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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

PONTAPÉ NA BOLA EM MELGAÇO

melgaçodomonteàribeira, 12.05.20

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UM LUGAR ONDE NADA ACONTECIA

XI

O julgamento do cidadão que desflorara a rapariga menor de idade teve um desfecho imprevisto: por falta de provas concretas foi absolvido.

A tomada de depoimentos das testemunhas no caso Lili ia desenrolar-se. Por incrível que pareça, pessoas gradas ofereceram-se para depor. A rigor, o processo, agora, resumia-se à denúncia de que a Farmácia Durães vendia penicilina aos contrabandistas. Na sua inocente ignorância, o Teodorico João Fernandes, apenas reclamara do órgão competente, na condição de dono da farmácia, o não recebimento do medicamento que havia sido liberado do excesso de burocracia, mas ainda controlado.

O Rápido Futebol Club e o Unidos Futebol Club acertaram realizar o campeonato melgacense de futebol a fim de decidir de quem era a hegemonia daquele desporto, na terra. Seria de quatro desafios entre eles, representando primeira e segunda voltas. O mando de campo alternado, sendo que o campo era sempre o mesmo. O Monte de Prado, campo dos jogos, tinha as medidas oficiais, mas de terra batida, cheia de torrões e pedrinhas. Fora aberto naquele pedaço de monte, nos anos vinte, pelos rapazes de então, que iniciaram a prática daquele desporto, influenciados pelos rapazes que estudavam nas cidades e por filhos de “brasileiros” que no verão iam usufruir a terra de seus pais.

O campeonato melgacense de futebol acirrou rivalidades. A população da Vila dividira-se em dois partidos, de acordo com a simpatia, ou grau de parentesco com os jogadores.

O Unidos, por ser composto por integrantes mais jovens, levou a melhor: venceu os quatro jogos e foi proclamado campeão. Ao final de cada jogo, no regresso do campo, bastante distante, na entrada da Vila, vindo das Carvalhiças, estava postada em cima do muro da Avenida do lado da casa da Chaufera, a Dores, mulher do Abílio Costa, jogador do Unidos, que em altos brados e gestos de regateira, insultava os jogadores do Rápido. “Os Unidos têm colhões”, berrava ela. E outros impropérios. Com tais atitudes ganhou a inimizade de outras mulheres, inclusive vizinhas, ligadas ao outro grupo.

   Aconteceu, entretanto, que um filho da Dores andava febril, muito abatido, piorando dia a dia, sem que a mãe tomasse alguma providência. Uma daquelas vizinhas desafectas, reparando no estado da criança, tirou-a do colo da mãe e com o auxílio do cabo de uma colher, observou-lhe a garganta. Numa explosão de raiva, gritou: “Puta sem vergonha, esta criança está com o garrotilho. Vamos ao médico, correndo!” Salvaram a criança.

O Manuel Macarrão voltava às suas plagas, vindo de outros lugares. Empolgado com o movimento futebolístico da terra, resolveu aderir. Tinha sido razoável jogador quando mais jovem. Naquela altura, caminhando para os quarenta anos, foi recusado nos clubes existentes. Arregimentou outros quarentões e jovens que tinham sobrado dos outros grupos e fundou o Futebol Club Comercial. Adoptaram camisolas amarelas, compraram todo o material e montaram sede no térreo da casa da Duartina, a mulher do Mâncio Barbeiro, virado para a Rua Velha. O sucesso foi negativo nos desafios que realizou e finou-se o Comercial com poucos meses de idade.

O Unidos e o Rápido continuaram carreira. Este último para esquecer os desaires dos resultados dos recentes desafios, resolveu mudar de nome, passou a intitular-se Sporting Club de Melgaço, filiou-se no Sporting Club de Portugal, em Lisboa, que estava em destaque naquele momento. Teve um brilharete nesta nova fase, principalmente quando ficou sem concorrente. O Unidos, por falta de novos elementos para substituir os que foram servir no exército, a maioria, acabou.

 

                                                                            Manuel Igrejas

 

Publicado em A Voz de Melgaço

 

 

 

 

PORRA

melgaçodomonteàribeira, 31.03.20

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UM LUGAR ONDE NADA ACONTECIA

XVII

Finalmente o caso do Lili do Teodorico ia definir-se. Tinha-se esgotado a inquirição das testemunhas, nenhuma a favor do rapaz. O médico, Dr. Esteves, também fora dado a entender que o Lili seria um inconsequente. O doutor Durães, o farmacêutico, estoriou a conduta quase ingénua do rapaz quando seu funcionário. Ninguém se empenhou em incriminar o Teodorico, mesmo porque não tinha cometido crime algum, apenas ingenuamente denunciara que outros haviam infringido as normas da economia nacional. Baseado nos testemunhos, o Juiz declarou inocente o Lili, com uma restrição: devido ao que foi dito sobre sua capacidade mental, ficava proibido de administrar a sua farmácia.

O Marmita apresentou queixa no tribunal ao Delegado contra o Farpas, que lhe tinha deflorado a filha de 14 anos.

Constou que numa tarde pegou a rapariga sozinha no cortelho onde guardava utensílios da lavoura e fez-lhe mal. Ele já era casado e tinha dois

filhos. Tinha uma vida bastante turbulenta. De família de agricultores vivia mais do contrabando e de furtos.

Metido a valentão era considerado à boca pequena um bandoleiro. Contavam mil diabruras a respeito do Farpas, alcunha porque era conhecido. Um dia, contavam, os carabineiros a quem ele havia vigarizado numa negociata de contrabando, prenderam-no. No meio de dois desses guardas-civis espanhóis, seguro pelos braços ia sendo levado para o posto. Pararam ao chegar à linha férrea para deixar passar o comboio que se aproximava. Num inesperado puxão desenvencilhou-se e pulou para o outro lado da linha a poucos metros do comboio. Quando a composição acabou de passar os carabineiros não mais viram o prisioneiro que jogava no rio e já estava do outro lado, em Portugal. Motivo de comentários também tinha sido o namoro com a mulher com quem casara. A Maricota, rapariga que fora para Lisboa trabalhar como empregada de servir, deu-se bem com os patrões que arranjou. Diplomatas, foram servir num país no centro da Europa e levaram a empregada. Passados anos, um belo dia a Maricota apareceu na terra visitando a família. Causou admiração aquela figura de mulher, bem trajada, com requintes de fidalguia e modos elegantes. Foi como uma alucinação para os rapazes casadouros. Vários se insinuaram mas o que teve receptividade foi o João do Louro. Rapaz de boa família, comportado, também envolvido no contrabando de maneira “honesta”.  Uma reviravolta inesperada aconteceu! O Farpas interpôs-se, a Maricota desmanchou o compromisso e aceitou casar-se com o novo pretendente, de improviso. Coitada! Os maus tratos passaram a ser a rotina daquele casal e quando o caso da filha do Marmita aconteceu, ela, a Maricota, a bem posta e afidalgada, estava transformada num trapo e envelhecida. O João do Louro, para não se dar achado, passou a namorar a Perfeita, a filha do Zé da Carminda e em poucos meses casaram.

O Marmita na inocência da sua ignorância contava o acontecimento a sua filha e como para se justificar, dizia: “se fosse com a minha mulher não me arreliava tanto…”

Foi mais um caso de estupro que durante algum tempo distraiu aquela gente. O Delegado mandou que a rapariguinha fosse submetida a exame médico que comprovou a perda da virgindade.

O Farpas foi absolvido! Mesmo comprovada a perda da virgindade, como não houve testemunhas, a palavra da rapariga não foi suficiente.

 

                                                                        Manuel Félix Igrejas

 

Publicado em: A Voz de Melgaço

FICA EM CASA PORRA, FICA EM CASA

 

 

 

A CHEGADA DA PENICILINA A MELGAÇO

melgaçodomonteàribeira, 29.06.19

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UM LUGAR ONDE NADA ACONTECIA…

III

O Amílcar da Lucrécia estava prestes a bater as botas. O José Esteves (Zeca da Cabana) tanto insistiu com o médico que este, talvez nem tanto para salvar o moribundo, mais para testar a eficiência do novo medicamento de que se contavam maravilhas e ele só conhecia da literatura especializada que os laboratórios lhe enviavam, resolveu aceder.

Era isso! O amigo Zeca da Cabana mexera-lhe com os brios quando lhe evocou a penicilina. Telefonou, o médico, para o Delegado de Saúde Distrital em Viana do Castelo dando detalhes do caso, este telefonou para Lisboa e vinte e quatro horas depois a penicilina chegava a Melgaço pelo correio.

A expectativa era geral na localidade e arredores. A notícia de que naquela terra de “Deus me livre” de Portugal ia ser usada a tal penicilina, causou grande furor. O doutor Esteves pernoitou ao lado da cama do Amílcar, injectando-lhe de hora em hora o milagroso pó branco diluído no veículo especial que acompanhava. A reacção foi positiva e pela manhã foi considerado fora de perigo.

O júbilo foi grande e o povo da terra sentiu-se importante por estar participando do progresso da ciência. Uma maravilha, a penicilina ia salvar a vida de todos os enfermos, diziam. O médico ficou orgulhoso e já achava que valera a pena salvar o rapaz.

Manuel Igrejas

 (continua)

UM CONCURSO DE CÃES DE CASTRO LABOREIRO (conclusão) - ÓBIT0

melgaçodomonteàribeira, 18.05.19

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vencedora do concurso

(continuação)

 

Festa sem foguetes e três mil contos por mês

O «Cinco de Outubro» é dia de festa na freguesia, festa sem foguetes nem procissão. Prato melhorado ou saia nova. Mas festa. A mulher de Castro Laboreiro vê em tal dia a promoção dos seus cuidados no mundo canino. Data que é um chamariz à terra, de gente de todos os lados e culturas. Dia em que os naturais contactam mais de perto e se familiarizam com as pessoas da cidade.

Hoje já não se interessam pelos prémios pecuniários – disse-nos aquele pároco – Só lhes interessam as taças e as medalhas ganhas pelos seus cães para as exibirem no melhor canto da casa. E o dinheiro dos prémios não lhes interessa porque em Castro Laboreiro todos vivem muito bem. Não há pobres.

A nosso pedido, o «chefe espiritual» daquele povo esclareceu-nos:

Para esta pequenina terra, os emigrantes enviam mensalmente à volta de três mil contos.

Esboçamos uma reacção de surpresa. O Padre Aníbal, então, à muita insistência nossa, acedeu em pormenorizar:

Cada um remete para a família uma média de cinco a seis mil escudos.

Mas há quem remeta todos os meses meia centena de contos, garantiram-nos; aquele sacerdote não desmentiu. O seu sorriso antes, confirmou. E nós próprios chamamos com a esposa do proprietário da estalagem de Castro Laboreiro, na qual foram gastos três milhões de escudos, que, depois de muito instada, acabou por confessar que o marido lhe mandava de França trezentos contos anuais, ou seja, uma mensalidade de 25!

 

«Vá perguntar ao inferno»

Os cães em número de 25, a ser presentes aos juízes, Drs. António Cabral presidente do Clube Português de Canicultura, e Teodósio Antunes, foram dispostos por classes: de cachorros, destinada aos exemplares que, à data do concurso, tenham mais de seis e menos de doze meses de idade; e aberta, destinada a todos aqueles com mais de um ano.

Enquanto os bichos eram minuciosamente observados, com muita mais minúcia do que as «misses» num concurso de beleza, pois eram apalpados de todas as formas e feitios, incluindo grãos e dentes, os mirones da cidade (Lisboa, Porto, Évora, Faro), que ali se haviam deslocado propositadamente, procuravam estabelecer contactos com toda aquela gente, que nos pareceu, contudo, pouco receptiva a satisfazer a curiosidade geral, nada disposta a ser considerada avis-rara.

O repórter afadigou-se em formular perguntas, mas, quase sempre, esbarrou com muralhas de mutismo. Então quando lobrigava obter resposta, era do género: «Não sei». «Para que quer saber?», «Vá perguntar ao inferno» Não saíam disto. Deixarem-se fotografar foi problema ainda mais difícil. Sempre que o camarada fotógrafo apontava a máquina e elas davam por isso, era certo e sabido virarem, ostensivamente, as costas. Indignavam-se mesmo. «Tire o retrato ao cão e deixe-nos a nós. Já toda a gente sabe que «semos» bonitas. A gente não precisa disso». Não fora a perícia do Orlando e a reportagem não conseguiria fixar as suas expressões.

 

Modernos quartos-de-banho servindo de arrecadação

As casas circulares cobertas de colmo, durante séculos características da região, foram substituídas pelas casas de telha «francesa». Com o dinheiro que amealha na estranja, o natural de Castro Laboreiro começa por mandar construir a sua própria casa. Depois, investe na cidade, comprando andares em regime de propriedade horizontal.

Apesar disso, naquela aldeia serrana, o forasteiro, nas primeiras impressões, fica com a ideia que os naturais vivem com extrema dificuldade. O aspecto humilde das pessoas, de cara queimada e enrugada, precocemente envelhecidas, leva exactamente a supor que subsistem em função do que ganham com a enxada na mão. De parcos recursos portanto.

Pois ali, mais do que em qualquer outro lado, pode dizer-se que assentou arraiais a decantada sociedade de consumo. Dizia-nos quem mais e melhor está informado acerca de Castro Laboreiro, que é precisamente o Padre Aníbal que lá nada falta. «Televisores, torradeiras, máquinas de lavar e barbear, gravadores, aspiradores, aquecedores. Tudo aquilo que a técnica criou para facilitar a vida de cada um, há cá na terra.»

Alguém de fora, mas que por funções profissionais vai muitas vezes a Castro Laboreiro, dizia-nos depois: «É formidável, de facto, como esta gentinha tem tudo.» Um sorriso. Uma dúvida, como que se interrogando a si próprio se havia ou não, de dizer-nos o resto. Acabou por dizer: «Têm tudo realmente. Mas têm tudo dentro de caixas, tal como veio das lojas. Novinho em folha. Nem todos, claro. Com muitos, porém, isso acontece.» Depois: Conheço casos em que os quartos-de-banho, por exemplo, servem de arrecadações. Estão a abarrotar de coisas. E ainda que os artigos sanitários sejam o último grito, tenham ainda o selo da fábrica, (por estrear portanto), as pessoas vão ao campo fazer as suas necessidades…»

Tal estado de coisas tende, contudo, a acabar, dado que os filhos dos emigrantes, frequentam as Universidades do Porto, Coimbra e Lisboa e o Seminário, tendo a terra já os «seus» doutores.

 

Seis contos pelo «Paris»

As pessoas que ali se haviam deslocado propositadamente para adquirir um cão de «Castro Laboreiro», e para isso atravessaram o país de lés a lés, percorrendo mais de mil quilómetros (!!!) procuravam ouvir aquilo que os juízes cochichavam acerca de cada cão julgado, para depois abordarem o respectivo proprietário, antes de serem conhecidas as classificações. E é fácil saber porquê. Evidentemente que desde a altura em que o proprietário soubesse que o seu animal havia sido premiado, acto contínuo faria «render o peixe», que no caso era pedir mais dinheiro pelo animal, elevado à categoria de vedeta. Cão com diploma e medalha é mais caro. A propósito julgámos que a melhor altura para o negócio não seria aquela. Talvez por isso, há «peregrinações» a Castro Laboreiro, «santuário» da raça com o mesmo nome, durante todo o ano, ainda que os meses de Março e Abril sejam aqueles que mais gente atraem.

Pois por cachorros de um mês, portanto ainda «imberbes» para participarem no concurso, os donos pediam entre 200 e 250$00. Mas já o bicho considerado o melhor do certame, de seu nome «PARIS», propriedade de Manuel Gonçalves Loureiro, ausente no Canadá e apresentado por sua mulher Benezinda Gonçalves, teve cotação de seis mil escudos. Muito dinheiro, convenhamos, segundo o nosso ponto de vista pessoal, naturalmente. Observámos à «ti» Benezinda: «Não tem vergonha de pedir seis contos pelo cão?»

«Oh home, deixe-me ficar o bicho em paz. Não o quero vender. Vocês é que mo querem comprar.» A despachar-nos: «Daqui a algum tempo isto (e apontou para o cachorro) não é um cão. É um elefante. E foi-se.

 

Guerra às malhas brancas

Facto curioso é que os possíveis compradores antes de entrarem em negociações procuravam ‘catequizar’ o Padre Aníbal a fim dele dar a sua opinião sobre o cão em causa, pois, como já referimos, é um estudioso profundo das raças nacionais, e ao mesmo tempo servir de medianeiro para que o preço não ferrasse demasiadamente. Já se vê a sua dificuldade em aguentar-se entre dois fogos de interesses díspares. Defesa do paroquiano e amabilidade para com o forasteiro.

Após os julgamentos, ouvimos o Dr. António Cabral: «A impressão geral é bastante boa. A fixação das características étnicas está garantida. O lote de cães este ano foi muito bom! Muito bom! Antes da distribuição de prémios, o Dr. Teodósio Antunes ‘falou às massas’. Depois de ter historiado a razão do concurso, disse: «Cada vez temos de ser mais exigentes. Temos de combater as malhas brancas. Não devem existir mais cães de «Castro Laboreiro» com malhas brancas. Há que evitar o cruzamento com outras raças. Prendam as vossas cadelas na altura do cio…»

 

In Jornal “ O MUNDO CANINO

Novembro de 1971

Aurélio Cunha (texto)

Orlando Soares (fotos)

 

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manuel e o painel por ele executado e oferecido à Casa do Minho do Rio de Janeiro

 

MORREU MANUEL IGREJAS

Não sei que dizer; descansas finalmente depois de tantas décadas a levar a história da tua querida vila pelos quatros cantos do mundo, de enfeitar paredes em Portugal e Brasil, de fazeres gargalhar cada casa onde chega A Voz de Melgaço e o nosso blogue. Choro-te agora e abraçar-te-ei um dia lá no sítio para onde partiste.

Ilídio

 

O COCIOLLO DO LILI

melgaçodomonteàribeira, 06.04.19

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UM LUGAR ONDE NADA ACONTECIA…

IV

 

Para o julgamento do Lili do Teodorico foram arroladas várias testemunhas que dariam seu depoimento sobre a conduta e personalidade do rapaz. A mais importante testemunha era o doutor João Durães, farmacêutico, dono da única farmácia da Vila. Político destacado, membro da União Nacional, partido único existente na época, já exercera a presidência da Câmara Municipal com destacada administração. O governo do País só permitia, então, uma farmácia para determinado número de habitantes. Na Vila de Melgaço, só existia a farmácia Durães, a farmácia do Lili era em S. Gregório, localidade nove quilómetros distante.

O Teodorico João Fernandes, garoto ainda, terminado o ensino primário, foi ser aprendiz na farmácia Barreiros Sucessores, sob a direcção técnica do farmacêutico diplomado, doutor João de Barros Durães. Pouco depois, a razão social da firma passou a denominar-se Farmácia Durães, transferindo suas instalações para a Praça da República. Assumiu a gerência do estabelecimento o prático farmacêutico senhor Alves, figura hilariante que ganhou a nomeada de Pédanjo. Retornado do Brasil, simpático como são todas as pessoas obesas, cantarolava a marchinha carnavalesca em voga na data do seu embarque, “O Pé de Anjo”. Mantinha bastante carregado o sotaque brasileiro e usava termos daquele país que faziam dele tema de chistes.

Razoavelmente inteligente, o Li li foi absorvendo os ensinamentos do manuseio das drogas tornando-se hábil boticário.

Quando o senhor Alves faleceu, o Lili já estava no ponto de o substituir. O salário não era lá essas coisas, mas excessivamente económico, beirando a avareza e vivendo com os pais, guardava tudo que ganhava. Era muito educado e respeitador, porém, veladamente tinha atitudes de grandeza relacionando-se com as famílias pseudo fidalgas e isso irritava os rapazes da sua geração e da sua condição económica.

De tanto economizar conseguiu capital para comprar a farmácia do velho doutor Canhoto em S. Gregório. Dono do seu próprio negócio, a vaidade do rapaz transcendia a ponto de fazer exigências aos órgãos administrativos.

Naquela fase do após guerra, vulgarizaram-se as bicicletas motorizadas lançadas pela indústria italiana, as mais conhecidas, Lambreta e Cociollo. O Lili comprou o segundo Cociollo da terra onde desfilava sua imponência pelas ruas da Vila de maneira peculiar que causava risos e deboche da população: para economizar gasolina, usava a motorizada pedalando como se fosse bicicleta comum.

 

(continua)

 

O DOUTOR SUIÇA

melgaçodomonteàribeira, 05.01.19

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nº 60, casa da dona marieta

 

UM LUGAR ONDE NADA ACONTECIA…

II

Espalhou-se rápida nas tabernas e no café a notícia do internamento no hospital, do Amílcar da Lucrécia. O grupo de rapazes reunido numa mesa do café do Zé Félix, comentava o caso:

- Realmente fazia alguns dias, talvez mais de uma semana, que não aparecia no bilhar.

- A Maria da Rosa Pires que ultimamente cuidava dele, é que o levou ao hospital.

- Disseram que estava irreconhecível. Um rapagão que ele era, consumido pela febre.

- Tudo começou por uma dor de cabeça.

- Está com meningite e talvez não escape.

Quem afirmava isto era o Neca Pires, sempre bem informado e que acabara de se juntar ao grupo.

O Dr. Esteves, mais conhecido como Dr. Suíça pela marca de nascença que tinha no rosto, encostada à orelha esquerda, médico clínico do hospital, sentenciara:

- Meningite em estado adiantado, não tem jeito!

O Zeca da Cabana, funcionário municipal, de família influente e amigo do médico, presente na hora do diagnóstico interveio:

- Ó Esteves, vê o que podes fazer pelo rapaz, ele é um desocupado, mas é um ser humano.

- É um pária, imprestável, não merece qualquer tentativa…

Era o doutor António Cândido Esteves, radical em suas opiniões e aparentemente desprovido de sentimentos piedosos. Não acreditava em Deus nem em qualquer manifestação espiritual. Uma tarde, na alfaiataria do Augusto do Félix, do outro lado da rua, quase em frente à sua casa, onde passava alguns momentos do dia conversando, surgiu o assunto:

- Claro que Deus não existe, donde é que ele veio?

- Mas, senhor doutor, a terra, os planetas, o universo, quem os fez? – perguntava o Gú, filho do alfaiate.

- Apareceram por acaso. A maior parte das coisas aparecem por acaso.

- E Jesus Cristo? – perguntou o Augusto do Félix.

- É isso que é uma boa alma, como vocês dizem. Foi um sujeito bom, como tantos outros e o povo diz que é uma boa alma.

A conversa nesse dia acabara meio sem graça. Não obstante a sua instrução superior, o doutor Esteves não teve argumentos para evitar o sentimento de piedade que naquele momento lhe devotaram. Todavia convivia o doutor Suíça pacificamente com a religião chegando a participar de alguns actos do culto como se fossem eventos sociais, e era amigo de todos os padres da região, a quem respeitava e era respeitado.

As declarações de ateísmo do doutor Esteves eram contrariadas por suas atitudes de vida. Atendia a todos que o procuravam ou mandavam chamar, sem cobrar coisa alguma, mesmo porque a maioria do povo não tinha recursos monetários. Nos seus tempos de estudante na Faculdade em Lisboa, frequentara a Academia de Equitação, e, desde então tinha predilecção por cavalos e era óptimo cavaleiro. Sempre tinha um animal de boa linhagem, geralmente uma égua, que era o seu meio de transporte para atender aos enfermos nas povoações distantes, na montanha, onde o automóvel não ia.

Tinha um Citroen, modelo 1928, em bom estado, pelo pouco uso, não obstante os quase vinte anos. Quando resolvia utilizar o automóvel, para o tirar da garagem valia-se de alguns rapazotes que o empurravam até pegar. Pelo longo tempo de inactividade sempre a bateria estava descarregada. Nos sábados, dia de feira na Vila, à porta do doutor Esteves havia uma romaria de pessoas que vinham agradecer os seus préstimos; um parente que ele salvara, ou o próprio enfermo já recuperado. Como reconhecimento, faziam-se acompanhar de frangos, galinhas, cabritos, peixes do rio, frutas e outros produtos da terra.

- Ó Manel, vem cá! Leva estas trutas à casa da Marieta.

O Manel era o filho mais novo do Augusto do Félix, o vizinho alfaiate. A Marieta era a mulher oficial do doutor Suíça com quem tinha duas filhas. Não moravam juntos, nem eram casados.

Dava toda a assistência mantendo a casa da mulher no maior conforto e abastança. Parte dos pagamentos que os pacientes lhe traziam eram mandados para a casa da Marieta. Na sua casa na rua da Calçada, morava com sua mãe, a D. Teresa Pedreira, e uma criada. Um dos motivos para que a Marieta não morasse na casa do médico era a intransigência da mãe.

Todavia, segundo os mais velhos, ela, Teresa, tinha sido empregada naquela casa.

Tinha o doutor Esteves, e parece que era esse um dos seus pecados, aparte os conceitos filosóficos e teológicos, uma tremenda vaidade da sua colecção de objectos. Algumas pessoas que ele atendia tinham familiares emigrados em outros países a quem comunicavam o acontecido. Quando estas pessoas conseguiam ir de visita a seus familiares ou em regresso definitivo, traziam os mais variados e valiosos presentes para o doutor Suíça. Uma espingarda de caça, cano duplo, toda entalhada, o melhor que existia na época segundo os entendidos, que alguém levara da Bélgica; relógios idos da Suíça, máquina fotográfica de França e outros objectos de alto valor. Nunca, naquela terra, se ouvira falar em tal: um retornado dos Estados Unidos levou-lhe um barbeador eléctrico. Foi uma sensação!

Mas o doutor Esteves não saía de seus hábitos e não usava nenhum daqueles objectos. Eram como troféus dos quais era cioso e só uns poucos amigos podiam apreciar.

Para manter suas necessidades económicas e sua posição social, tinha considerável património de família. Auferia salário simbólico como clínico do hospital, porém tinha bons lucros com a transacção de gado bovino. Era entendido no assunto, frequentava as feiras especializadas, comprando e vendendo bois e vacas. Mantinha os animais ao ganho durante algum tempo, que consistia no seguinte: comprava os animais em época baixa, quando os lavradores precisavam de dinheiro para custear suas lavouras e vendia-os em época em que os mesmos precisavam dos animais para as fainas agrícolas. Nesse meio tempo os animais ficavam à guarda de proprietários rurais conhecidos ou amigos, que passavam a ser parceiros. Cuidavam dos animais utilizando-os em seus serviços de lavoura e quando o convencionassem vender, o lucro era dividido.

(continua)

 

UMA FORÇA DE FÉ

melgaçodomonteàribeira, 11.08.18

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pastoriza por manuel igrejas 2017

 

 

UM LUGAR ONDE NADA ACONTECIA…

 

VI

 

O julgamento do Lili do Teodorico aguardava data. Ele continuava em sua actividade e era assunto das conversas.

Naquele fim de verão, um ano depois do Amílcar ter-se recuperado, numa tarde cálida, quando as pessoas andavam de roupas leves e os homens, na sua maioria em mangas de camisa, a notícia caiu como um raio que a todos fulminou: o Zéca do Aurélio caíra de cama com uma meningite.

Era o José de Araújo Azevedo, conhecido como o Zéca do Aurélio, um distinto rapaz. Filho do senhor Aurélio, abastado comerciante, gozava de estima geral. Alto, bem apessoado, primava pela fidalguia e boa educação. Estudara na cidade do Porto o que lhe dava certa superioridade sobre os demais rapazes. Devia ter nessa altura por volta dos 25 anos.

A consternação inicial que a todos tomara transformou-se de súbito numa força de fé. Numa roda de rapazes e raparigas que se formara no canto da praça, próximo da casa do senhor Aurélio, alguém sugeriu que se fizessem orações. Uma novena seria forte apelo a Deus por intermédio de Nossa Senhora. Resultado. O senhor Pe. Justino perfilhou a ideia e, a partir do dia seguinte, ao fim da tarde, a juventude reunia-se na igreja matriz onde rezavam o terço, liam trechos do Evangelho, faziam reflexões, recitavam a ladainha e entoavam cânticos, intercedendo ao Criador pelo restabelecimento do amigo enfermo, e terminavam o culto com louvação e adoração do Santíssimo Sacramento. Nove dias repetiu-se aquela devoção. O procedimento médico foi o que se tornara usual. Accionada a delegacia distrital de saúde que encaminhou ao órgão competente na capital.

- Se a penicilina chegar a tempo vai ficar bom. Olha o Amílcar que passa o tempo jogando bilhar!

 - Dizem que o caso do Zéca é mais grave, comentavam os rapazes no café!

 

 

VII

 

O doutor Esteves foi chamado para atender a uma rapariga da família que estava muito mal. Informado sobre os sintomas e o que teria causado a enfermidade, negou-se a atender. Que fossem chamar o doutor Sá que era o médico oficial do município! Ele não atendia a desmanchos!

A irmã da rapariga doente desfazia-se em apelos. Ele, doutor Suiça, era o mais entendido em doenças de mulheres. A pleiteante, irmã da enferma era abastada comerciante na vizinha vila de Monção, podia pagar o que ele pedisse. Não e não! Abominava, o doutor Esteves, a prática do aborto! Não admitia que se fizesse tal, fosse a propósito do que fosse! Muito menos por ter emprenhado do namorado. Esta posição do médico era bastante contraditória com a sua filosofia materialista. Considerava crime abortar uma futura pessoa. Mesmo quando o aborto era espontâneo, ele se revoltava.

Aconteceu isso anos depois, quando uma sua criada engravidou dele mesmo. Pensando ser recriminada demitiu-se ao sentir a gravidez. Com poucas semanas abortou e aí, sim, ele enfureceu-se ao saber do caso. Devia ter-lhe confessado; ele a cuidaria uma vez que conhecia o malogro dum caso anterior com um namorado, proclamava o médico a quem lhe falava no assunto.

Aquela comerciante ofereceu vultosa quantia para o médico ir cuidar-lhe da irmã. Ou pelos reiterados apelos ou pelo dinheiro, ele foi, tratou da rapariga e ela curou-se.

 

   Manuel Igrejas

 

 

Publicado em A Voz de Melgaço

 

O VASCO, O MANEL E A CENTRAL DE MELGAÇO

melgaçodomonteàribeira, 10.02.18

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manuel f. igrejas

 

O ANTIGAMENTE

 

Nos anos quarenta do século passado, como meu primeiro emprego foi ser ajudante do Vasco, na Central. O Despacho Central de Melgaço ficava no térreo da casa das senhoras Teixeiras, ao lado da caneja da Fonte da Vila. O meu pai queria fazer de mim alfaiate como fez com meus irmãos, mas o Dr. Sá, que cuidara da minha tuberculose e reconheceu que não foram tanto os remédios que me curaram… convenceu o Augusto do Félix a não me fazer alfaiate que sobrecarregava muito o peito. Uma profissão ao ar livre, talvez lavrador, seria o ideal. Gostei de não ser alfaiate mas não gostei da ideia de agricultor, ainda bem que meu pai não tinha terrenos. Como já estava espigadote não ficava bem andar vagabundando. O Bino do João Lima fora demitido do cargo de ajudante do Vasco. O Augusto do Félix pediu a intervenção do Dr. Suíça (Esteves) vizinho e amigo, para pleitear do Sr. Teixeira o cargo para o seu Manelzinho.

Antes do Vasco quem gerenciou a Central foi um tal Vieira, cidadão forasteiro indicado pela CP (Companhia Portuguesa de Caminhos de Ferro) a que a Central estava ligada. Este Vieira, além daquele departamento de despacho e recebimento de mercadorias, assumiu a Pensão que anteriormente fora Vila Verde, ali na Calçada em frente à barbearia do João do Gabriel, e mais tarde foi do Zeca da Pureza (o Estica). Quem administrava a Pensão era uma irmã do Vieira, matrona rechonchuda, o tipo de beleza que os papalvos apreciavam naquela época, acho que solteira pois aceitava a corte dos mancebos que a bajulavam e lhe ofereciam presentes. Alguns casados que a título de ir beber uma pinguinha na taberna da Pensão, passavam os fins de tarde naquelas reuniões. Um primo nosso, casado e com filhos, ia todas as tardes ao sair do trabalho, penteado e perfumado para a Pensão. Mais tarde gabou-se que lhe oferecera umas meias e lhas calçara.

O Sr. Teixeira, co-proprietário da Auto Viação Melgaço Lda., atacadista de mercadorias com galpão no largo da Calçada que chamávamos garagem, também era o responsável pela Central, autorizou a minha admissão. O Vasco gostou pois conhecia-me muito bem. Éramos vizinhos com as casas geminadas. Aliás, essas casas tinham sido uma única vivenda em época anterior. Então fui ser ajudante na Central sem ganhar coisa alguma. Naquela época quem se iniciava numa profissão ou comércio, trabalhava de graça, às vezes por anos. Além de não ter vencimento ainda ganhava raspanetes bem ásperos. O Sr. Teixeira aparecia de surpresa e reclamava por a Central estar desarrumada e sem varrer. Foi aí que percebi que além da parte burocrática também tinha de varrer. Mas não o fazia, os rapazes que perambulavam por ali na expectativa da chegada da camioneta que de Monção trazia as mercadorias, iam comunicar aos comerciantes destinatários que lhes davam uns tostões para as transportarem após desembaraçadas, varriam por mim a troco de lhe indicar de quem eram as mercadorias. Quem mais varreu foi o Álvaro da Conceição (Facadas) e o Manel da Rosa Nabeiro que até hoje agradeço.

Após algumas semanas estava senhor de todo o serviço da Central, pois o Vasco que iniciava o romance com a Biti, ausentava-se várias vezes ao dia e eu ainda tinha de mentir caso o Sr. Teixeira aparecesse dizendo que fora resolver na Câmara, assunto da Central. De tal modo conhecia todos os trâmites do serviço que fiquei sozinho com toda a responsabilidade quando o Vasco adoeceu por alguns meses, e nessa altura apareceu um fiscal da CP para avaliar o funcionamento daquele departamento que elogiou o meu desempenho. E eu continuando com o mesmo salário: nenhum! Naquele tempo como por certo todos os tempos, quem se prevalece do trabalho gratuito de alguém, será muito ingénuo não pensar que o ajudante gracioso não irá tirar proveito doutra maneira. O Vasco que não devia ganhar muito bem fazia pequenas trapalhadas com as mercadorias. Eu aprendi. Quando fiquei responsável pela Central fui abordado sigilosamente por um comerciante conhecido que disse, antes da minha actuação, terem-lhe violado uma encomenda de sapatos. No trajecto do comboio e na estação de Monção era frequente o sumiço de parte das mercadorias. A propósito, uma tarde o Pianho ajudante avulso na mecânica das camionetas, apareceu na Central procurando faca ou objecto cortante, que cheirava. Não achou nada que incriminasse. Esclareceu que investigava quem comeu meio queijo do Reino, aquele feito bola vermelha, que faltou numa encomenda. Mais tarde o motorista e o ajudante da camioneta gabaram-se que tinham feito uma merenda e tanto.

O comerciante em questão propôs fazer uma grande encomenda de calçado sob seguro e quando chegasse eu assinava a guia atestando a violação e a falta de vários pares de sapatos que o seguro iria cobrir, em troca ele dava-me um par de sapatos novos. Mas é claro que aceitei! Quando fui reclamar os meus sapatos quis-me dar um par encalhado que eu não gostei. Escolhi uns de camurça, os melhores que tinha na loja. Relutou mas dizendo-lhe que ou aqueles ou não queria nenhum, acabou cedendo.

Quando calcei aqueles sapatos a primeira vez o meu pai observou: estás calçando sapatos melhores que o teu patrão. Patrão simbolicamente pois não me pagava nada!

Mas este antigamente todo é para recordar alguns dos muitos ensinamentos da vida que o Vasco me passou. Um dia chamou-me a atenção para o seguinte: “já reparaste, Manel, que a nossa terra é puta mãe e boa madrasta?” E passamos o resto daquele dia enumerando os forasteiros que se radicaram em Melgaço e se deram bem: Até fizeram fortuna!

 

Rio, Abril de 2012

Manuel Igrejas

 

Publicado em: A Voz de Melgaço

 

UMA SENHORA DA SOCIEDADE

melgaçodomonteàribeira, 23.09.17

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rua de baixo - vila

 

 

O ANTIGAMENTE

 

 

O passado está sempre presente no dia a dia das pessoas, especialmente daquelas que já passaram da conta. Não há nada que aconteça que não tenha já acontecido, noutro contexto e com outra roupagem, é claro.

Detalhes do quotidiano, principalmente os que nos aborrecem, despertam-nos algo parecido, semelhante ou então a repetição exacta do já acontecido.

Então acontece que os resmungos da minha mulher além de me enfastiarem lembram momentos parecidos connosco e com outros. Inerente a quem já ultrapassou a fase de pular muros, regatos, etc., implica involuntariamente, com o que possa estar no chão. Daí que os entendidos recomendam retirar tapetes, passadeiras, até jornais dos pisos onde circulam as pernas cansadas. Apesar das recomendações as mulheres gostam dos detalhes que possam dar-lhes satisfação pela beleza decorativa que proporcionam às suas casas. Sempre conservam um tapete ou passadeira e o que é pior, esticadinha. Ao passarmos, sem darmos conta, o trapo ou serapilheira que seja, que está no chão, vai na frente, enrugando-se. Ela ou elas reclamam, não só por serem dois anos mais novas, mas por fazerem hidroginástica e anda levantarem melhor as pernas.

Um dia destes, lembrou-me o Dr. Rocha. No início dos anos trinta do século passado (é claro), havia na Vila de Melgaço uma figura muito conhecida, respeitada que gozava da simpatia geral, pelo menos do meu tio Emiliano com quem eu vivia na altura, era o Dr. Rocha, pessoa já idosa, para mim que teria no máximo sete anos. Segundo concluí mais tarde, seria o Notário ou Conservador do Registo Civil, não lembro bem, vivia com a esposa, acho que não tinham filhos, naquela casa do lado esquerdo de quem estava na Câmara, entre a cabine de electricidade e a avenida, na Feira Nova. Mais tarde quem viveu nessa casa durante alguns anos foi o Sr. Alvim com a esposa, D. Alzira e os filhos.

A esposa do Dr. Rocha (nunca lhe soube o nome completo) era uma senhora toda empertigada, o tipo de matrona, tanto física como autoritária, da idade do marido, de nome D. Adelaide, que sempre era evocada como D. Adelaide Rocha, não para a diferenciar de outras Adelaides, que por acaso na altura não as havia, mas porque o seu porte imponente e postura fidalga assim recomendavam. A rigor, tal procedimento mais imanava da subserviência do povo que endeusava quem se arrogasse socialmente superior. Sempre se apresentava em público rigorosamente trajada e ajaezada com as suas jóias apaparicada pelas outras senhoras da sociedade. Este tipo de pessoas para mais se evidenciarem transformavam pequenos actos rotineiros em casos extraordinários. Um domingo, a D. Adelaide Rocha precisou deslocar-se não sei onde e para tal chamou o Emiliano que no seu carro de praça costumava servir o casal. No regresso a D. Adelaide Rocha desembarcou (saiu do carro) no terreiro onde outras senhoras da sua categoria passeavam exibindo-se. Correu para elas afobada, pedindo para ser abraçada e lamuriando: “O patife do Emiliano quase me matou!”, e contou o sucedido. Tinha desenvolvido enorme velocidade. E era verdade! O Emiliano que geralmente não passava dos quarenta quilómetros com o seu Andorinha (Ford modelo A), naquela tarde, aproveitando uma das poucas e pequenas rectas que existiam na estrada, chegou aos cinquenta quilómetros.

   Em casa a D. Adelaide também primava pelo esmero. Naquela época, naquelas paragens, não se conhecia a cera para soalhos, daí que o chão das casas era lavado com água, escovão e sabão amarelo, de joelhos. Uma mulher, criada, contratada ou a dona da casa, molhava, esfregava e enxugava o chão dos aposentos. Era uma tarefa cansativa. A D. Adelaide mandava semanalmente esfregar o chão de sua moradia, e ai de quem naquele dia pisasse fora das passadeiras. O Dr. Rocha que, além do gabinete oficial no edifício dos Paços do Concelho, tinha seu escritório em casa que várias vezes ao dia precisava consultar e, distraído, pisava onde não devia, o que lhe custava intermináveis sermões e admoestações pouco lisonjeiras.

Ano após ano, revoltado com tão enervante rotina, resolveu fazer valer seus direitos de dono de casa. Num dia em que o chão fora esfregado, antes de entrar em casa, encharcou as botas na lama do rego que passava em frente e nos dejectos dos cães e triunfalmente passeou por todos os cómodos da casa. Ninguém soube o que aconteceu depois, mas continuaram a viver harmoniosamente.

 

   Rio, Fevereiro de 2013

                                                                                                                 Manuel Igrejas

 

Publicado em: A Voz de Melgaço   

                                               

O AJUDANTE DO VASQUINHO

melgaçodomonteàribeira, 29.07.17

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               O ANTIGAMENTE 

 

 

Isto de por a funcionar a gravação do passado no registo da memória, corre-se o risco de disparar por falta de funcionamento prolongado, e põe-se a descoberto cenas e situações que se pretenderam esquecer.

A Maria de Fátima, filha do saudoso Toninho do Cerinha, é a culpada do desarranjo mecânico do nosso gravador cerebral que não quer parar de funcionar. Como foi dito, eu era ajudante do Vasco na Central, e o meu desempenho chamou a atenção do Sr. Teixeira que tratou de explorá-lo. Nas horas mortas da Central, e eram muitas, incumbiu-me de cobrar as letras promissórias dos comerciantes. Era o Sr. Teixeira, também, representante bancário e as facturas das mercadorias que os lojistas compravam, quando venciam, o representante bancário era incumbido de as receber. Lógico que o chefe não iria a pé ou de bicicleta quando mais longe, cobrar. Não sei quem fazia isso antes de mim, só sei que fui guindado a esse posto que me elevou no conceito social da terra, ganhando a mesma coisa, nada! E o meu desempenho agradou a tal ponto que além das duas funções que já exercia, Central e cobranças, acresceu a de cobrador na carreira. O Sr. Aires, aparentado com a D. Laura, esposa do Sr. Teixeira, retornado do Brasil, foi ser cobrador duma das camionetes da carreira. Naquele tempo, anos quarenta, havia duas carreiras diárias entre S. Gregório e Monção. De manhã, às 7 horas, uma carreira mista, camionete metade bancos e metade livre para mercadorias. Voltava de Monção às 6 horas da tarde. A outra carreira, a do correio, saía às 10 horas e voltava às 4 da tarde quando não havia atraso no comboio. Na da manhã, o chaufer era o Emídio ou o Álvaro da Orada, e cobrador o Fernando Ferrador. Na carreira do correio, o chaufer era o Sabariz e o cobrador o Aires que pelas mazelas que levava do Brasil, vira e mexe ficava doente e era substituído em cima da hora pelo Gui (Henrique Fernandes) fiel do departamento atacadista. Um dia, pela impossibilidade do Gui se ausentar do seu metiê, fui mandado ser cobrador. Esta situação repetiu-se várias vezes até que o Sr. Aires se afastou e eu passei a ser permanente. Surgiu uma dificuldade: na hora do jantar (almoço) eu estava em Monção. O Sr. Teixeira autorizou que eu tirasse da receita das passagens a importância para pagar a refeição que fazia na taberna anexa àquele restaurante que tinha na avenida da Estação da C. P., e recomendou: - Come bem! Pois sabia da tuberculose que me atacara anos antes. E a rotina manteve-se por vários meses. Ao voltar da carreira entregava ao Constantino, grande amigo e parceiro desde os bancos da escola, que era o responsável pelo escritório das empresas, os talões das passagens e o dinheiro correspondente descontada a refeição. Nem sempre conferia na hora, colocava numa caixa para mais tarde contar. Um dia o Sr. Teixeira nas investidas que fazia no escritório, perguntou: - Que dinheiro é este na caixa? – É o que o Manel entregou do correio. Resolveu contar. – Está faltando quinze escudos – É o da refeição! – Mas é muito dinheiro, manda-o chamar. Fui interrogado e respondi: - O senhor mandou que me alimentasse bem. Aí o Fernando Ferrador, que também almoçava na mesma taberna e estava presente, achou de agradar ao patrão e me entregou: - Ele só gasta nove escudos. Era verdade! Diariamente eu me fazia um salário de 5 ou 6 escudos. O Sr. Teixeira achou que eu não merecia tanto e estipulou: - Vou-te dar 150 escudos por mês, cinquenta por receberes as letras e cem pela carreira (pela Central, nada). Deu na mesma, mas pelo menos ia ter um salário. Só o meu pai é que teve a despesa ao fornecer-me o bife que havia de comer no almoço.

   Fui apurado para a tropa o que causou estupefacção geral. Quando mais perto de me apresentar ao serviço militar, pensando noutro modo de vida após a tropa, engendrava um modo de atrapalhar o Sr. Teixeira. O João Castro, outro grande amigo e também parceiro da escola, um domingo à tarde convidou: - Queres ir connosco ao Porto? O pai dele, o Manuel Castro, grande comerciante, em função dos seus negócios fazia muitas viagens àquela cidade no Ford que antes comprara ao dito Sr. Teixeira. Arrumei-me às pressas e pedi à minha irmã Esmeralda que dissesse ao Gui que arrumasse quem fosse na camioneta no dia seguinte. No Porto, desliguei-me dos Castro, apenas combinamos o regresso e procurei os irmãos Manuel e José Lourenço, filhos do Manuel da Garagem (Lourenço) que estudavam e viviam naquela cidade. No quarto com duas camas que ocupavam, facilitaram-me uma por aquela noite e eles dormiram juntos. Grandes amigos, especialmente o Manuel, parceiro em “Os Vitoriosos”. Fiquei dois dias zanzando pelo Porto, pela segunda vez, dando vazas à minha necessidade de auto afirmação. Dos trocados que tinha amealhado comprei uma gabardine que era na época, o máximo de snobismo. Ao regressar, o Sr. Teixeira passou-me o maior responso que se possa imaginar. Mandou que fosse pedir emprego ao Manuel Castro. Como se eu esperasse outra coisa. E na medida que ele se mostrava furioso eu me considerava realizado ao verificar que ele precisava dos meus préstimos.

   Quando voltei da tropa e reorganizei “Os Vitoriosos”, o Sr. Teixeira demonstrou amizade comigo. Tratava-me com educação e acreditou na minha palavra a ponto de facilitar uma camionete para levar o grupo “Os Vitoriosos” a Viana disputar uma taça, para pagar com festas que iria promover depois.

 

 

Rio, Maio de 2012

                                                 Manuel Igrejas

 

Publicado em: A Voz de Melgaço