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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

A JAZIDA DAS CARVALHAS, MELGAÇO

melgaçodomonteàribeira, 23.09.23

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escavações arqueológicas

 

OCUPAÇÕES PLEISTOCÉNICAS DA MARGEM ESQUERDA DO BAIXO MINHO (MIÑO/MINHO 2)

OBJETIVOS E PRIMEIROS RESULTADOS DE UM PROJETO TRANSFRONTEIRIÇO

 

(…) No concelho de Melgaço, os trabalhos até agora realizados no âmbito do projeto Miño/Minho 2, concentraram-se essencialmente na chamada Veiga de Remoães. Para a sua concretização contamos também com o inexcedível apoio do respetivo Município e da União de Freguesias de Prado e Remoães.

As sondagens efetuadas em 2016 na jazida das Carvalhas, parcialmente alargadas em 2017, permitiram detetar numa área relativamente pequena diferentes indústrias líticas de cronologia paleolítica integradas em distintos contextos sedimentares. Basicamente foi possível identificar a presença de uma indústria acheulense num depósito fluvial associado à colmatação de um antigo canal do rio Minho, que suporta a hipótese da existência de um paleomeandro no local. Lateralmente, este terraço fluvial, que se eleva entre os 10 m e 15 m sobre o leito adjacente do rio surge interestratificado com depósitos de vertente que integram vestígios arqueológicos similares e que se desenvolvem na encosta que delimita a poente a plataforma que prolonga o Monte do Prado. Na margem oposta, o canal é delimitado por uma plataforma granítica em cuja superfície se identificaram depósitos residuais de inundação a que se associa uma indústria lítica em que se destaca a presença mais significativa de produtos de debitagem. Um pouco mais para sul, numa sondagem aberta nas imediações da Quinta da Veiga foi ainda possível recolher vestígios de uma indústria acheulense com peças talhadas ligeiramente eolizadas, cujo real contexto sedimentar ainda se encontra por estabelecer.

No concelho de Melgaço assinala-se ainda a existência de uma outra jazida acheulense, localizada na vertente meridional do Monte Crasto, na freguesia de Penso, a uma altitude próxima dos 230 m. Os materiais foram aí recolhidos pelo Sr. José Cardoso, morador na freguesia, quando se procedeu no local a trabalhos de revolvimento do subsolo saibroso para a criação de uma pequena área de lazer. As peças, com as arestas de talhe muito boleadas, foram-nos cedidas para estudo pelo seu descobridor, estando também prevista a realização no local de sondagens que permitam definir melhor as condições de jazida em que se encontravam integradas.

Assinala-se ainda que no decurso da campanha de trabalhos de 2016 se recolheram amostras de sedimentos na jazida de Pereira 2, em Monção, e na jazida das Carvalhas, em Melgaço, para a obtenção de datações por OSL, cujos resultados se aguardam. As amostras foram recolhidas por Lee Arnold e Martina Demuro, da Universidade de Adelaide, na Austrália, que irão proceder ao seu processamento laboratorial no âmbito de um projeto de datações em jazidas pleistocénicas ibéricas.

Num primeiro e preliminar balanço dos trabalhos realizados ao longo dos dois primeiros anos de desenvolvimento do projeto Miño/Minho 2, pode afirmar-se que os dados coligidos testemunham claramente a importância arqueológica da margem esquerda para o estudo do Paleolítico do Baixo Minho, justificando plenamente o objetivo originalmente delineado de se vir a desenvolver tal estudo associando de forma integrada ambas as margens.

Mesmo se os resultados obtidos têm levado a uma reprogramação dos trabalhos, concentrando-se esforços nas intervenções desenvolvidas nalgumas jazidas localizadas numa pequena área repartida entre os concelhos de Melgaço e Monção, o número de jazidas já identificadas e as problemáticas a elas associadas permitem reformular de forma inovadora o nosso conhecimento sobre o Paleolítico da região, sendo também certo que o estudo das coleções de materiais líticos talhados entretanto recolhidos e que se encontra já a ser desenvolvido não deixará de reforçar tal situação.

 

Eduardo Mendez-Quintas

Universidade de Vigo

AMORES EM TEMPO DE GUERRA 3

melgaçodomonteàribeira, 16.09.23

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 delfina e o filho de eudosia, paul féron

Sem possibilidade de apresentar números exatos, todos dizem que por Castro passaram centenas de refugiados. “Algo que foi possível porque a raia seca é muito fácil de ultrapassar”, prossegue Américo Rodrigues. “Nos primeiros tempos da guerra, os polícias portugueses nem sabiam bem o que fazer. É que os que fugiam eram inocentes. Vinham para não ter de morrer a combater.”

Nesse espírito de solidariedade, revela o investigador, muitos castrejos foram presos por acolher refugiados. “Se o conflito fosse do lado de lá, nós também seríamos ajudados por eles”, defende, argumentando que as redes de amizades dos negócios clandestinos foram uma alavanca para os que fugiam. “O contrabando aqui era uma forma de se ganhar a vida e de sobrevivência.” Contrabandeava-se azeite, café e bens de primeira necessidade, “não era droga”, remata Américo.

NOVE ANOS SEM VER O PAI

Matavam-nos a tiro. Mataram tantos, que ela bem ouviu. Ela e muitos dos antigos de Castro Laboreiro. Por vezes, à noite, as balas que furavam os corpos ecoavam no silêncio. Ainda hoje o fazem, mas só na memória dos poucos que sobram daquele tempo. “Matavam-nos pelos montes fora.” Aos “rojos”, os que não alinhavam no regime fascista de Franco. “Ainda lhes posso mostrar por onde fugiam”, diz, apontando para as montanhas que a rodeiam.

Lucinda Alves tem o sobrenome da mãe portuguesa, mas tem sangue espanhol a correr-lhe nas veias e nas palavras. “Já a minha avó me dizia que esta aldeia foi montada por refugiados”. Vestida de negro, abre os braços ao vento, ali no alto, ao lado do cemitério, depois de ter mostrado a campa dos pais, um refugiado da Guerra Civil e uma lavradora castreja.

“Sou filha da guerra. Não fosse ela, eu não estaria aqui.” Sendo que esse “aqui” é um lugar chamado Além, algures no Ribeiro de Cima, em Castro Laboreiro. Uma das terras que durante o conflito da vizinha Espanha mais terá acolhido refugiados.

A guerra, garante, está marcada no coração das pessoas. “Deus nos livre dela. Eu nem gosto de falar sobre isso. Mas deixem-me contar esta que, para mim, é a história mais importante.” Bate com a mão no peito e pede novamente. Na verdade, não pede – suplica, já com o choro a embargar-lhe a voz. Tinha ela uns sete anos quando ouviu a avó gritar o nome dos dois filhos. “Ai meu Jaime, ai meu Manel!” Um chamamento desesperado que ainda parece ouvir aos 78 anos. “Deixem-me contar, que eu era canalha, mas ainda tenho isto aqui ‘atrancado’ no peito. Choro porque me lembro. Eu que sou mãe de três só posso imaginar o que ela sofreu. Já as tenho tido boas, mas nenhuma foi como aquela por que passou a minha avó, que não sabia dos filhos fugidos.”

Quando a guerra estalou em Espanha, Manuel Vasquez, pai de Lucinda, escapou para o Além, que fica depois de Rio de Ossos e antes de Terços. Manuel era de Entrimo, um município raiano da província de Ourense. E era contra Franco. “Se o apanhavam matavam-no.” Então fugiu para Portugal e o irmão Jaime para França. Manuel escondia-se onde podia, nas casas dos amigos portugueses. E corria para os montes quando recebia avisos de que as autoridades portuguesas andavam à caça de fugitivos espanhóis.

Entretanto, ele arranjou namoro com a minha mãe, uma mulher divorciada. Não sei como aconteceu porque não havia grandes explicações”, aponta Lucinda. O certo é que Ermezinda, que Lucinda descreve como “um pedaço de uma mulher”, andava “às escondidas” porque o “Manuel não podia estar em sítio fixo, não fossem os fiscais andarem por aí à procura de refugiados.” Mesmo que a maioria do povo os encobrisse, “porque a gente era humana”, todo o cuidado era pouco. Até porque entre eles havia bufos. Poucos, mas existiam.

Ermezinda e Manuel tiveram duas meninas. O irmão de Lucinda, a mais nova, morreu há pouco mais de um ano. De todo o modo, é ela que se lembra de “mais cousas”. Quando o pai emigrou para França ela tinha sete anos; a necessidade levou a que entrasse clandestino em França, onde a grande procura de mão-de-obra na construção civil proporcionava um salário fixo. Eram 850 escudos por mês, enviado pelo correio.

Lucinda foi quem “deu fôlego” à mãe até o pai regressar, tinha ela 16 anos e estava prestes a casar. No regresso, Manuel foi apanhado e ainda passou uns meses na cadeia de Ourense, até que a madrinha, com contactos, o conseguiu tirar de lá. “O meu pai tinha de tudo. A minha mãe gostava dele, embora ele por vezes bebesse uma pinguinha a mais. Se calhar pelos passados que teve, porque não foi fácil.”

Manuel morreu em 2002, a mãe em 2005. “Tenho aí um bocadinho de terreno. Uma horta que ando a trabalhar. Eu nem sou muito de falar. Mas não hay dia nem noite que esqueça o meu passado. Está todo aqui”, aponta para a cabeça. E, devagarinho, pousa a mão sobre o peito.

 

JN – NOTÍCIAS MAGAZINE

 

Texto de Filomena Abreu

Fotos de Artur Machado/Global Imagens

19/9/2018

AMORES EM TEMPO DE GUERRA 2

melgaçodomonteàribeira, 09.09.23

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 casa do rodeiro, castro laboreiro

Delfina soube que os amigos estavam a salvo, mas passaram mais de 50 anos até voltar a ter notícias de Eudosia. “Um dia ela escreveu ao nosso padre Aníbal. Foi uma alegria.” Disse-lhe o clérigo. “Tive uma carta da professora que esteve com os seus pais.” Apressou-se a pedir o endereço e “no dia seguinte, no monte com o gado”, agarrou “num papel de 25 linhas e, em cima de uma das vacas”, escreveu-lhe “a dizer que era viva”.

Ainda se encontraram três vezes depois disso. Eudosia morreu em 2004, mas a história da professorinha é conhecida em cada canto de Castro. “O polícia que a prendeu, e que arranjou tudo para os meter no comboio e no barco, chegou a dizer por aqui: “Aquela gentinha, se eu tenho dado com eles antes, não tinha sofrido tanto”. E verdade se diga, os que vinham não tinham crime, fugiam das armas. Fugiram porque os tiravam de casa durante a noite para os matar. A guerra de Espanha foi a coisa mais escandalosa do mundo inteiro”, lamenta Delfina.

O conflito foi sangrento. Começou em 1936, quando os militares espanhóis se revoltaram contra o governo republicano, dando o primeiro tiro de uma guerra civil que se estendeu até 1939. Apoiantes de esquerda e de direita digladiaram-se durante vários meses nas ruas. De um lado posicionaram-se as forças do nacionalismo e do fascismo, aliadas ao Exército, e à Igreja. Do outro estava a Frente Popular, que formava o Governo Republicano, representando os sindicatos, os partidos de esquerda e aos partidários da democracia.

A Guerra Civil Espanhola terminou com a vitória dos nacionalistas ou do Movimento Nacional. A República instaurada em 1931 foi esmagada e Francisco Franco passou a governar. Iniciou o franquismo, que caiu anos depois da morte do seu mentor.

Foram 39 anos de ditadura. De repressão. De gente a fugir à fome, à guerra. A saltar as fronteiras, de Norte a Sul de Portugal. E a serem acolhidos do lado de cá. À revelia de Salazar que usou as forças que tinha para apanhar e expulsar os fugidos para Espanha. Para a morte.

A população de Castro Laboreiro teve um papel fundamental na sobrevivência de grande parte dos refugiados. Os castrejos esconderam os galegos em nome de uma solidariedade fraterna sem fim. Nos relatórios da Guarda Nacional Republicana e da PVDE foi com frequência referido que havia “na Serra de Castro Laboreiro e na província da Peneda grande número de refugiados espanhóis”, sobre os quais eram aguardadas informações do paradeiro certo “para proceder às respetivas capturas”.

No entanto, as próprias autoridades reconheciam a dificuldade da missão. Devido às características do terreno mas também à proteção que muitos castrejos davam aos fugidos. Um relatório da PVDE de 27 de setembro de 1937 refere que “nas regiões montanhosas de Castro Laboreiro encontram-se escondidos nas furnas, em plena montanha, desde princípio da guerra em Espanha, bastantes espanhóis. Esta polícia tem feito algumas sortidas que, dada a configuração do terreno e uma frente de 50 quilómetros, têm sido pouco profícuas.

E em 1940, um comandante da GNR destacado para a região de Castro para acabar com a presença mais do que evidente dos refugiados, queixava-se aos seus superiores da empreitada que lhe tinha sido confiada. “Uma batida completa à serra, dada a imensidade desta, exigiria milhares de homens e, em virtude da carência de estradas e caminhos capazes e da falta de recursos, julgo-a impraticável. Enquanto aquela região, pela ausência quase completa de vias de comunicação, estiver, como está, isolada do resto do País, será sempre um possível refúgio (…). A população vive a vida mais miserável que é possível imaginar-se.”

O TIO GALEGO

Maria de Fátima Afonso nasceu depois destes relatórios mas ainda testemunhou a humildade e a pobreza do lugar. A professora Fátima, como é conhecida, mora há 63 anos na Várzea Travessa, em Castro Laboreiro. Apesar da tenra idade, recorda a existência de um tio com sotaque diferente que, só mais tarde soube, se refugiou em Portugal fugido da Guerra Civil espanhola. Era o tio Galego. Casado com a tia Rosa Pintora.

Por muito que puxe pela cabeça só se lembra do sobrenome, Ojea Blanco. “Sentava-me à beira dele enquanto ele fazia os cestos de vime, e a minha tia penteava-me com água e açúcar, para me segurar o cabelo. Viveram ali bastantes anos sem serem incomodados. Trabalhavam na agricultura, nos muitos terrenos que possuíam. “Tiveram dois filhos, com nomes espanhóis. A rapariga era Gomercinda, o rapaz Juanito.” Quando em Espanha “a coisa amainou, eles mudaram-se para Ginco do Lima, o local de onde ele era natural”. Como se conheceram ninguém sabe. Mas era natural. Viviam próximo da raia. Eram vizinhos.

A castreja não tem memória de algum dia a polícia ter andado na Várzea. “Aqui nunca veio ninguém à procura dele. Não que eu saiba.” Se tal acontecesse, o fim da história é conhecido. “Claro que a polícia andava no encalço deles, mas se passassem aqui e perguntassem se tínhamos visto alguém, a gente dizia que não e pronto”.

O tio Galego gozava de boa reputação. “Era muito boa pessoa, amigo do lugar e as pessoas gostavam dele”. O instinto protetor parecia gravado na alma de Castro. “Aqui costumava dizer-se: um por todos e todos por um. Se houvesse algum problema, a vizinhança acudia toda. Era um meio comunitário, era a civilização castreja”. Um meio habituado aos galegos e pronto a fazer frente a Franco. “Aqui houve muitos casos de espanhóis que se juntaram com portuguesas. Depois foram para Espanha. E a minha tia também foi, mas já os filhos eram crescidos. Aqui o povo protegia sem medo. Eles atravessavam e refugiavam-se aqui, por ser um sítio muito pacato. Não havia gente má, também não se saía tanto. Vivia-se naquele pedacinho”.

Além do mais, e fazendo referência ao relatório da PVDE citado há pouco, era do conhecimento comum que por ali “havia polícias bons e maus”. Todavia, os “que se deixavam comprar eram a maioria”, confirma a professora Fátima. “Eles sabiam bem que as pessoas aqui iam buscar farinha, azeite e tudo (à Galiza), porque em Castro não tinha nada.” E as autoridades também fechavam os olhos aos galegos. “Os espanhóis têm esse sentimento de gratidão por causa do acolhimento. Ficamos sempre com esta amizade.” Mais: “Até se diz que somos irmãos.”

“Onde há mulheres e homens acontecem histórias de amor e há descendência, ainda para mais entre povos que conviviam diariamente e que tanto tinham em comum”, explica Américo Rodrigues, do Núcleo de Estudos e Pesquisa dos Montes Laboreiro. “Por isso, para nós, a raia é um espaço de liberdade. A guerra só aproximou mais castrejos e galegos”.

(continua)

AMORES EM TEMPO DE GUERRA 1

melgaçodomonteàribeira, 02.09.23

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 eudosia

 

AMORES EM TEMPO DE GUERRA

 

Texto: FILOMENA ABREU

Fotos: ARTUR MACHADO/GLOBAL IMAGENS

19/9/2018

 

Dizem que o Rodeiro, em Castro Laboreiro, é o fim do mundo. Quando acaba, acaba mesmo. Não há mais estrada. Dalí vê-se o planalto. A raia seca. É Portugal do lado de cá e Espanha do lado de lá, mas é terreno com terreno. Caminhos esbatidos para os que há séculos ali convivem. Foi por esses marcos, que não falam, que passaram contrabandistas e refugiados.

Depois da fronteira encontraram o amor, essa casa onde muitos se aninharam nos tempos da Guerra Civil espanhola. Mergulharam a cabeça da mais nova nas frias águas do rio. “Onde estão escondidos os galegos?” Nada. As agressões continuaram em casa. Pontapearam e bateram em António Rodrigues Rendeiro, o pai da pequena. “Onde esconderam os galegos?” Nada. A tortura já durava a algum tempo e continuaria, mas Eudosia Lorenzo Diz não suportava mais. Saiu do fosso cavado na pedra, sob a lareira da cozinha, onde ela e os pais se tinham refugiado, ali no Rodeiro. “Não batam mais no homem, que ele não tem culpa.”

Os métodos violentos dos agentes da PVDE – Polícia de Vigilância e Defesa do Estado – não constam do relatório de 17 de maio de 1938, o dia em que fugitivos espanhóis foram encontrados. Tampouco mostram o deslumbramento de João Guilherme da Cunha, o chefe do posto de Melgaço que, naquela data, tinha ido com mais seis guardas à casa dos Rendeiros com o intuito de capturar pai, mãe e filha. No caminho que fizeram a pé, pelo monte, do Rodeiro até à prisão em Melgaço, Eudosia contou ao seu carrasco a história que os tinha levado ali. Tudo tinha começado dois anos antes.

Agustin Lorenzo Puga era capador na zona de Grou e na serra portuguesa. Vivia em Fradalvite, Ourense, e era conhecido como o Masidario. Basilisa Diz Gonzales, a mulher, era lavradora. Tinham três filhos: dois rapazes e a jovem professora Eudosia.

Numa noite de junho de 1936, um mês antes do golpe de Estado falhado contra o governo da Segunda República espanhola que conduziu à Guerra Civil, o Masidario regressava a casa no seu cavalo quando foi vítima de uma tentativa de extorsão.

Armado livrou-se dos agressores disparando para o ar.

Na sequência desse acontecimento, Agustin é obrigado a entregar a pistola às autoridades municipais. Dias depois recebe em casa uma carta dos falangistas. Queriam que pagasse 50 000 pesetas, um imposto revolucionário, caso contrário ele e a família iriam sofrer. A decisão foi tomada na hora: cada um preparou uma mochila com a roupa indispensável e saíram separadamente de casa para não levantar suspeitas. O destino era a franja portuguesa de Castro Laboreiro, onde o capador tinha amigos, acumulados ao longo dos muitos anos de ofício.

Entraram clandestinamente, fugidos dos inimigos franquistas. E uma vez cá passam a ser procurados também pelas autoridades portuguesas. Os irmãos de Eudosia acabam por regressar a Espanha algum tempo depois. A professora fica com os pais. Durante dois anos vivem escondidos, com a ajuda de algumas famílias castrejas, entre as brandas e inverneiras da Serra da Peneda, os núcleos habitacionais temporários utilizados pela povoação para que o gado tivesse sempre pasto fresco, verão e inverno. Sobreviveram misturando-se. Elas disfarçadas de castrejas, com capas negras como as moças da terra, ninguém as reconhecia, nem mesmo a guarda.

Aproveitando a calmaria, Eudosia começou a ensinar clandestinamente as gentes a ler, a escrever, a fazer contas. Delfina Fernandes foi uma das alunas.

“Tinha 15 anos quando ela veio para a nossa inverneira, no lugar da Alagoa. Dormimos juntas. Ela, eu e a minha irmã. Na mesma cama, para não levantar suspeitas”.

Aos 97 anos há coisas que se esquecem, mas não o essencial. “Ensinou-me a numeração, a ler as parcelas até um milhão e a tabuada. A mim e a outros. Ela era amável. E linda. Foi por caridade que os meus pais os acolheram.” Delfina faz eco do que todos dizem por ali.

Naquela época havia muitos refugiados. Escondiam-nos como se fossem pessoas de cá. Toda a gente lhes deu abrigo. Mesmo sendo pobres dava sempre para alimentar mais um.” Porém, apesar do aparente sossego, a pressão das autoridades franquistas para que os encontrassem nunca desapareceu. Divulgaram o nome dos três como sendo gente “perigosa para a causa nacional”.

Quando a estação mudou, a família foi acolhida pelos Rendeiros, na branda do Rodeiro, e ali foram apanhados após denúncia. Delfina lembra-se bem: “Houve um gajo aqui de Castro que teve problemas com a polícia e quando foi apertado revelou a zona onde eles estavam.” Nessa altura, a PVDE aproximou-se da casa de António Domingues. Torturou a família para que confessassem o esconderijo dos galegos. “Bem que podiam matá-los que eles nunca falariam”, assegura Delfina.

O PVDE QUE SE APAIXONOU

Chegados à prisão de Melgaço, e depois de ouvir a história pela boca da Eudosia, João Guilherme da Cunha, o chefe da PVDE que os havia prendido, “já ia encantado por ela”. A bem dizer, “foi amor à primeira vista”, conta Delfina, com um sorriso maroto, explicando que a “professorinha” (como é recordada em Castro), além de “pimpolha”, sabia “falar bem”. Rendido à jovem, o guarda decide ajudar os galegos. “Se ele não fosse casado teria ficado com ela”.

Aos franquistas é comunicada a prisão dos três, mas salienta-se que “devem estar inocentes da acusação que lhes é imputada pelas autoridades espanholas”. Aos olhos do chefe do posto de Melgaço, as acusações eram fruto de “vingança pessoal”, uma vez que Eudosia declarava ter “terminado o namoro com um seu colega, professor e falangista, optando por um advogado que, segundo consta, era esquerdista” e havia entretanto morrido na frente de guerra. Por esse motivo, a família começara a ser perseguida. O relatório termina justificando que, depois de “ameaçados de morte” os galegos fugiram para Portugal.

Ainda que inocentados das acusações franquistas, Eudosia e os pais deviam permanecer em regime de prisão. Contudo, após três dias de cativeiro, mãe e filha foram transferidas para o hospital da Misericórdia de Melgaço, onde passaram a ajudar as freiras a cuidar dos doentes. Já o capador continuou preso.

Durante três meses, tudo foi feito para que obtivessem documentação para saírem do país. Os passaportes e salvo-condutos terão sido facilitados pelo cônsul francês em Lisboa. Mas antes de os meter no comboio que saiu de Melgaço rumo à capital, João Guilherme da Cunha ofereceu a Eudosia um crucifixo. Objeto que ela emoldurou no quarto, quando anos depois pôde regressar a Fradalvite. Uma vez em Lisboa, os três esperaram dez dias pelo vapor Jamique, que os levou para Casablanca, em Marrocos. O medo da morte só passou quando chegaram ao continente africano, às 19 horas do dia 11 de agosto de 1938.

 

(continua)

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PADERNE MILITAR

melgaçodomonteàribeira, 26.08.23

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PADERNE MILITAR

(…)

A relevância militar dos monumentos religiosos poderia converter-se num pau de dois bicos para o monarca. A necessidade premente de defesa do território do reino acolhe qualquer iniciativa do fortalecimento do sistema defensivo, mas, em contrapartida, essas construções particulares poderiam servir de baluarte à rebelião contra o próprio poder régio. Essa dificuldade tem sido debatida sobretudo em relação às torres solarengas dos fidalgos, que, segundo uma lei de D. Dinis, só podiam ser levantadas mediante prévia licença régia, mas também se fez sentir em relação aos próprios monumentos religiosos.

Neste âmbito, não é, com certeza, demasiado pretensioso sublevar o papel militar do mosteiro raiano de Paderne – sem esquecermos esse outro cenóbio melgacense (o de Fiães), responsável pela construção, em meados do século XIII, e manutenção de uma torre e dezoito braças do muro da vila de Melgaço, conforme ficou exarado em documento do seu cartulário.

Passemos então aos subsídios documentais militares do mosteiro de Paderne. Antes de outros, na afonsina carta de couto, outorgada em 16 de Abril de 1141, ficou registado um escasso pormenor do dinamismo militar do século XII, nesta zona noroeste de Portugal – a tomada do castelo de Laboreiro por D. Afonso Henriques. É o próprio monarca a referir expressamente que concede a carta de couto pelo remédio da sua alma, da alma de sua mãe e dos seus parentes e pelo tributo de dez éguas com suas crias, trinta moios de vinho, um cavalo avaliado em quinhentos soldos e cem moedas de ouro, que a abadessa Elvira Sarracine lhe tinha prestado.

(…)

O tributo foi prestado quando o rei tomou o castelo de Laboreiro. Sendo esta a única fonte documental conhecida para este sucesso militar do primeiro Afonso de Portugal, dada a sua laconicidade, difícil se torna avaliar a amplitude e o enquadramento cronológico do feito. O P.e Bernardo Pintor situou-o, sem mais, nas proximidades do recontro de Valdevez. Augusto Botelho da Costa Veiga, que escreve antes, conjectura que uma reconquista portuguesa pressupõe uma evidente perda anterior da fortaleza para as forças de Leão, situando ambas as expugnações entre a batalha de Cerneja e a carta de couto de Paderne, ou seja, no “intervalo de meados de Outubro de 1140 aos princípios de Abril de 1141”. O armistício de Valdevez, por sua vez, situou-o em Setembro de 1141 – muito próximo, mas a seguir à reconquista do castelo de Laboreiro.

Apesar da manifesta proximidade, quer geográfica quer cronológica, dos embates de Laboreiro e Valdevez, parece inconcebível que, até à data, não se tenha, pelo menos, tentado relacioná-los.

 

PADERNE MILITAR

José Domingues

Boletim Cultural de Melgaço

2006

 

CASTILLOS DE MELGAÇO E CASTRO LABOREIRO

melgaçodomonteàribeira, 19.08.23

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desenho a. sousa

EN BUSCA DE UNA FRONTERA ENTRE GALICIA Y PORTUGAL:

LAS TIERRAS MIÑOTAS EN LOS SIGLOS XI-XII

 

El origen de los castillos está en el poder real y en sus consecuencias el domínio señorial, aunque  en la realidade hay muchas variantes. Son los anclajes del poder político feudal, un poder que los reyes leoneses a duras penas logran controlar, y acaban cedendo a los nobles. La mayor parte de los castillos fronterizos de esta época tienen su base en castillos realizados durante la “Reconquista”, especialmente los de la región del Limia. Eran fortalezas de pequeñas dimensiones con una pequeña guarnición de soldados y cuya missión será la seguridad y defensa de la región. Actúan como elementos del ordenamento del territorio, que tuvo como principio de localización un conjunto de factores de carácter geográfico. No solo actuarían como agentes ordenadores del territorio también de la población, pues con el aumento demográfico que se produce, las villas creadas en torno a los castillos se irán amurallando, como es el caso de Melgaço o Salvaterra do Miño. El punto más importante de comunicación entre ambos lados era Portela do Homem, que conecta la zona de Barroso (Portugal) con la región de O Xurés (Galiza). El castillo de Lanhoso junto con los de Melgaço, y Castro Laboreiro, eran los castillos más importantes de la frontera.

 

Javier Flórez Díaz

Universidad de Cantabria

2016-2017

                                                                     POSTS 1001

 

SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE MELGAÇO

melgaçodomonteàribeira, 12.08.23

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SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE MELGAÇO

 

AS MISERICÓRDIAS

CONTRIBUTO PARA UM GUIA DOS ARQUIVOS

Pedro Penteado

 

Possui arquivo e biblioteca

Responsável hierárquico: Provedor

Acesso: A consulta da documentação depende de uma autorização concedida pelos responsáveis da instituição.

Condições de instalação: A documentação encontra-se na sala do consistório, num armário de madeira com portas de vidro.

 

F: SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE MELGAÇO

 

Datas extremas: 1590-1993

Dimensão: 108 liv., 1 mç. e 2 pt.

Âmbito e conteúdo: O fundo testemunha a estrutura orgânica, as funções e actividades da Misericórdia. Segundo o “Recenseamento…”, a sua documentação pode ser classificada em secções relativas à constituição e regulamentação da Misericórdia, às actividades de expediente, à gestão de recursos financeiros e patrimoniais e ainda às actividades da Santa Casa no âmbito assistencial. Foram ainda consideradas as seguintes áreas orgânicas individualizadas no fundo: Asilo Pereira de Sousa (1943, I liv.) e Hospital de Caridade (1892-1975, 18 liv.). Entre as séries deste fundo, destacam-se compromissos e estatutos (1609-1982); registo das obras dignas de memória e das esmolas dos provedores (1597-1844); registo de visitas dos mesários da Santa Casa e dos facultativos do Hospital (1892-1921); actas da Assembleia Geral (1984-193?); acórdãos e actas da Mesa (1590-1988); actas da inauguração do hospital e capela e Asilo Pereira de Sousa (1892-1936); termos de eleições (1864-1993); registo de irmãos (1758-1975); copiador da correspondência recebida (1852-1880); copiador da correspondência expedida (1863-1945); tombos de propriedades e inventário de bens móveis e imóveis (1634-1927); registo de legados pios (1943-1949); registo de testamentos e capelas (1673-1850); registo dos mamposteiros (1700-1783); registo de defuntos enterrados pela Misericórdia (1875-1898); registo dos benfeitores do hospital (1892) e registo das oferendas particulares destinadas ao hospital (1894-1932).

Organização: Na época em que foi realizado o “Recenseamento…”, o fundo necessitava de um tratamento arquivístico aprofundado, o qual foi realizado nos últimos anos.

Instrumentos de descrição e pesquisa: Existem alguns inventários antigos que descrevem apenas parte dos documentos, a exemplo de um de 1634.

Bibliografia: ESTEVES, Augusto César – A Santa Casa da Misericórdia de Melgaço. Melgaço: Tip. «Melgacense», 1957.

 

CASTRO LABOREIRO DE RELANCE

melgaçodomonteàribeira, 05.08.23

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Retiro estas notas de um acervo de papéis que me restaram de uma breve estadia de três semanas em Castro Laboreiro, no ano de 1977, entre Maio e Junho, a expensas da Secretaria de Estado do Ambiente e com a colaboração da Direcção do Parque Nacional da Peneda-Gerês. Devem ser entendidas como impressões onde o esforço de objectividade uma e outra vez pôde ter sido ofuscado pela emoção do seu autor. Em todo o caso, há um propósito de contribuir para o melhor conhecimento de certos aspectos da realidade camponesa do Noroeste serrano de Portugal. A traços largos, são aqui bosquejados os perfis da família e da comunidade; alguns dos factores morais e materiais que estimulam a emigração do homem; a condição da mulher que, na ausência do homem, assume sozinha as tarefas da casa e do campo; algumas transformações locais do casario e os factores que esboçam atitudes e posições hierarquizantes.

 

CASTRO LABOREIRO DE RELANCE

Luis Polanah

Minia

2ª Série, Ano II, nº 3

1979

 

CAPELAS, IGREJAS, MOSTEIROS - A ARTE ROMÂNICA EM MELGAÇO

melgaçodomonteàribeira, 29.07.23

869 b Igreja de Castro Laboreiro.jpg

 igreja de castro laboreiro

 

A ARTE ROMÂNICA NA ANTIGA DIOCESE DE TUI:

AS RELAÇÕES ARTÍSTICAS GALAICO-MINHOTAS

 

Margarita Vázquez Corbal*

Na arte românica da antiga diocese tudense, a arquitectura tem uma estreita relação de interdependência com a escultura. Embora seja considerada rural e mesmo pobre, devemos enfatizar a sua singularidade, especialmente quanto ao uso de decoração escultórica. As estruturas e motivos são o resultado de um importante processo de absorção das correntes artísticas europeias, feita através das catedrais de Tui, Compostela, Braga, Ourense e das igrejas cistercienses de finais do século XII, e da reutilização do passado como exemplo: a influência castreja que aparece no gosto pelas formas geométricas nas hexapétalas herdadas da decoração dos castros como o de Castro Laboreiro (Melgaço, Portugal) e Santa Tegra (A Guarda, Pontevedra), que se reflectem em exemplares românicos como o de Santa María de Castrelos (Vigo, Pontevedra). A herança pré-românica refletida no uso do sogueado no capitel de São Salvador de Paderne (Melgaço, Portugal) ou na decoração de uma arquivolta de S. Vicente de Barrantes (Tomiño, Pontevedra) que apresenta uns arquinhos similares aos da igreja de S. Pedro de Balsemão (Lamego, Portugal). Outro nexo comum destas relações artísticas Galaico-Minhotas está nas tradições e na cultura popular comum, como acontece com os motivos apotropaicos e de longa tradição popular, como o serpentiforme de Sans Fins de Friestas (Valença, Portugal) ou o canídeo ou leão de Santa María da Porta (Melgaço, Portugal), referindo a atitude de guarda e proteção que devem ter os que entram na igreja e no espaço sagrado, embora os animais da Capela de Nossa Senhora da Orada (Melgaço, Portugal) sejam parte do motivo da árvore da vida, que também aparecem na área galega da diocese no tímpano de S. Miguel de Pexegueiro (Tui, Pontevedra), que se relacionam com o grifo e o dragão em luta, representação da batalha entre o bem e o mal do tímpano norte de São Cristóvão de Rio Mau.

É importante a presença no entorno diocesano de oficinas itinerantes que fazem cópias sistemáticas que respondem a programas iconográficos idênticos ou com intenção semelhante. É o caso, por exemplo, da que fez o tímpano de S. Salvador de Albeos (Crecente, Pontevedra), cuja Maiestas Domini tem traços comuns às de Bravães (Ponte da Barca, Portugal) e Rubiães (Paredes de Coura, Portugal). Podemos dizer que as oficinas que trabalham na zona conhecem a linguagem das artes de ambas as margens do Minho e que partilham mestres e canteiros.

 

*Doutoranda do Departamento de História da Arte da Universidade de Santiago de Compostela (Espanha)

 

Incipit 2. Workshop de Estudos Medievais da Universidade do Porto

2011-2012