Desenho de Manuel Igrejas
A batalha estava acirrada. Naquele momento era imprevisível indicar um vencedor. A luta era esforçada pois os contendores aplicavam todas as suas energias. Berravam, barafustavam, bufavam, suavam, cabelos desgrenhados e algumas mãos roxas das pauladas que escapavam ao controle.
Em outras batalhas o desfecho fora fácil, resolvido na primeira investida.
Sempre a turma que assaltava o castelo vencia, isso porque, na divisão de forças, propositadamente, o Rogério deixava os maiores do lado dele, de fora.
Mas desta vez novos elementos tinham aderido à guerra e as forças ficaram equilibradas. Também o armamento fora reforçado, além dos costumeiros cabos de vassoura que representavam lanças, das ripas de madeira feitas espadas, agora tinham a pesada tranca de madeira da porta da rua da taberna da tia Lúcia, mais algumas achas de lenha que o Miro tinha do outro lado do muro para o lume do forno de cozer pão.
O assalto ao castelo estava empolgante. Trancada para cá, estocada para lá, pragas e nomeadas de parte a parte, choramingos dos mais pequenos que não estavam aguentando mais o esforço e os arranhões…
— Agora! Empurra com força que eles já estão podriqueiros! Comandava o Rogério. Mas os defensores, fazendo das tripas coração, aguentavam firmes aquela investida. Ainda não foi daquela vez.
Além dos gritos dos rapazes, o cacarejo das galinhas apavoradas que esvoaçavam descontroladas de um lado para o outro por cima dos miúdos, as batidas no portão do castelo, tornavam ensurdecedor e horripilante o ambiente daquela contenda a ponto da tia Mariquinhas, a mãe do Rogério, lá da cozinha, gritar a plenos pulmões:
— Parai com isso canalha! Se não acabar essa gritaria, mando todos embora! Ouviste Rogério?
— Raios de canalha que vem para aqui botar a gente tola!.. acrescentava a tia Lúcia resmungando.
Algumas galinhas, de tão apavoradas, já tinham conseguido voar por cima da rede de arame para o quintal do forno. O galo, um tremendo pedrês, de peito estufado e penas eriçadas, olhos esbugalhados e esgazeados, pulava de lado, em passos miudinhos, para cá e para lá em cima do muro, esperando a oportunidade de desforra.
E a guerra continuava…
Do lado de dentro, segurando a porta do galinheiro, uma grade de madeira de pouco mais de um metro de largura por dois metros de altura, fechava a passagem entre o muro que dividia os quintais e a parede da casa. Tentando evitar a tomada do castelo pelos invasores estavam os mouros: o Manel Carrapito, o Nandinho da Pentelha, o Toninho da Serra e o João da Felícia. Este o mais velho e o mais parrudo de todos que com a tranca da tia Lúcia empancada entre a grade da porta e as pedras do muro, sustentava sozinho o assédio dos inimigos. Aos outros três competia evitar que os assaltantes pulassem por cima da porta. Pelo lado da rede, já se havia combinado que ninguém podia pular.
Do lado de fora, representando os cruzados do Rei Ricardo Coração de Leão e os seus cavaleiros da Távola redonda, estavam: o Rogério Mijanços, o Tónio da Isolina, o Toninho Perrim e o Fernando Trauliteiro.
Há mais de meia hora que aquela algazarra ensurdecedora aborrecia toda a vizinhança. Agora era Pentelha que morava no andar de cima, que vinha à janela barafustar contra a canalha. Até as mulheres que no outro lado do muro, esperando a saída do pão, começaram a reclamar da gritaria que lhes atrapalhava a conversa. Eram: a tia Maria Vilas, a Ana Toupeira, a Maria Patanéca, a Felícia do Ferrador, a Maria Mantana, a Laurinda Cascalheira e a Isabel Caçolas. A Laurinda, além de reclamar, vaticinava:
— Raios parta o diabo! Parece que esses rapazes estão adivinhando guerra.
Naquela época, a única guerra de que se tinha conhecimento, lá longe que não preocupava ninguém, era a guerra na Abissínia. Quando era comentada faziam-no com certa simpatia ao Mussolini que iria conquistar aquelas terras dos Négus para as civilizar. Ali ao lado, Espanha, a situação também não estava muito católica, dizia-se à boca pequena que uma guerra podia estourar.
A tia Lúcia não suportou mais tanta zaragata e veio de lá disposta a acabar com a guerra. Pegou o Rogério pela orelha e ralhou exaltada com os outros, expulsando-os com ameaças de tranca.
Ficaram só os sobrinhos da tia Lúcia, o Rogério que morava ali mesmo e o Manelzinho que aguardava que a mãe voltasse da horta e o levasse para casa.
Ainda ofegantes, sentados num degrau da escada de pedra que subia para os fundos da casa da Pentelha, discutiam os lances e as pauladas que acertaram alguns deles. Era convencionada que não se podia ferir ninguém, as batidas e estocadas eram fingidas a não ser quando propositadamente se batia na porta ou no muro para fazer barulho e dar certa veracidade, mas no ânimo da brincadeira, na agitação da refrega, esquecia-se o combinado e quem apanhava procurava retrucar e daí resultavam alguns arranhões e galos na cabeça. Os dois primos, analisando aquela batalha, chegaram a uma conclusão surpreendente: pela primeira vez entre eles, uma guerra acabava empatada.
Após tanto esforço, como é natural entre as crianças, estavam com vontade de mijar. O chão era de terra e faziam ali mesmo, mas o Rogério, talvez para de alguma forma se tornar vencedor, deu alguns passos e encostando-se à porta da grade do galinheiro e pelo meio dos sarrafos resolveu fazer lá para dentro, o castelo que daquela vez não conseguira tomar; foi a vez do galo! Vendo aquela minhoca dependurada esguichando, não teve duvida: veio de lá correndo desabridamente e deu a maior bicada na piroca do Rogério.
Desta vez a tia Mariquinhas, a tia Lúcia e outras pessoas que estavam na taberna, vieram correndo apavoradas com aquele guincho que mais parecia um ganido, que o Rogério soltou, bem diferente dos gritos da guerra. Todos caíram na gargalhada quando verificaram o que sucedera.
Botaram tintura de iodo que ardia muito e aumentou o berreiro do agredido. Por uma semana, o Rogério ficou com o instrumento inchado e de cor castanha.
Manuel Félix Igrejas
Rio de Janeiro
Public. em A Voz de Melgaço