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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

A FILHA DO PADRE

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

 

À tia Maria, mãe do Jacob, do Reinaldo e da Lígia.

 

 

    O Pe. António de Jesus Rodrigues, moço, dinâmico, ensinava além do catecismo, aos sábados na escola cantoria folclórica.

    Chegou a comprar uma bola de couro para a rapaziada jogar futebol. Para quem jogava com bola de meia foi um grande melhoramento desportivo.

    Além desses atributos era intransigente em seus princípios morais e religiosos.

    O irmão dele, Armando, o único que não estudou enamorou-se por uma moça filha do Padre de Corçães. Ex-padre, abandonara a carreira eclesiástica, não sei se para assumir a filha ou outro motivo.

    Ora o padre António opôs-se a tal namoro pois achava que a rapariga era filha do pecado pois fora gerada enquanto o pai era padre. Só que o irmão e a família não deram importância ao protesto e o casamento acabou por acontecer.

    Entretanto o padre António desesperava-se e como tinha um génio exaltado por conta da questão familiar descarregava em todo o mundo. O homem vivia num estado de nervos insuportável.

    Uma noite, mês de Maio, durante a novena, na hora de preparar para a bênção do Santíssimo, a rapaziada, eu entre eles, por qualquer coisa sorria em surdina. Isso era comum. Algum fazia uma palhaçada e os demais não se continham.

    Acontece que naquela noite o padre António estava desesperado e ao ouvir os cochichos e o riso, virou-se, apanhou o rapaz que estava mais ao jeito e levou-o debaixo de bofetadas até à porta da rua pelo meio da mulherada que estava participando da novena. À tia Maria pareceu-lhe o neto dela, o Chatice (não era, era um outro das Carvalhiças que não me lembro mais o nome) e começou a resmungar.

    Que aquilo não se fazia, que o rapaz tinha mãe e pai, etc., etc..

    O padre, ainda “possesso”, com dedo em riste ordenou que ela se retirasse, e ela saiu sempre protestando.

    Ainda na mesma época, o Tenente Peres levou o padre António até à sua adega para tomar uns goles e espairecer a agrura familiar.

    Só que a conversa demorou até à hora do enterro do Tino Betrana, moleiro que vivia nos moinhos acima de Eiró, e o padre estava bêbado de cair.

    Ele nem aguentava a luz da vela que o ritual exigia. Amparado, cambaleando acompanhou o enterro, acho que não chegou ao cemitério. Coisas do passado.

 

Autor conhecido mas não identificável.

 

Camborio Refugiado

 

O BUFO DAS BUFAS

melgaçodomonteàribeira, 05.03.13

 

 

    A Dona Olívia acumulava as obrigações de professora com os afazeres de casa, escalava alguém para tomar conta da turminha, geralmente a filha do Zé Félix, a Maria do Céu, por ser a maior. Aliás os sete filhos do Zé Félix viviam quase exclusivamente na casa de Dona Olívia, só iam comer e dormir na casa deles. A Dona Olívia não cobrava igual a todos, cada um pagava conforme as suas posses e tinha até os que nada pagavam em dinheiro. Os pais mandavam alguma coisa do que colhiam: feijões, ervilhas, favas, couves ou alguma carne na época da matança do porco.

    Além de muito brincar e o facto de estar na escolinha já era uma permanente brincadeira, aprendia-se a rezar e a fazer paus e ligações que era uma preparação para mais tarde fazer algarismos e letras. O exercício de paus e ligações consistia em ficar riscando na lousa carreiras de tracinhos e curvinhas. Reboliço era quando alguém soltava um traque. Como a algazarra era permanente não se ouvia o ruído só se notava um fedor insuportável. A maioria daquelas crianças alimentava-se de caldo à base de hortaliças e legumes e era isso que provocava o mau cheiro dos gases. As crianças acusavam-se mutuamente denunciando à Dona Olívia. A professora escalava um garoto para descobrir o autor do fedor. O Menano do Sabino apresentava-se voluntariamente para a função de denunciante. Ia de criança em criança cheirar na altura do pescoço por dentro da roupa e sempre acusava alguém que protestava e o caso ficava por isso mesmo. A maior precaução da dona da escolinha era controlar os constantes pedidos para urinar. Na rua e em suas casas toda aquela meninada diziam mijar que era o termo corrente, mas na escola a professora fazia questão que falasse urinar. A Não ser as meninas mais pequenas que iam lá dentro no quarto, fazer no penico, todos os outros iam fazer no castelo. Naquela altura, antes da recuperação dos monumentos, que veio por volta de 1940, as muralhas que circundavam a torre de menagem estavam em ruínas com o recinto à volta da torre, devassado. Era uma terra de ninguém, onde crianças e animais de criação, da vizinhança, brincavam na mais completa fraternidade. Pois para urinar ou até fazer cocó, todos iam ao castelo, os mais pequenos acompanhados de um maior.

    Tinha alturas que a Dona Olívia ficava doida com a romaria em que se transformava o ir urinar. Era só um deles descobrir no castelo alguma coisa fora do normal: uma lagartixa com dois rabos, uma galinha manca, ou coisa assim, que transmitia aos outros, e de repente a vontade de urinar era colectiva. Iam e ficavam e o Zeca que já era espiga dote, ia com uma vergasta trazer de volta toda a canalha.

    As novidades apareciam na escola da Dona Olívia. Vez por outra, alguma criança trazia recado dos pais para a professora deixar sair mais cedo para ir ajudar nalguma tarefa doméstica ou no campo: - Dona Olívia, o meu pai mandou dizer para a senhora me mandar embora às quatro horas para ir andar com a água (rega dos campos), dizia o Zé, filho do Rogério Cambado.

    Os pedidos para sair mais cedo foram-se avolumando com os mais esfarrapados pretextos: para levar o gado a beber, para ir ao forno apanhar o pão, para ajudar a ordenhar as cabras, para entregar uma roupa, para provar uns socos; esta de provar os socos era constante, como o Inverno se ia aproximando, este calçado, espécie de botas com solado de pau usado pela maioria da população, era desculpa cabivel, muito embora a Dona Olívia achasse estranho que, crianças que nunca tinham usado tal calçado, viessem com esse pedido. Começou a desconfiar que havia maroteira até que um garoto pediu para sair mais cedo para provar umas alpargatas. Drasticamente veio a decisão: - Só vai sair mais cedo quem trouxer um bilhete do pai, sentenciou a Dona Olívia. Aquilo foi um duche de água fria no ânimo da meninada. Sair mais cedo passara a ser um ponto de honra, uma esperteza enaltecedora. Todo o que conseguisse mais cedo, antes das cinco horas da tarde, passava a ter certo destaque e importância. Saíam mais cedo para ficar no terreiro, jogando pião ou outra brincadeira. A maioria já tinha conseguido aquela façanha. Entre os poucos que ainda não haviam saído mais cedo estava o Manelzinho. Ele e mais uns poucos eram alvo da chacota dos demais.

    Sentindo-se diminuído resolveu o filho do Augusto do Félix, pedir o bilhete ao pai. Após o jantar, antes de retornar à escola, pediu ao pai o bilhete para a professora o deixar sair às 4 horas. O pai achou estranho, mas o Manel explicou que todos já tinham conseguido isso e ele também se achava com direito. O pai, para satisfazer o seu pimpolho, pegou num papel e um lápis, sentou num dos bancos da alfaiataria e apoiando o papel no mocho, foi escrevendo. O Manel, de olhos arregalados de satisfação acompanhava o movimento do lápis, sem entender. Conhecia algumas letras mas não sabia ler. Quando o pai escreveu a hora ele protestou choramingando:

    — Cinco horas não! É às quatro! O pai ficou orgulhoso pela inteligência do garoto que já reconhecia os algarismos e pelo discernimento. Fez novo bilhete e agora recitando em voz alta, para deixar sair o meu filho Manuel às 4 horas para ir fazer um recado. E assinou.

 

 

Manuel Félix Igrejas

 

Rio de Janeiro

 

Public. em A Voz de Melgaço 

 

VACINA DA VARÍOLA

melgaçodomonteàribeira, 05.03.13

 

Desenho de Manuel Igrejas

 

 

O Manelzinho ganhou da irmã da Caridade, que era a enfermeira do hospital, a caneta vazia, da vacina contra as bexigas. Naquele tempo essa vacina vinha num tubo que terminava numa ponta em forma do aparo que dava ideia de caneta de tinta permanente. Levou-a para a brincadeira habitual. Aquela novidade mexeu com a imaginação do Rogério. Com a sua verbe inigualável convenceu o primo a ceder-lhe a bisnaguilha para ele montar um consultório médico. A garotada da vizinhança foi convocada para vir vacinar-se. Era uma brincadeira nova e engraçada anunciou, convencendo os mais desconfiados. Formou uma pequena bicha, todos de manga arregaçada aguardando a vez de receber as três cruzinhas com a ponta da caneta, tal como faziam de verdade no hospital. Muitos risos com as cóceguinhas que aquilo fazia. Um “paciente”, porém, reclamou do “doutor” que o feriu ao fazer força exagerada no seu braço. A paciente seguinte, a Armanda da Isabel Caçolas, não quis vacinar com medo de ser picada. O Rogério contrariou-se, barafustou por lhe estragarem a brincadeira, ele armado em médico tinha de provar a sua autoridade. Para provar que aquilo era tudo de mentira, que não doía, demonstrou em si mesmo. Arregaçou o braço direito, ele era canhoto, fez um longo risco, algo profundo, ao longo do seu antebraço.

Naquele dia a brincadeira ficou por ali mesmo. Três dias depois, o Rogério amanheceu com um febrão dos diabos. A mãe, a tia, toda a vizinhança ficou assustada. Chamaram o Dr. Suissa que caiu na gargalhada ao ver aquela vacina gigante inflamada e sentenciou: - rapaz, tu nunca vais ter bexigas na tua vida! A febre levou alguns dias a acalmar, retendo o Rogério na cama. Durante algumas semanas andou com o braço na tipóia sem vontade de inventar brincadeira.

Naquele tempo ainda não existia o Guiness, o livro dos recordes; caso existisse, a vacina do Rogério estaria registada como a maior vacina do mundo.

Arrastado, quente e gostoso corria o verão que se aproximava do seu ocaso. Naquela época o tempo passava mais devagar. Era um domingo à tardinha, o Augusto do Félix, a sua mulher Deolinda e o Manelzinho, desciam pela estrada da Carpinteira, despreocupados, em passos vagarosos, regressando de mais uma das costumeiras visitas ao tio Manel e ti Rosa do Regueiro. Este casal de remediados lavradores do dito lugar da freguesia de São Paio, tinham com aquele outro casal uma sólida e antiga amizade que cultivavam com recíprocas visitas. Estrada abaixo, o Augusto do Félix cantarolava:

 

As freiras de Santa Clara, Santa Clara,

quando vão para o coro, para o coro

diziam umas para as outras, para as outras,

ai quem me dera ter um namoro, um namoro.

 

Cebolório, cebolório…

 

Mudando de tom Augusto continuava:

 

Era uma velha que andava a varrer,

debaixo da cama andava a varrer

com sete batatas no cu a bater,

e quanto mais a velha varria

mais as batatas no cu lhe batiam…

 

O Manelzinho achava graça e fazia coro. Pela altura de Corçães, em frente à casa do Teodorico, encontraram-se com a Dona Olívia e a Flavinha Mulata que andavam passeando, saboreando aquele aprazível lugar e os aromas do gostoso fim de tarde. Aquelas duas deram meia volta e todos vieram conversando. Entre as amenidades abordadas veio à baila o Manelzinho e sua condição de já poder frequentar a escola. Ali mesmo ficou acertado o ingresso do garoto na famosa escolinha. Era um património da terra a escola da Dona Olívia. Sempre que era evocada faziam-no com muito carinho.… A sua titular gozava do respeito geral. Já era uma senhora entrada nos anos e a Flavinha, sua filha de criação, também era muito estimada. Havia também o Zeca, acho que neto de Dona Olívia, e embora tivesse mais família, inclusive na África, naquela altura resumia-se àqueles três personagens em Melgaço. Moravam na Rua Direita esquina com a travessa do Castelo, aliás a fachada principal era virada para a travessa e tinha duas escadas de pedra. Uma mais larga que dava para a sala e outra mais estreita de acesso à cozinha. Era por esta que entravam as crianças. A escola funcionava nos aposentos da casa e os alunos eram a mais confusa mistura que se possa imaginar. Tinha ricos, remediados e pobres, rapazes e raparigas desde crianças de colo que só engatinhava até marmanjões que já frequentavam a escola oficial e que, para não ficarem a vadiar pela rua na parte da tarde, os pais colocavam-nos na Dona Olívia.

Para ingressar nessa memorável escola maternal era indispensável levar um banquinho e, claro, o material escolar que se resumia a uma lousa e os competentes lápis de lousa, vários, que eram o resultado do primeiro após quebrar. Os bancos, mais altos ou mais baixos, de acordo com o tamanho de quem os ia usar, reflectiam o poder económico das famílias das crianças. Tinha banquinhos toscos, empenados e mal acabados e tinha banquinhos primorosos, feitos por competentes carpinteiros, alguns até pintados e outros, requinte dos requintes, até com gavetinha. O banco do Manelzinho tinha gaveta, não que o pai dele fosse mais abastado que os outros, muito pelo contrário, mas porque o seu cunhado Lucas, como foi dito, era carpinteiro e o garoto o seu bijú. Algumas crianças não tinham bancos, sentavam nos bancos, grandes, corridos, que ladeavam a mesa das refeições. Era mais cómodo para os maiores, sentar nestes bancos pois apoiavam a lousa na mesa ao invés de ficar sobre os joelhos, quando sentados nos banquinhos. Daí o haver permutas de lugar que envolviam parte da merenda.

 

 

Manuel Félix Igrejas

 

Rio de Janeiro

 

Public. em A Voz de Melgaço

 

A IDA A VALENÇA

melgaçodomonteàribeira, 05.03.13

 

 

O Manelzinho conseguiu levar a corneta e o tambor, os seus exclusivos brinquedos importados, quando foi com a mãe na sua habitual ida à horta. Pelo caminho ia exibindo-os para fazer inveja aos rapazes que cruzavam. O Rogério percebeu de longe a presença daquelas maravilhas de que já ouvira falar. Empregou a sua melhor dialéctica para convencer o primo a deixá-lo usar aquelas preciosidades. Estava difícil convencer o Manel quando teve uma ideia genial:

— Vamos fazer uma música e ir a Valença.

O Manel e os outros garotos que estavam por ali ficaram empolgados. A notícia correu célere. Os rapazinhos foram chamar outros colegas que àquela hora andavam zanzando por outros lugares da Vila. Rapidamente havia na porta da taberna da Lúcia um número de rapazes maior que na saída da escola. As pessoas grandes vinham à porta da casa ou à janela saber o que estava acontecendo.

— Se calhar vai ter outra guerra das cruzadas, dizia o Sebastião à porta da sua taberna. A dona Margarida, “a madrinha”, mais a Felícia, da janela do seu atelier de costura, por cima da tasca do Sebastião, perguntava aflita o que estava acontecendo. À medida que tomavam conhecimento do que a canalha tramava, riam e voltavam aos seus afazeres.

O João da Rosa Porca, tremendo brincalhão, sentado à sua banca de sapateiro, sem interromper o trabalho, participava da movimentação das crianças à porta da sua oficina, do outro lado da rua em frente à taberna da Lúcia, incitando-os e dando-lhes algumas ideias de como se organizarem. Como juntou canalha nessa tarde! Vieram de dentro da vila, da Feira Nova, do Terreiro e até da Calçada.

O Nando da Teresa, primo do Rogério e do Manel, também apareceu para tomar conta da brincadeira por ser o mais velho. Apoderou-se do tambor e o Rogério da corneta, ao Manel deram um pedaço de vide onde tinha de fazer piriri…piriri todo o tempo. O resto da turma, também com pedaços de pau, faziam com a boca imitação de instrumentos, alguns batiam em latas e tinha até um que com duas tampas fazia o som dos pratos. O João da Rosa Porca deu a instrução e eles formaram quatro a quatro e a formação tinha jeito. Com a boca fingindo o som dos instrumentos conseguiam produzir a melodia de um ordinário conhecido. Foi dada a partida, rua do Rio do Porto abaixo ao comando do tambor batido pelo Nando. A batida era boa e ritmada igual à do António Caixa que era quem tocava tal instrumento na Banda de verdade. De repente descompassou e todos pararam após uma dúzia de passos. O Nando estava com problemas numa das alpargatas, a sola despregara e dependurada não deixava pisar firme nem manter a cadência. Descalçou-se igual à maioria dos componentes e foi dada nova partida. Quem comandou a saída desta vez foi o Rogério com um forte sopro na corneta e um forte grito triunfal:

— Vamos a Valença!

As pessoas grandes riam com gosto daquela chochice das crianças. Todos os moradores daquela rua vinham à porta apreciar o desfile. A Isabel Caçolas e as filhas, Ervilha e Milanguta, mais em baixo a Carolina Braga à porta da sua Pensão que conversava com o retratista, o Dom Rodrigo da Feira Nova e o Armindo da Pontepedrinha que estavam ali por acaso; mais adiante o Sabino à porta da sua mercearia, também ria. Os tanoeiros deixaram de bater nas aduelas, talvez para não atrapalhar a batida do tambor e nem por isso atrasaram a feitura das pipas. O tio Diogo à porta da loja da Carneira chamava as pessoas que estavam lá dentro para verem o cortejo. Do outro lado da rua, no portão do solar do Ferreira da Silva, o Zé Canelas e o Teodorico, feitores da propriedade, também riam da brincadeira. Os trá-lá-lás, os piriri-piriris os fom-fom-fons gritados pelas gargantas da rapaziada, mais o esganiço da corneta, as batidas das latas, tudo ao compasso do tambor, escutava-se longe, sobressaindo da pasmaceira daquela tarde de verão. Ao passar pelas pessoas o Rogério parava de soprar e gritava empolgado:

— Vamos a Valença!

O João Pitães largou a forja e veio à porta ver o que acontecia. Em cima da ponte sobre o regato (o Rio do Porto) quase houve um acidente. O Augusto Caçolas, descendo do outro lado, retornando de entregar os jornais em Galvão, vinha despreocupado pelo meio da rua guiando o seu Buick. Com o inseparável arco de pipa nas mãos, com os lábios imitando o ruído do motor do automóvel, num trote miudinho, desligado de tudo, apenas absorvido com o guiador do seu carro imaginário, em cérebro infantil, não obstante de ter mais de vinte anos, quase esbarrou na musica. Não fosse o aviso do João Anti que também vinha descendo daquele lado, alertando-o, a banda seria atropelada. Sorte que os travões do Augusto Caçolas obedeceram, ele fez uma graciosa manobra de marcha-atrás para o lado da rua e a musica passou triunfante. O Cerinha, à porta da sua oficina com a sovela e um sapato na mão, ria a bandeiras despregadas. Dois dos seus filhos também iam na marcha. Brincalhão e zombeteiro como não tinha outro igual, quando o Rogério anunciou que iam a Valença, retrucou:

— Isso. Ide, ide rapazes e fazei boa figura, mas tomai cuidado ao passar em Monção, porque eles têm inveja de nós.

O Edmundo Rato na sua latoaria, descobriu porque o filho, o Nove e Cinco, ainda não voltara do recado que fora fazer: lá ia batendo duas latas no meio da turma. E a empolgação chegou ao delírio! Na Loja Nova o sr. Esteves, a mulher D. Ludovina, a filha D. Micas e a sobrinha, a Isaurinha, o empregado Arlindo e algumas castrejas, assistiam embasbacadas àquela demonstração de alegria, bairrismo e galhardia da canalha melgacense. Até o António Ferrador que descia da Carpinteira, parou o seu carro e o Ronha estacou a carroça para não atrapalharem o desfile musical. E a Banda de Música seguia triunfante tomando a estrada rumo a Monção. No término da Vila, no final da Loja Nova, nos baixos do casarão, onde morava o Tenente Peres, tinha o Lucas a sua oficina de carpinteiro de sociedade com o Manuel do Caneiro. Os oficiais da Oficina já tinham dado pela aproximação do cortejo com a cadenciada barulheira. O Lucas também veio à porta e reparou no Manelzinho soprando num pau enquanto os primos se pavoneavam com os instrumentos importados. Ao mesmo tempo reflectiu que a brincadeira ia longe de mais, quando o Rogério, mais uma vez, anunciou a ida a Valença. O Lucas com um garrafão na mão anunciou:

—Pois já chegaram!

Entrou no meio da formação fingindo despachar sarrafadas. Apanhou a corneta, o tambor e o Manelzinho, levando os três para dentro da oficina onde ficaram de castigo até à noite na hora de ir para casa. Os outros rapazes, no momento da ameaça, pernas para que vos quero. Não obstante o desfecho imprevisto, aquela quase ida a Valença, ficou gravada na memória dos participantes como um retalho feliz das suas vidas.

 

Manuel Félix Igrejas

 

Rio de Janeiro

 

Public. em A Voz de Melgaço

 

BANDA DE MUSICA DOS B V M

melgaçodomonteàribeira, 05.03.13

 

 

Pois, foi ainda à sombra dos lauréis daquele acontecimento glorioso para os Bombeiros de Melgaço ocorrido seis anos antes, que a corporação melgacense se apresentou na Convenção na Vila de Valença. Era um domingo frio e chuvoso, clareava o dia. Os briosos Bombeiros vinham chegando impecavelmente vestidos com seu fardamento de cotim cinzento, bem lavado e passado, o dolman apertado até ao pescoço com botões de metal dourado, sapatos pretos engraxados. No quartel apanhavam os cinturões com as machadinhas, e o capacete. Como eram bonitos aqueles capacetes de metal dourado, reluzentes, com o emblema da corporação encimado por uma águia também em metal sobreposto na frente. Do capacete descia um cordão vermelho de veludo que ia até ao cinturão. Também da platina do ombro até ao bolso do peito pendia um cordão vermelho em curva sobre o peito, e para completar a gala do fardamento luvas brancas. Que maravilha! A Banda de música com a mesma galhardia no vestir, em vez de capacetes usavam bonés. Foram em duas camionetes da carreira. Naquela época ainda não tinham o famoso carro da bomba, jóia de artesanato, por eles construído em cima do chassis do Buick modelo 1928, que o Simão Araújo doara; mas isso é outra história.

Na caravana para Valença, o Manelzinho do Augusto do Félix também foi. Disseram que era o mascote, o Lucas, o cunhado, era um dos comandantes e o Gú, o irmão, era um dos briosos bombeiros. O mascote deu-se mal na viagem; como sempre acontecia quando para mais longe ia de carro. Enjoou e vomitou várias vezes. Chegados a Valença, o Manel para se refazer das agruras da viagem ficou na casa da irmã Graziela, só à noite foi ao concerto musical. Ficou o dia todo brincando com o Manel da Graziela, quase da mesma idade, filho adoptivo e por isso sobrinho postiço do Manelzinho. Também… choveu o dia todo. A Graziela morava já algum tempo em Valença, talvez desde o casamento. Sendo uma vila de fronteira com ponte internacional de carros e caminho de ferro, era intenso o tráfego entre Valençe e Tui, Vigo e outras cidades da Galiza. A Espanha estava numa fase de “vacas gordas”. O Sabariz, marido da Graziela, era o chofer e havia convencido o sogro, o Augusto do Félix, a conseguir dinheiro emprestado para comprar um automóvel que ele iria explorar na praça de Valença que era a mina de ouro da época argumentava. O dinheiro ganho nos fretes iria saldar as parcelas e ainda sobraria muito. Sogro apenas seria o fiador. E assim foi! Não sendo abastado e não tendo outros rendimentos que os do seu trabalho de alfaiate, apenas a sua comprovada honorabilidade lhe bastou para conseguir vinte contos a altos juros, do Zé Borne, um dos pioneiros emigrantes na França.

Comprou o Sabariz um Pontiac, novo em folha o mais moderno modelo dos automóveis americanos que existiam e foi radicar-se em Valença. As agonias que o Augusto do Félix passou para pagar as letras do empréstimo, não vêm ao caso, basta dizer que por ter de adiar as parcelas principais, só de juros pagou o dobro do empréstimo. Deixa para lá!... Mas Valença era toda festa naquele domingo chuvoso. Os Bombeiros de Melgaço no desfile e não sei mais o que, não fizeram lá grande figura, mas a Banda de Música, sim senhores, que figuraça. O Mestre Morais não abria mão da disciplina, militar que fora, fazia questão que fosse cumprida nos mínimos detalhes, além da capacidade musical que transmitia aos executantes, autênticos virtuosos. O Mestre Morais além de emérito regente e disciplinador, entre vários instrumentos tocava violino.

Pois a Banda Musical dos Bombeiros Voluntários de Melgaço, não obstante o mau tempo, à hora marcada, iniciou o desfile atacando um dos seus famosos ordinários. Fizesse calorão ou chovesse picaretas, na hora estipulada fazia-se presente, já fora assim em Braga, noutra memorável participação. À noite, no salão de espectáculos, a Música de Melgaço demonstrou toda a sua classe erudita. Mimoseou a plateia numerosa com um magistral concerto sinfónico onde incluiu a suite do 1812. Essa performance do Mestre Morais e seus pupilos foi aplaudida e comentada nos jornais da região.

O povo de Melgaço mais uma vez ficou orgulhoso e feliz. O tema das conversas durante muito tempo passou a ser a Banda de Música e de uma maneira tão apaixonada que em alguns sujeitos virou fanatismo, como o Flórido que sempre que se emborrachava, e isso acontecia todo o fim de semana, desandava a cantarolar as árias, ordinários, valsas e todo o repertório da Música. E a gente miúda, a canalha, participava do delírio musical regionalista reinante.

O Manelzinho trouxera de Valença uma corneta de lata e um tambor comprados em Vigo. Coisa bonita e de verdade, nunca em Melgaço uma criança da classe dele tivera aquilo. A corneta emitia através de uma palheta bonito som que podia ser modulado com os dedos nos buraquinhos. O tambor, com duas batéculas rufava ou marcava o compasso marcial igual aos soldados. Tão valioso era aquele brinquedo que as pessoas da família não deixavam o rapaz levá-los para a rua. Mas um dia o Manel condicionou a sua ida à horta com a mãe a levar os instrumentos. E levou.

 

 

Manuel Félix Igrejas

 

Rio de Janeiro

 

Public. em A Voz de Melgaço

 

ASSOCIAÇÃO HUMANITÁRIA DOS BOMBEIROS VOLUNTÁRIOS DE MELGAÇO

melgaçodomonteàribeira, 05.03.13

 

 

Um dia aconteceu uma nova e sensacional brincadeira que tumultuou aquela pacata localidade. Tinha acontecido semanas antes um grande evento que agitara todo o Alto-Minho. Haviam-se reunido em Valença, em convenção, representações das corporações de Bombeiros Voluntários de toda a região. A corporação dos Bombeiros de Melgaço, claro que também esteve presente, e com destaque principalmente pela sua famosíssima Banda de Musica. Os Bombeiros de Melgaço, aliás, Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Melgaço, denominação pomposa e bem representativa do carácter daquele povo simples e bondoso, foi fundada em 1927 ou 1929, em condições precárias e material rudimentar, por inspiração do jovem advogado melgacense, Dr. Augusto César Esteves. De quando a ida a Valença tinha o seu quartel instalado no rés-do-chão daquele casarão do Rio do Porto de Cima, na estrada nacional.

Pois os Bombeiros de Melgaço naquela época gozavam de um prestígio jamais alcançado por instituições congéneres na região, quiçá de todo o País. Acontecera do outro lado do Rio Minho, ali na Galiza, bem em frente à Vila de Melgaço o mais trágico e pavoroso acidente de caminho de ferro de que havia noticia.

O comboio expresso “Madrid-Vigo” descarrilou num trecho bem perto do rio que naquela época corria bem cheio e caudaloso. O acidente foi presenciado por muita gente porquanto a passagem daquele expresso era motivo de admiração, pelas suas linhas, alta velocidade e pelo silvo grave do seu apito. Pois, naquela manhã ensolarada, sem mais nem menos, nem saber porquê, o transvia galego saltou dos trilhos, escorregou, barrando abaixo aos trambolhões e parte dele enfiou-se no rio. Quase na mesma hora o sino da Igreja Matriz da Vila de Melgaço tocou a rebate, como sempre fazia quando havia sinistros. Quem primeiro chegasse à Igreja, apanhava na loja do Zé Pequeno, em frente, a chave da porta lateral, que estava ali para isso, e tocavam o sino a rebate com badaladas apressadas e nervosas conclamando os bombeiros e o povo.

Foi assim no dia do descarrilamento. Os elementos acorreram ao quartel para se munirem dos capacetes, cinturões, cordas e machadinhas… naquele dia a Vila ficou vazia. Bombeiros e povo, de cambalhota, Carvalhiças e Mascanho abaixo, em poucos minutos transpuseram a distância coberta de mato e pedregulhos, no mais sensacional corta-mato da história daquela gente. Era pavoroso o espectáculo: homens, mulheres e crianças, passageiros do comboio, debatiam-se, quase em agonia, nas águas do rio, outros presos nas ferragens, imploravam a ajuda Divina como ultimo socorro. A gente de Melgaço, brava, humanitária, desprendida, desdobrava-se em esforços. A nado e em pequenas batelas, atravessaram o rio e sem se importarem com a guarda-fiscal ou os carabineiros que lhes perguntassem pelo salvo-conduto. Foi uma jornada épica!

Aquela mesma gente portuguesa que trezentos anos antes expulsara aqueles mesmos espanhóis que queriam ficar com a sua Vila, agora, desinteressadamente os socorria, impelidos pelo sentimento da solidariedade.

Quando ao fim do dia chegaram os socorros das povoações espanholas, inclusive das grandes cidades, Vigo e Ourense, já os Bombeiros de Melgaço tinham controlado toda a situação. Os feridos mais graves haviam sido encaminhados para as modestas instalações do Hospital da Misericórdia. Bagagens e objectos foram tirados do rio e do meio do mato e entregues a seus donos. Aquele povo humilde, a maior parte dele bastante pobre, nem um só instante pensou em apoderar-se do que quer que fosse. Um cidadão, cambista, pelo que se soube depois, lamuriava-se pela sua grande desgraça: não se importava com os arranhões e escoriações que sofreu, mas com a sua maleta que caíra ao rio, onde estava toda a sua fortuna. No mesmo instante o Zé Breguês procurava o dono da maleta que tirara do fundo do rio, cheia de pesetas e duros de prata. Entregou-a intacta.

Apenas um objecto foi levado como troféu: o relógio do expresso, com o vidro quebrado, a caixa de metal amassada, orgulhosamente exposto na viga principal do tecto do novo quartel, agora nos baixos da Câmara Municipal, com a inscrição: “Recordação do descarrilamento do Expresso Madrid-Vigo, 12 de Outubro de 1930”.

O desempenho dos Bombeiros de Melgaço foi louvado e comentado em todos os jornais de Portugal e Espanha. Aquele povo encheu-se de orgulho, não pelo que fizeram mas porque o mundo tomou consciência que eles existiam. Foi então que o governo de Lisboa atentou que aquela nesga de terra, encravada na Galiza, também era Portugal. Mandaram um instrutor, pessoa competente, ministrar técnicas de salvamento e ataque a sinistros. Mandaram algum material e o povo quotizou-se adquirindo uma grande e pesada bomba, montada sobre rodas de carroça, duas, um cabeçalho de madeira para ser puxado a braços ou por animais, e também por grandes varais que movimentados no ritmo de sobe e desce, provocavam a aspiração da água e a expeliam forte, pelas mangueiras, também tocadas a braços.

Foi um grande orgulho aquele melhoramento que, como reconhecimento e demonstração de fé, baptizaram a bomba, escrevendo em cima da bonita pintura vermelha com frisos pretos e dourados: NOSSA SENHORA DA ORADA, a virgem sua madrinha, padroeira do concelho de Melgaço.

 

Manuel Félix Igrejas

 

Rio de Janeiro

 

Public. em A Voz de Melgaço

 

TEATRO POPULAR - OS SIMPLES

melgaçodomonteàribeira, 05.03.13

 

 

O cinema continuava a insuflar a imaginação da criançada mais pequena na Vila de Melgaço. Ah, as Cruzadas, que delírio chegou a provocar aquele filme. Veio inflamar o ardor patriótico e guerreiro que era insuflado na escola com a descrição das grandes batalhas e heróis da nacionalidade portuguesa. Não havia rapaz que não tivesse uma espada de pau feita por ele ou por um parente mais velho, alguns tinham até escudos feitos de tampas de tambores de gasolina. Combinaram um grande combate entre as hostes do Rei Ricardo Coração de Leão e do sarraceno Saladino, no terreiro (Praça da Republica). O Manelzinho que frequentava a casa do tio Emiliano, na avenida, e este tinha uma pequena oficina na garagem, com algumas marteladas nos dedos por falta de perícia, o rapaz fez a sua espada e um escudo com a tampa de um latão. O escudo ficou vistoso pois pintou-o de azul com um resto de tinta que encontrou, com uma cruz vermelha no centro. Quando mostrou ao Rogério o material bélico que confeccionara, este ficou seduzido. Ele não tinha produzido nada, apenas arranjara uma grande cana que era a sua lança. Convenceu o primo a desistir de ir á guerra, que era muito pequeno, que talvez o pai achasse ruim e ficasse zangado, que do outro lado tinha o Abílio da Zaulinda e outros matulões que o podiam ferir. Bastante frustrado o Manel emprestou o seu armamento ao primo com a recomendação de não o estragar. Era tudo o que o Rogério queria. O exército dos Cruzados organizou-se na avenida, nas portas da vila e em grande algazarra, pela Rua Direita, marchou em direcção ao terreiro onde o exército dos infiéis estava aguardando.

Quando os exércitos se preparavam para arremeter, um em frente do outro, apareceu o António Reis que já estava de soslaio. Era o zelador municipal incumbido de manter a ordem. Naquele tempo não existia em Melgaço guarda republicana nem polícia, nem faziam falta de tão ordeiro que era o povo, só mesmo a canalha promovia zaragatas. O António Reis, do alto da sua autoridade, desbaratou os dois exércitos ameaçando-os com bolos de palmatória na administração.

O Vasco havia regressado. Depois de uma prolongada temporada na penitenciária do Porto voltou à base e agitou a rapaziada da terra. Pelo que contavam os adultos sofrera prisão por questões ideológicas. Desde moço que tinha tendências socialistas e engajara-se em movimentos de oposição ao Estado Novo. De motorista particular de um médico de Monção tornou-se chaufer de praça naquela mesma vila com um automóvel Morris, igual àqueles que a revista Eva sorteava nas edições do Natal. Foi escalado por seus correligionários a transportar o Paiva Couceiro desde a fronteira espanhola até determinado ponto em Portugal, donde comandaria uma revolução. A polícia estava ao par e abortou a intentona cercando o carro no trajecto. Naquele tempo, quem fosse contra o governo era comunista e foi nessa condição que o Vasco foi preso.

A esposa, a Zinda, e os quatro filhos voltaram para Melgaço onde sobreviveram com a ajuda de parentes. Na penitenciária, sofreu maus-tratos e agressões que lhe abalaram a saúde. Em compensação ilustrou seu intelecto. Conviveu na prisão, com grandes intelectuais, personalidades que sofreram perseguição por seus ideais políticos. Foi grande a cultura que o Vasco adquiriu com conhecimentos nas mais variadas áreas da ciência. Cumprida a pena, de volta à terra, convocou rapazes e raparigas para organizarem um teatro.

Grupo Cénico OS SIMPLES de Melgaço, foi o nome que atribuiu à companhia.

O Pandulho, o Henrique da Duartina, o Carriço, o Ná, o Maneco do Simão, o Fernando da Cortiça, o Carlota, o Hilário da Carqueja, a Maria Guisele, a Judite da Rosa Pires, a Mega do Jacob, a Maria Pita, eram os artistas mais destacados. A canalha miúda empolgou-se com a novidade. Os que contavam até dez anos nunca tiveram conhecimento dum movimento artístico desses, na terra. Os mais espertos conseguiam assistir aos ensaios. Os primeiros espectáculos (dois ou três) compunham-se da comédia Zázá e uma revista musical da autoria do Vasco parodiando os acontecimentos e personagens da terra. Para a revista precisavam de cenários. A única pessoa com suposta capacidade para tal era o Jacob. Foi contratado para executar dois cenários. As folhas de papel dos sacos vazios de cimento, abertas e coladas umas nas outras até à extensão necessária com uma camada de cal e cola por cima, ficaram prontas para receber os desenhos e pinturas. Até este ponto e preparar as tintas (anilinas) o Jacob soube fazer, desenhar e pintar não era com ele.

Teve o expediente de reconhecer a habilidade do rapazinho, o Rogério da Lúcia (era conhecido assim mas era filho da Mariquinhas) com pendores para desenho que seria capaz de realizar a obra com a sua supervisão, e foi! Na primeira infância este artista melgacense que ainda vive e executa suas pinturas em Lisboa, realizou-se como cenógrafo. O sucesso foi grande e a garotada achou de fazer os seus teatros. O João da Felícia arregimentou uma turma lá dentro da vila onde sobressaíam, ele, a Mimi e a Esperança do Cataluna. Na Calçada, o Manel Carrapito também organizou o seu teatro com o Neca Pires, o Pachorrego, a Dinora Vilas, ele, Manel e a sobrinha, a Mia do Lucas. No espectáculo do João da Felícia levado a efeito no salão da casa que o Sr. Hilário tinha na rua da Cadeia, esquina com a rua de Baixo, em frente à casa do tio Ilídio e da casa da Rosa Na beiro (mais tarde esse salão foi a sede do Unidos Futebol Clube; pois o dito espectáculo abriu com a seguinte cena: Mimi do Catalunha, sentada numa cadeira com um livro nas mãos, fingindo ler, enquanto o João, em pé, por trás dela, recitava algo. A cena foi demorada e a Mimi, lê que lê, sem se mexer; lá do meio da plateia o Neca Pires gritou: vira a página do livro! O espectáculo organizado pelo Manel Carrapito foi na alfaiataria do pai dele. Os ingressos, nos dois teatros, foi de dois tostões.

 

Manuel Félix Igrejas

 

Rio de Janeiro

 

Public. em A Voz de Melgaço

 

LOJA DO CHOCOLATE

melgaçodomonteàribeira, 05.03.13

 

 

Os assuntos dos jornais que o João Gabriel distribuía vindos pela carreira, do Porto, eram comentados por algumas pessoas grandes, não muitas. Os assinantes eram poucos, comerciantes, alguns funcionários públicos e um ou outro lavrador mais abastado. A rapaziada miúda comentava o que via no cinema e os jogos de futebol do Sport Club Melgacense. O futebol das cidades, aliás os jogadores, eram do conhecimento quando o Sr. Hilário vendia na sua loja a colecção dos caramelos. Os mais velhos que tinham acesso à revista STADIUM que alguém assinava, é que falavam em Futebol Club do Porto e Sporting Club de Portugal. Nicolau e Trindade foram nomes bastante comentados como grandes corredores de bicicletas. Mas o que importava mesmo à miudagem que os deixava assanhados era o que passava no cinema. A tia Lúcia arreliava-se quando os endiabrados sobrinhos resolviam fazer da sua taberna a pradaria onde passavam as caravanas ou se desenrolavam os tiroteios entre o xerife e os ladrões de gado. Os fregueses que chegavam para tomar a sua malguinha de vinho e dar ao cavaco, sem querer ficavam entre o fogo cruzado dos revólveres dos rapazes. Nunca ninguém morreu nessa disputa.

 

Num domingo depois do jantar (almoço) o Augusto do Félix convidou o seu filho tricó para irem à rua Velha ver o movimento. Era grande o aglomerado de rapazes e homens em frente à casa do Pires. Moravam, o Papá Pires com a família na casa alugada do Chico da Serra que ficava entre o quintal das Durães e a casa do Vilas. Era o Pires um dos poucos que possuíam rádio. O Atweret-kent tinha o alto-falante isolado do sintetizador que o Papá Pires colocou na janela virada para a rua. Estava transmitindo algo que muito interessava àquela gente. Transmissão roufenha entrecortada de ruídos que só era percebida com muita atenção, daí que todos estavam silenciosos. O Manelzinho, admirado, perguntou ao pai o que estava acontecendo, o que aqueles rapazes estavam fazendo ali. O Augusto do Félix respondeu que estavam ouvindo o relato do jogo de futebol.

— Quem está jogando? Perguntou o garoto.

— Os de cá contra os espanhóis.

— Os de cá? o nosso Augusto, o Cerdeira e o Joaquim Puleiro estão ali! Os únicos jogadores que ele conhecia eram os da terra, do Sport Club Melgacense. Só mais tarde tomou conhecimento que havia jogadores noutras terras e eram esses que jogavam naquele dia contra os espanhóis. (O Neca Pires, num dos últimos telefonemas que tivemos lembrou que aquele jogo, acabou empatado em 3 a 3).

Raras vezes a brincadeira daqueles dois primos saía do ritmo belicoso. Só quando o Manel aparecia com chocolate é que o Rogério inventava coisas nossas. Todos os dias depois do jantar a tia Linda, a mãe do Manelzinho e irmã daquelas tias, a Lúcia e a Mariquinhas, (tinha outras tias mas moravam longe, nem todas, a tia Teresa morava na calçada perto da Barbosa), ia, então, a tia Linda de sua casa na rua da Calçada, em frente ao Hospital, ao terreno que tinham na Rua do Rio do Porto, perto da casa da tia Lúcia, a que chamavam de horta, levar a lavadura (ou lavagem) ao porco e comida para as galinhas. Com a lata da lavagem equilibrada na cabeça, uma cesta com milho num braço e o Manelzinho na outra mão, todo o dia a Deolinda ia cuidar dos animais que tinha lá na horta.

 

Nesta fase, o garoto gostava de ir com a mãe e a mãe adorava aquele filho tricó que nascera fora de época. Tinha dias que o rapazinho condicionava sua ida se a mãe lhe desse dois tostões, que era quanto custava uma castanha de chocolate que ele comprava na loja do António Fernandes, ao lado da sua casa ou na loja do Sr. Aurélio, ao passar. Todo ufano, ainda de longe, quando avistava o Rogério que estava sempre na rua, gritava anunciando o chocolate. O Rogério, muito esperto, convencia-o a não comer o chocolate por enquanto, primeiro iam brincar de lojinha e, lógico, que o chocolate seria a mercadoria principal. Com outras bugigangas, geralmente pedras ou objectos sem uso de casa e o chocolate. O Rogério montava uma loja, pedacinhos de telha, o dinheiro, comprava tudo o que o outro tinha na mercearia incluindo o chocolate. De tal modo fazia render a brincadeira, devolução de mercadoria, engano no troco e outras coisas, que a mãe voltava e levava o filho que se esquecia do chocolate e o ‘’tratante’’ do Rogério acabava comendo-o sozinho.

 

Manuel Félix Igrejas

 

Rio de Janeiro

 

Public. em A Voz de Melgaço

 

O TI PIRES

melgaçodomonteàribeira, 05.03.13

 

 

Naquele tempo as crianças brincavam em função do que viam no cinema, e o cinema era a principal distracção e fonte de cultura naquela época e naquela terra. Uma vez por semana, ao domingo à noite, quando havia luz ou as fitas chegavam a tempo. Os filmes que chegaram a Melgaço já tinham sido vistos em todo o Portugal há bastante tempo. Diziam que o Pires só alugava fitas velhas que eram mais baratas. Eram frequentes durante a projecção as interrupções, além das necessárias para trocar o rolo a fita rebentava e provocava assobios e sapateados da plateia, principalmente as pessoas da geral. O Salão Pelicano, na sua fase primitiva era dividido em três categorias, a geral do meio do salão até ao palco, a superior do meio para trás e o balcão em cima, uma galeria encostada à parede esquerda e à parede de trás. A geral era de bancos corridos para dez pessoas onde sempre cabia mais alguém, a superior de cadeiras de madeira assim como o balcão. Nas noites de cinema, perto da bilheteira que era interna, juntava-se a maior parte dos rapazes da terra, filhos de gente humilde que não tinha dinheiro para aquela extravagância. Ficavam ali a pedir a uns e a outros que os deixasse entrar com eles ou esperando a distracção do porteiro para escapulir lá para dentro. Essa distracção sempre acontecia quando o pedinte era parente ou amigo, como no caso do Rogério. No verão, tempo de férias, o Dr. Juiz Pinto, conselheiro de Estado, residente em Lisboa, vinha para a sua vivenda na vila de Melgaço. Os rapazes ficavam todos contentes quando o Senhor Doutor Juiz Pinto aparecia. Justava com o Pires um preço especial para deixar entrar toda aquela malta. E lá entravam vinte ou mais rapazes que sentavam no chão do palco, de lado para não atrapalhar a visão da plateia, com a cara quase enfiada no lençol que servia de tela para a projecção do filme. Os filmes sempre causaram furor naquela rapaziada. Dos cinco anos até que começavam a namorar firme, o único tema para conversa ou para brincar era o que aparecia no cinema. Buck Jones, Frede, Ricardito, Tom Mix, Tarzan e as Cruzadas. Ah, as Cruzadas, que delírio provocou na garotada aquele filme. O Rogério assistia ao cinema porque era primo do porteiro da geral, o Toninho do Augusto do Félix e o Manuelzinho, além do irmão do Toninho era filho do bilheteiro o dito Augusto do Félix. O Papá Pires como era conhecido na intimidade, pioneiro do cinema no Alto Minho, era o empresário. Toda a aparelhagem para a projecção dos filmes fora feita por ele, os componentes que ele não podia fazer comprava-os no Porto ou Lisboa e às vezes em segunda mão. Isso tanto no na fase do cinematógrafo mudo como depois no sonoro. Era o Pires, naquela época, o cientista das redondezas. Entendido em tudo e arauto das do progresso. Todas as novidades da técnica e da ciência se instalavam naquela vila através do Pires: automóvel de praça, serviço de alto-falantes, atelier de fotografia, mecânica, o gramofone, gramofomola, solda de oxigénio e rádio. Tinha uma oficina particular com todas as ferramentas existentes na época onde fazia o que lhe viesse à cabeça ou o que fosse necessário para ele ou para os outros... E entre várias invenções teve uma sensacional. O Salão Pelicano, propriedade do Sr. Hilário, comerciante da terra a quem o Pires pagava aluguer pelo uso era pequeno; a máquina de projecção ficava encarrapitada numa cabinezinha no alto do balcão no meio do público e entre outros inconvenientes produzia muito barulho com o seu trabalho. Então o Pires idealizou colocar a máquina num aposento lateral, uma sala onde às vezes se faziam bailes. Foi feito um buraco na parede para deixar passar o facho de luz que incidia num espelho pendurado no tecto que por sua vez projectava-o na tela fazendo um ângulo recto. Com isto acabou o ruído no salão, a projecção ficou melhor pois passou a haver mais distância entre o projector e a tela e os operadores tiveram mais espaço para se movimentarem. O resultado foi esplêndido e elogiado por quem entendia do assunto e Alfredo Chastre passou a ter ingresso grátis pois o espelho com as dimensões ideais era dele e o emprestava nos dias em que havia fita. Como íamos dizendo, o Papá Pires era o empresário e o Augusto do Félix, o alfaiate, seu vizinho e amigo era o bilheteiro e os filhos deste, o Toninho e o Gú, eram os porteiros e em troca dos Serviços prestados graciosamente toda a família entrava de graça no cinema... O Augusto do Félix tinha até um lugar especial entre a geral e a superior com cinco cadeiras que às vezes comportavam mais de dez pessoas. Por isso o Manelzinho, desde que se lembrava de existir sempre assistira ao cinema. Pequeno, de colo, chorava nos filmes do Tarzan quando este lutava com os leões na floresta. E o Manel e o Rogério quando não brincavam de guerra medieval, brincavam de cow-boys. Os revólveres eram as chaves que tiravam das fechaduras, aquelas chaves de ferro forjado grandes e pesadas que se prestavam às mil maravilhas para aquela brincadeira. Tinha a chave da porta dos fundos que devia pesar mais de meio quilo, era a arma do Xerife que invariavelmente era o Rogério. Nesta época deviam ter seis e oito anos, o Manel era o mais novo. A tia Lúcia reclamava quando os via arrebanhar tudo o que era chave e depois da brincadeira deixavam espalhadas em qualquer lugar. O Manel ficava cismado porque a tia se aborrecia se elas não tinham utilidade a não ser para brincar, nunca vira as portas fechadas com a chave, até a porta da rua fechada na hora de deitar apenas se fazia com um trinco, a tranca vivia ao lado também sem utilidade. Coisas de gente grande. Se calhar noutras épocas havia muitos ladrões.

 

Manuel Félix Igrejas

 

Rio de Janeiro

 

Public. em A Voz de Melgaço 

 

ESPADAS, ESCUDOS E CAPOEIRAS

melgaçodomonteàribeira, 05.03.13

 

Desenho de Manuel Igrejas

 

 

A batalha estava acirrada. Naquele momento era imprevisível indicar um vencedor. A luta era esforçada pois os contendores aplicavam todas as suas energias. Berravam, barafustavam, bufavam, suavam, cabelos desgrenhados e algumas mãos roxas das pauladas que escapavam ao controle.

Em outras batalhas o desfecho fora fácil, resolvido na primeira investida.

Sempre a turma que assaltava o castelo vencia, isso porque, na divisão de forças, propositadamente, o Rogério deixava os maiores do lado dele, de fora.

Mas desta vez novos elementos tinham aderido à guerra e as forças ficaram equilibradas. Também o armamento fora reforçado, além dos costumeiros cabos de vassoura que representavam lanças, das ripas de madeira feitas espadas, agora tinham a pesada tranca de madeira da porta da rua da taberna da tia Lúcia, mais algumas achas de lenha que o Miro tinha do outro lado do muro para o lume do forno de cozer pão.

O assalto ao castelo estava empolgante. Trancada para cá, estocada para lá, pragas e nomeadas de parte a parte, choramingos dos mais pequenos que não estavam aguentando mais o esforço e os arranhões…

— Agora! Empurra com força que eles já estão podriqueiros! Comandava o Rogério. Mas os defensores, fazendo das tripas coração, aguentavam firmes aquela investida. Ainda não foi daquela vez.

Além dos gritos dos rapazes, o cacarejo das galinhas apavoradas que esvoaçavam descontroladas de um lado para o outro por cima dos miúdos, as batidas no portão do castelo, tornavam ensurdecedor e horripilante o ambiente daquela contenda a ponto da tia Mariquinhas, a mãe do Rogério, lá da cozinha, gritar a plenos pulmões:

— Parai com isso canalha! Se não acabar essa gritaria, mando todos embora! Ouviste Rogério?

— Raios de canalha que vem para aqui botar a gente tola!.. acrescentava a tia Lúcia resmungando.

Algumas galinhas, de tão apavoradas, já tinham conseguido voar por cima da rede de arame para o quintal do forno. O galo, um tremendo pedrês, de peito estufado e penas eriçadas, olhos esbugalhados e esgazeados, pulava de lado, em passos miudinhos, para cá e para lá em cima do muro, esperando a oportunidade de desforra.

E a guerra continuava…

Do lado de dentro, segurando a porta do galinheiro, uma grade de madeira de pouco mais de um metro de largura por dois metros de altura, fechava a passagem entre o muro que dividia os quintais e a parede da casa. Tentando evitar a tomada do castelo pelos invasores estavam os mouros: o Manel Carrapito, o Nandinho da Pentelha, o Toninho da Serra e o João da Felícia. Este o mais velho e o mais parrudo de todos que com a tranca da tia Lúcia empancada entre a grade da porta e as pedras do muro, sustentava sozinho o assédio dos inimigos. Aos outros três competia evitar que os assaltantes pulassem por cima da porta. Pelo lado da rede, já se havia combinado que ninguém podia pular.

Do lado de fora, representando os cruzados do Rei Ricardo Coração de Leão e os seus cavaleiros da Távola redonda, estavam: o Rogério Mijanços, o Tónio da Isolina, o Toninho Perrim e o Fernando Trauliteiro.

Há mais de meia hora que aquela algazarra ensurdecedora aborrecia toda a vizinhança. Agora era Pentelha que morava no andar de cima, que vinha à janela barafustar contra a canalha. Até as mulheres que no outro lado do muro, esperando a saída do pão, começaram a reclamar da gritaria que lhes atrapalhava a conversa. Eram: a tia Maria Vilas, a Ana Toupeira, a Maria Patanéca, a Felícia do Ferrador, a Maria Mantana, a Laurinda Cascalheira e a Isabel Caçolas. A Laurinda, além de reclamar, vaticinava:

— Raios parta o diabo! Parece que esses rapazes estão adivinhando guerra.

Naquela época, a única guerra de que se tinha conhecimento, lá longe que não preocupava ninguém, era a guerra na Abissínia. Quando era comentada faziam-no com certa simpatia ao Mussolini que iria conquistar aquelas terras dos Négus para as civilizar. Ali ao lado, Espanha, a situação também não estava muito católica, dizia-se à boca pequena que uma guerra podia estourar.

A tia Lúcia não suportou mais tanta zaragata e veio de lá disposta a acabar com a guerra. Pegou o Rogério pela orelha e ralhou exaltada com os outros, expulsando-os com ameaças de tranca.

Ficaram só os sobrinhos da tia Lúcia, o Rogério que morava ali mesmo e o Manelzinho que aguardava que a mãe voltasse da horta e o levasse para casa.

Ainda ofegantes, sentados num degrau da escada de pedra que subia para os fundos da casa da Pentelha, discutiam os lances e as pauladas que acertaram alguns deles. Era convencionada que não se podia ferir ninguém, as batidas e estocadas eram fingidas a não ser quando propositadamente se batia na porta ou no muro para fazer barulho e dar certa veracidade, mas no ânimo da brincadeira, na agitação da refrega, esquecia-se o combinado e quem apanhava procurava retrucar e daí resultavam alguns arranhões e galos na cabeça. Os dois primos, analisando aquela batalha, chegaram a uma conclusão surpreendente: pela primeira vez entre eles, uma guerra acabava empatada.

Após tanto esforço, como é natural entre as crianças, estavam com vontade de mijar. O chão era de terra e faziam ali mesmo, mas o Rogério, talvez para de alguma forma se tornar vencedor, deu alguns passos e encostando-se à porta da grade do galinheiro e pelo meio dos sarrafos resolveu fazer lá para dentro, o castelo que daquela vez não conseguira tomar; foi a vez do galo! Vendo aquela minhoca dependurada esguichando, não teve duvida: veio de lá correndo desabridamente e deu a maior bicada na piroca do Rogério.

Desta vez a tia Mariquinhas, a tia Lúcia e outras pessoas que estavam na taberna, vieram correndo apavoradas com aquele guincho que mais parecia um ganido, que o Rogério soltou, bem diferente dos gritos da guerra. Todos caíram na gargalhada quando verificaram o que sucedera.

Botaram tintura de iodo que ardia muito e aumentou o berreiro do agredido. Por uma semana, o Rogério ficou com o instrumento inchado e de cor castanha.

 

Manuel Félix Igrejas

Rio de Janeiro

 

Public. em A Voz de Melgaço