SOFRIMENTOS INSENSATOS XVIII
XX
No dia seguinte levantou-se à hora habitual e ainda o sol estava a espreguiçar-se e já ele ia pelo caminho da azenha. Os dias repetiam-se e raramente divergiam. A manhã estava fresca, mas o sol não tardaria em aquentar um pouco o ambiente. Quando chegou ao cruzeiro ouviu as pancadas que as marteladas espaçadas e matinais do ferreiro propagavam até ele. Vindo de mais longe, talvez do caminho de Cubalhão, ouviu chocalhar e berrar alguém como quando as reses debandam e há que reuni-las. Tinha sorte pois as suas acompanhavam-no sempre com imenso agrado. Certamente que era o feito da estreita e prolongada relação que ele tinha tecido com os animais.
Antes de chegar ao campo onde deixava as vacas, viu uma forma estranha, curvada no meio do caminho. Acabou por reconhecer o Irineu, o mendigo de Birtelo. Dava passos pequeninos mas apressados. Pequeno, tinha uma cabeça demasiado grande, uns cabelos brancos e longos e a parte superior do seu corpo encolhida de tal modo que lhe dava o aspecto de um gnomo. Andava sempre com pressa. Se alguém lhe dava uma esmola, virava a cabeça e olhava para a pessoa de baixo para cima, como um velho cão engelhado. Com um movimento ávido, enfiava o pão na sacola e o dinheiro na boca, antes de ir à loja onde o cuspia por cima do balcão. Enchiam-lhe a pequena garrafinha, que outrora contivera laranjada, de aguardente e continuava o seu caminho sem falar. Diziam que não tinha o juizo perfeito por afirmar predizer os acontecimentos, lendo nas pedras e nos tojos coisas que só ele podia ver. Contava que nos seus constantes passeios pelas aldeias da vasta região, muitas das vezes de noite, encontrava os espíritos de pessoas que erravam pelos montes e com os quais falava. Em geral, toda a gente o pilheriava. Portanto, em segredo, muitos acreditavam supersticiosamente nele. Perguntavam-lhe como seriam as colheitas, iam pedir-lhe conselho e ervas curativas quando a doença batia à porta... Sabia o que muita gente ignorava.
Ainda infante, o Armindo tinha medo dele; mais tarde, gostava de ouvir as suas histórias. O mundo e a vida contava-os como os sentia, não como os via. Quando se encontraram, estacaram mas o homem nem para ele olhou. Apenas abanava a enorme cabeça como se estivesse a ouvir vozes que vinham de longe. Ao cabo de alguns segundos, fixou os olhos avermelhados e imóveis nos do rapaz e grunhiu:
— A tua mai nom anda bem pois nom, rapaz ?
Este, que esperava tudo dele menos uma pergunta destas, reteve a respiração. Endireitou-se como se quisesse evitar que as palavras o atingissem e sentiu o coração bater mais depressa. Os olhos do homem, profundamente afundados, sem vida, agitaram-se repentinamente nas órbitas de tal maneira que dava a impressão que lá formigavam insectos. Acercou-se mais do moço e continuou, nasalando, desta vez, como se estivesse a sonhar :
— Ôs homes bam-se é esquêcem-se das mulhêres. A culpa ê deles que, sim comprendê-la, encaram a bida duma maneira é, despois, lebam-na doutra.
O seu rosto queimado pela aguardente adquiriu um ar misterioso. E, inesperadamente, desatou às gargalhadas. Os joelhos do rapaz tremiam. Raivosamente, abriu o saco de pano, tirou tudo o que tinha para comer e deu-o ao mendicante, antes de se apressar de apanhar as cabras e as vacas que tinham continuado o caminho. Ainda ouviu o homem dizer:
— Ô home ê filho da bida, rapaz, é a ti, esta tamém te nom bai poupar !
E deu mais uma gargalhada assustadora e desdenhosa que o estarreceu.
Quando, por fim, chegou à azinheira sentou-se numa pedra, perto do caminho, a olhar para o enorme carvalho cor de cobre que cobria o caminho. Notou nos ouvidos um zumbido estranho, um calor irritante no lóbulo das orelhas e o silêncio da floresta povoou-se da lembrança de vozes raivosas. Pareceu-lhe ouvir de novo os clamores do padre, as adivinhanças do mendigo e um sentimento de amargo desaire apoderou-se dele. Tudo e todos estavam contra ele.
Levantou-se, partiu uns galhos de uma amoreira e chamou pelas cabras, como só ele sabia fazê-lo. Estas, contentes, trotaram atrás dele como crianças, tentando morder no ramo. Conhecia-as tão bem e gostava tanto delas ! Esgotado, foi sentar-se encostado ao eucalípto. Lentamente, recobrou o fôlego.
A imagem do Irineu, definhado e caduco, às gargalhadas, atormentou-o. Não entendia como tinha adivinhado que a mãe não andava bem. Não queria acreditar que o pobretana pressagiasse as coisas. De certo que ouvira mal. “Oubi mal, talvez, mas entom como pôd’ele tamém dizer qu’era por culpa dos homes ?” Havia algo que lhe escapava, que não batia certo. Como se não lhe chegassem as dificuldades que tinha ! Não contaria o sucedido a ninguém, nem à avó.
Fechou os olhos e deixou-se berçar pelo silêncio da floresta, interrompido às vezes pelo crocito de um corvo ou de uma pega. As horas, monótonas, foram passando, pesadamente. Acabou por adormecer.
Foi acordado por uma voz feminina que não reconheceu logo. Esfregou os olhos rapidamente e só então realizou quem era. Ficou sentado, encostado ao eucalípto, indeciso, sem saber como reagir.
— É Mindo, acordei-te, nom ? Posso-m’acercar ?
A voz da mulher era melodiosa. Sem esperar resposta, subiu os escassos metros de monte que os separavam e pôs-se diante dele, um sorriso trocista no olhar, a brincar com um vime que trazia na mão. Era a Rosa, a Viúva. O Salvador cumprira a promessa que havia bastantes meses lhe tinha feito.
O rapaz estudou-a uns instantes. Era uma boa quarentona, bastante bonita, cujo rosto respirava saúde. Possuía uma beleza tardiva, maior do que os esplendores luminosos e rosados da juventude que as mulheres com uma vitalidade profunda, como ela, escondem por debaixo das delicadas linhas do rosto. Tinha uns membros sólidos e umas ancas vigorosas. A cara amorenada estava envolvida por um lenço azul escuro do qual escapava uma marrafa de cabelos pretos. Uma parte das pernas e os pés, desnudados, saíam-lhe de uma espessa saia cujas pregas acentuavam as linhas das poderosas ilhargas. O peito apenas estava protegido por uma camisa de tela grosseira, larga, que deixava ver através de uma ampla abertura a nudez rosada de um busto maleável e forte e dois seios enormes.
Apetecia-lhe deitá-la no chão e, por cima dela, apalpar avidamente aquele corpo excitante, morder-lho e apertá-la nos seus braços até lhe faltar o ar. Mas, por muito ardente e imperiosa que fosse a tentação, não mexeu, não tinha coragem para arriscar-se. Uma vaga angústia, misturada a um inconsciente pudor, reteve-o. Não sabia que dizer, como abordá-la. Procurava uma palavra, um gesto, um meio e não os encontrava. As suas mãos, impacientes, crisparam-se nas ervas que conseguiram apanhar. Por fim, para romper o longo silêncio que o incomodava e para encorajar-se um pouco, perguntou-lhe com uma voz vacilante e ansiosa :
— Êl tu biste ô Salbador ?
A mulher riu e, estendendo-lhe a mão, disse-lhe:
— Bem, bamos ali p’ra riba, p’ra detrás do muro.
O rapaz, como um autómato, estendeu-lhe a mão do braço normal e, agarrados, foram para detrás do pequeno muro de pedras que, mais acima, separava os montes. Ficavam ao abrigo de quem passasse no caminho. Mandou-o deitar-se no chão e ajoelhou-se ao seu lado, sentando-se nos calcanhares. O Armindo, de costas, não tinha coragem para encará-la nem para articular uma palavra. Fitava o céu , tão familiar e intensamente azul, e ela, muito devagarinho, sem uma palavra, começou a fazer-lhe festas na nuca, no pescoço e no peito. O corpo do moço reagia ao contacto da sua mão descontraindo-se e, gradualmente, uma excitação exorbitante, eufórica, como nunca tinha ressentido ou imaginado, apoderou-se dele. Dela expelia um cheiro acerbo e exaltante, um cheiro animalesco, de estábulo, de flores selvagens, de um corpo fustigado pelo trabalho e pelo sol. A respiração do rapaz acelerou-se e notou uma ligeira sensação de vágado, de embriaguez. Sentiu o desejo morder-lhe violentamente o coração. Nas veias, o sangue queimava-o como se ardesse. Naquele momento, para satisfazer o seu deleite carnal, era homem para tudo. Limitava-se a obedecer a uma folia incoercível. A pouca razão que lhe restava ia-se desvanecendo à medida que o desejo crescia. Foi naquele momento que percebeu o que a avó lhe dissera. Estremeceu ao sentir a mão da Rosa que lhe desabotoava a braguilha e lhe tirava o membro vertiginosamente rijo. Em seguida, depois de arregaçar a espessa saia, pôs-se agilmente por cima dele, um joelho de cada lado. Era verdade o que contavam: a Rosa não trazia calcinhas. O moço, inflamado, remexia as narinas, dilatadas, como fazem os garanhões que farejam, no vento, os odores das fêmeas e, ao sentir-se entrar nela devagarinho, fechou os olhos e puxou um suspiro que mais parecia um ronco. O seu rosto, relaxado pelo prazer, sorria. Pensava na Lídia.
(continua)