LADINA III
Mas a história vai ser minha. E foi. Ai, se foi!
A minha Ladina retirou-se para a serra, não longe da vila. Casa recatada, marido e esposa com bens terrenos e outros em papel de crédito; algumas (muitas) notas no banco. Labuta, de sol a sol, como criada de família, que para os trabalhos caseiros outros haviam.
Nos campos e pinhais, gente da aldeia deixava o suor na camisa, mesmo em tempo de neve, para que o sustento da casa não faltasse.
E ela! Bela, mulher de cuidados extremos, não parava. De vela acesa em cada canto, à braseira na sala e no quarto do casal, os lençóis de linho e mantas de grossa estopa, tudo era um brinco. Raio de sol fugidio que entrasse em casa, grão de pó não se via.
— Tudo tão limpo! Parece que foi Deus que a enviou. – Dizia a esposa para o marido.
— Realmente. Comparada com as moças da aldeia que cá trabalham parece um anjo. A água sempre límpida, nem um grão de pó onde quer que entre”. – Retorquia ele.
Veio a Primavera e os fenos cresceram. Uns serviam para o gado, outros, no barraco encontraram lugar e outros ainda de leito serviram a amo e criada. Quanto mais feno cortaram, mais o desejo e luxúria em casa entraram.
— Blasfémia – gritaria quem soubesse o que se passava no quarto do senhor entre os lençóis que a criada alinhava. De um lado, uns olhos de amor, de prazer … este corpo, estas mamas … o rei deste corpo sou eu. De outro, uns olhos de ouro, ouro de lei a luzirem.
— És igual ao outro, mas passo de criada a senhora e desta vez não me apanham.
Depois do jantar, junto ao oratório familiar, um – Deus nos guarde, até amanhã – um olhar piedoso e a prece ainda nos lábios, entre olhares de desejo e pecado. A senhora retira-se para o seu quarto. Se eu pudesse vê-los nesses momentos! … Talvez me atirasse de cabeça para a polícia e esta história acabava aqui. Talvez, eu … mas o certo é que nada vi.
E aquela a quem os criados conheceram como senhora passou a ser o anjo da aldeia. Aquele rosto, naquele corpo magro, banhado pela luz do fim do dia, antes que o sol se ponha, realçava a palidez de tal forma que já se sussurrava ser de prata. Só mais tarde descobri que era de morte.
Após a oração nocturna, um chá para descansar. Se calhar cidreira … tília de certeza que não havia na aldeia, mas outras ervas não faltavam. Nem o vão de escada, dormitório da criada, quando os calores apertam e a senhora dorme …
— Desgraçaste-me … e agora?
Tão grande foi o espanto que seu amo e senhor não abriu a boca. Ou por outra, não a fechou que aberta estava ela.
— Esqueces que és casado? Que fizeste de mim demónio? Para onde vou viver com um filho teu nos braços, ou achas que ela não sabe? – Quase sem respirar continuou a metralhar, não dando tempo a que ele reagisse:
— Julga-la cega, por ventura? Olha-te ao espelho. Quando vês as minhas mamas és pior que o cobridor da quinta. E ela sabe-o.
— Que posso fazer, sabes que te quero, que me importa a mim ela?
— Acaba-se com ela … Santa ignorância …
— És capaz disso?
— Fico sempre contigo na cama grande? Vou ser a mãe dos teus filhos?
— Fala baixo, pode saber mas não ouvir.
Do pote que aquecia na lareira, tirou a água para o chá nocturno da senhora.
— Leva, leva. Ela agradece e dorme mais descansada.
Durante semanas o chá passou da mão da criada para as do patrão com um beijo fugidio, até aos lábios da cada vez mais branca senhora.
(continua)