse anexado à Misericórdia, prova que o mesmo não foi incorporado em 1531. Apesar das preocupações expressas por D. João III, o hospital de S. Gião foi desmantelado e, em 1790, apenas existia uma pequena capela, dedicada ao santo padroeiro. A incorporação desta gafaria na Misericórdia significou o ingresso de novas receitas, possibilitando-lhe um crescimento sustentado. Em final do século XVI, a Santa Casa demonstrava já capacidade económica e dinamismo para empreender obras de vulto na sua igreja. Os confrades contaram com as esmolas de um número alargado de fiéis, com as receitas do peditório que realizavam pelas freguesias, com os proventos das multas aplicadas pelos oficiais camarários e com as receitas do peditório das feiras. Existia em Melgaço uma feira mensal onde ocorria muita gente proveniente de todo o Minho e também da Galiza. Os mesários distribuídos aos pares, iam à feira pedir para a Santa Casa. Esta estratégia prevaleceu ao longo de toda a Idade Moderna, dando conta do significado e importância que tinha a confraria. Para a construção da igreja, os irmãos contaram também com a ajuda enviada pelo duque de Bragança, D. Teodósio II. O duque mandou a quantia de oito mil réis, em 1590, provavelmente respondendo a um pedido da irmandade. Apesar de se conhecer hoje melhor a interferência dos duques nas instituições de assistência do seu senhorio, e de já se ter estabelecido a relação entre proximidade do Paço Ducal e intervenção dos duques, falta ainda avaliar o seu desempenho, enquanto promotores de práticas de caridade nas misericórdias mais longínquas de Vila Viçosa. Em 1597, foi a vez de D. Filipe I enviar 10 000 réis à Santa Casa. Ao longo dos séculos XVII e XVIII, a confraria foi confrontada com novos desafios. A guerra da Restauração levou-a a prestar cuidados de saúde aos soldados. A Santa Casa comprometeu-se a trata-los nos quartéis, uma vez que não dispunha de hospital. Desenvolveu também várias solenidades religiosas: as festividades da Quaresma e a festa de Santa Isabel. Durante a Quaresma, a instituição efectuava vários desfiles processionais: o de domingo de Passos e os de quinta e sexta-feira santa.  No domingo de Passos, depois do sermão, os irmãos organizavam uma procissão, onde se integravam figuras religiosas, cheias com colmo, que se instalavam ao longo do itinerário, e distribuíam-se doces pelos «anjos» e pelos sacerdotes. Para a sua realização, a irmandade efectuava um peditório prévio. Os irmãos iam pelas freguesias pedir, cabendo-lhes apenas efectuar o registo da dádiva de cada um. O transporte das ofertas era realizado pelos mamposteiros, que se encarregavam de as fazer chegar à Santa Casa. Para além da «armação dos Passos», ou seja, de efectuar o calvário e todo o cenário em que se desenrolavam as cenas religiosas, era preciso ornamentar os andores. O andor do Senhor dos Passos era transportado por «coatro mancebos» e o pendão dos Martírios deveria ser carregado por «hum mancebo robusto», dado o seu peso. Em 1645, foi determinado pela Mesa que os andores se encomendassem «aos donos das posturas das cruzes (e) que os ornem com muita decência». Na semana santa, a procissão de quinta-feira era a mais grandiosa. O desfile saía às oito horas da tarde e regressava pela noite dentro. Era composto apenas por homens. Uma directiva do arcebispo bracarense D. Rodrigo de Moura Teles interditou a participação das mulheres nestas manifestações nocturnas. Saía da igreja da Santa Casa, dirigia-se à capela de Santo António, daí para a capela de S. Gião, desta para a igreja de Nossa Senhora da Orada e depois para a igreja Matriz, para recolher novamente na igreja da Misericórdia. Era uma ocasião importante, que obrigava a Casa a grandes esmeros. Preparavam-se as bandeiras, os andores, as alfaias religiosas, efectuavam-se compras e cuidavam-se das imagens, dos caminhos e da igreja. Nos templos por onde passava o desfile, a confraria colocava irmãos a pedir. Ao longo de toda a procissão existia outro confrade encarregue de rogar esmolas aos que assistiam. O cortejo era marcado pela presença de pedidores, que exortavam o crente ao desprendimento e à compaixão para com os mais desafortunados. Para a realização desta procissão exigia-se o empenho de todos os irmãos. No dia anterior e no próprio dia efectuavam-se os preparativos e «virão todos ajudar a armar a Casa». Toda a irmandade devia concorrer para um bom desempenho. Quando o trabalho era muito e os mesários não eram suficientes, mobilizavam-se todos os da instituição. O mesmo acontecia em Ponte de Lima não apenas para colher informações sobre as órfãs, mas também na distribuição de esmolas, no dia dos Fiéis-Defuntos. Por fim, a festa de Santa Isabel realizada a dois de julho. Esta festa honrava a padroeira, mas em Melgaço ela era sobretudo dedicada aos pobres. Apesar do avanço historiográfico conseguido nos últimos anos no campo das Misericórdias, a festa de Santa Isabel continua por estudar, sobretudo enquanto momento de caridade. Durante este dia os confrades desdobravam-se em trabalhos para satisfazer as petições. Em 1672, gastaram-se 3 600 réis nas esmolas enviadas. A dádiva podia ser de pão ou incluir também dinheiro. No século XVIII, estas ofertas diminuíram, embora continuassem a ser entregues. Ajudavam-se igualmente presos, doentes, passageiros, «alguns particulares» e pobres envergonhados. A assistência à alma era uma das principais atribuições da Santa Casa. Os pobres que morressem em suas casas, que aparecessem mortos na rua ou que se tivessem afogado, eram amortalhados e sepultados gratuitamente pela confraria, na sua igreja. Mandava-se-lhes ainda celebrar uma missa pela sua alma no dia do funeral. Porém, todos os que desejassem ser enterrados na Matriz ou em qualquer outro templo, seriam obrigados a pagar a tumba. Para o serviço ser gratuito estava, pois, condicionado à sepultura da sua igreja, local sobre o qual tinha jurisdição. Os irmãos eram igualmente sepultados gratuitamente. A Santa Casa tinha duas tumbas: a «inferior» e a «nova e superior». Para os restantes funerais possuía uma tabela com o preçário. Dentro da vila e na tumba «inferior», o preço era de 480 réis. Se residisse extra-muros, o preço ascendia a 720 réis. A tumba melhor custava para ambos os casos 2 400 réis. A Santa Casa possuía o privilégio de enterrar fora do termo da vila, podendo ir até às freguesias de Cristóval e de Paderne, termo de Valadares. Neste caso, e sendo irmão pagaria 1 600 réis, para a «refeição ou como regularmente chamam beberete de irmãos». A Misericórdia dava dois arráteis de bacalhau ou o seu valor em dinheiro a cada irmão que ia acompanhar o funeral. Estas freguesias distam alguns quilómetros da vila, obrigando os confrades a efectuarem longas caminhadas e a gastos de tempo. Por isso, este pagamento contribuía para os aliciar a comparecer e a tornar menos onerosa a sua participação. Os não irmãos eram obrigados à mesma contribuição. Se fossem sepultados na tumba «nova» pagavam 2 400 réis e na tumba «inferior» 800 réis. Os acompanhamentos efectuavam-se sempre na presença do padre capelão, que rezava dois responsos: um à saída da casa do defunto e outro quando o corpo era lançado à terra. Deveria rezá-los sempre em «voz baixa e submissa», como o próprio acto requeria. Instituição pequena, a Misericórdia de Melgaço tinha na assistência à alma a razão mais forte da sua existência, muito à semelhança do que se verificava na Santa Casa de Valadares.

ALTO MINHO: MEMÓRIA, HISTÓRIA E PATRIMÓNIO

MEMÓRIAS PAROQUIAIS

Maria Marta Lobo Araújo

pp. 669-670

909 c 441-. miseric-184.JPG