ENTRUDO EM MELGAÇO NOS ANOS 30
Desenho de Manuel Igrejas
O CARNAVAL EM MELGAÇO
Aquele verão estava gostoso e os anos trinta até um pouco mais de sua metade, eram fáceis de viver. Corriam suaves e até com uma certa abastança. Naquelas paragens, quem não encontrasse trabalho no lugar era só dar um pulo a Espanha e fácil arranjaria onde ganhar dinheiro. Por lá havia um surto de progresso, construção civil, estradas e caminhos de ferro. E os melgacenses se baldeavam para a Galiza ou um pouco além e, ao fim de alguns meses, voltavam com dinheiro no bolso que gastavam na terra. Diziam até que eles só vinham à terra para fazer mais um filho. E além de dinheiro traziam novos conhecimentos sobre seus ofícios que, em contacto com artífices de outras paragens, adquiriam. Também traziam novos costumes e hábitos que enriqueciam a cultura local.
Uma demonstração de abastança fora o carnaval daquele ano. Os bailes tinham sido mais requintados com muita gente se fantasiando e, a novidade, o baile infantil à fantasia. No dia 20 de Janeiro, era o início do Carnaval e quem o anunciava era o Amadeu Rato. Vinha de Corçães, ele e os filhos da Maria Penica, rapazes e raparigas, fantasiados com roupas velhas e caras tapadas com pano de saco, fazendo a maior algazarra. Fingiam uns de contrabandistas com sacos às costas, e os outros, de guardas com espingardas de pau correndo atrás dos primeiros. Era uma cheia de rir. As crianças correndo ao lado deles divertiam-se a valer. A brincadeira terminava na taberna que lhes oferecesse vinho de graça.
Pois nesse ano, o Entrudo teve baile infantil à fantasia. Parece que a ideia partiu do Jacob, o mais competente e habilidoso trolha da região, um grande artista na sua profissão, que andou muito tempo pela Espanha e viu isso por lá. Todas as famílias que tinham crianças aderiram à ideia e os preparativos aconteceram no maior sigilo. Todos queriam fazer surpresa com suas fantasias. Cochichava-se nos cantos, querendo adivinhar o que os outros estavam fazendo. A terça-feira de Entrudo chegou finalmente.
Era pleno inverno com o costumado frio, mas aquela tarde parecia primaveril. O sol estava radioso e a brisa corria morninha. Até parecia que o tempo queria participar da folia fantasiado de primavera.
À uma da tarde começaram a chegar ao terreiro, local da concentração, as famílias com as crianças. Para cada criança fantasiada vinha um montão de adultos, a família toda. A vaidade era dos grandes; os pequenos, alguns, vinham até contrariados, com as roupas espalhafatosas que os incomodavam. Rapazes e raparigas, sozinhos ou formando casais, envergavam as mais variadas fantasias. O espectáculo estava realmente bonito. Chegaram os mais esperados, de quem se comentava maravilhas naqueles cochichos de esquina, o Manelzinho do Augusto do Félix e a sobrinha, a Maria da Conceição, filha do Lucas e da Maria Natércia. Tio e sobrinha só faziam diferença entre si de pouco mais de um ano de idade. A expectativa do povo foi satisfeita. O casalzinho estava primoroso. Ele vestido de Marquês de Pombal e ela de Dama Antiga. As roupas haviam sido confeccionadas pelo Augusto do Félix com a colaboração das mulheres da família. A Mia com um vestido longo, até aos pés, muito rodado e armado com arquinhos por baixo da saia, cheio de folhos e rendas, luvas de renda, sapatos brancos de verniz e volumosa cabeleira loura, cacheada até debaixo dos ombros. O Manel, elegantíssimo, numa roupa preta, calça justa até ao joelho, jaqueta debruada de rendas brancas, também a camisa de renda com folhos na gola e na manga, saindo por baixo da manga da jaqueta, cabeleira loira, cacheada e comprida, meias brancas até aos joelhos e sapatos pretos de verniz com grandes fivelas prateadas e rendinhas à volta.
As cabeleiras, primor de habilidade e paciência, feitas pelo pai e avô dos personagens e penteadas com grande capricho pelo João do Gabriel, barbeiro com pendores de cabeleireiro e que com cosméticos e ferro quente, conseguiu fazer na estopa aquela maravilha de caracóis caindo em cachos.
Os promotores da festa logo elegeram aquele casalzinho como o mais bonito, as melhores e mais belas fantasias, com aprovação unânime do povo, e por isso deviam abrir o cortejo. Mas o Jacob pleiteou e conseguiu que os seus filhos, o Manuel e o Zeca, vestidos iguais, fantasiados de gaiteiros galegos com gaitas de foles e tudo, fossem os da frente. O cortejo organizou-se desfilando com os gaiteiros soprando desesperadamente as suas gaitas de que saía um som estridente sem nexo e sem compasso, pois eles não sabiam tocar. Em frente, pela Rua Direita, lá foram mais de cinquenta crianças, emproadas, empertigadas, saracoteando a vaidade dos parentes, umas chochas e macambúzias outras. As pessoas grandes, ladeando o cortejo e fazendo grande algazarra, e uma ou outra mulher, volta e meia, entrando no meio das crianças, para compor algum detalhe que não estava a contento, no seu pirralho, tal como faziam nas procissões. As poucas criaturas que ficaram nas casas aplaudiam à passagem. Gente das aldeias também tinham vindo apreciar a novidade.
Chegados ao Salão Pelicano subiram à sala de cima onde se ia realizar o baile. Daquela multidão que acompanhara o desfile, nem todos entraram. O recinto não comportava. Os que conseguiram entrar acotovelavam-se uns aos outros. A orquestra do Avelino do Peso já estava no estrado que servia de palanque e atacou uma bonita marchinha muito em voga na época, música essa, cujos acordes ainda agora soam na mente de algumas ex-crianças. O que devia ser uma dança virou uma balbúrdia. A meninada, muito novinha, a maioria, não sabia o que era dançar, agarravam-se umas às outras balançando-se, atropelando-se e caindo, para desespero dos adultos que viam as fantasias amarrotar-se. O Jacob e outros promotores entraram no meio tentando organizar a coisa. Aquela confusão. O baile prolongou-se por uma hora e como não havia maneira de dar jeito, resolveram reorganizar o cortejo e voltar para o terreiro onde as crianças poderiam divertir-se à sua maneira sem ter de obedecer ao compasso da música. E assim foi e a miudagem gostou. O Augusto do Félix e o resto da família estavam aborrecidos com o comportamento do Manelzinho. Ele, que normalmente parecia que tinha o bicho carpinteiro, sempre o mais espevitado, nesse dia estava sorumbático e arredio. Não queria brincar e não dizia o que tinha. Seria que se achava por demais bonito e enfeitado com medo que o desfizessem de algum detalhe da sumptuosa fantasia ? Já no desfile repararam que ele andava mansinho, como quem pisa em ovos, com medo de estragar os sapatos…
E os grandes da família empurravam o rapazinho para o meio dos outros para pular e brincar. Ele ia e voltava. O tio Emiliano resolveu tirar a limpo o que estava acontecendo.
— Esse rapaz deve ter alguma coisa nas pernas ou nos pés! Vem cá Manel, senta aqui no banco!
Verificou as calças, as meias, tirou-lhe os sapatos. Ora vejam! Dentro dos sapatos, nas pontas, uns chumaços de papel, que eram usados enquanto novos para manter firmes as biqueiras e haviam-se esquecido de os tirar. Era aquilo o tormento do rapaz!
Livre dos empecilhos, ninguém segurou o Manelzinho! Parecia uma sardanisca! Dali a pouco a situação estava invertida: os grandes reclamando do rapazinho. A primeira coisa de que se livrou foi a cabeleira.
Aquele Entrudo famoso durou até ao anoitecer para as crianças. À noite foi a vez dos adultos.
Foi mais uma página feliz, um bonito retalho na vida daquelas crianças da Vila de Melgaço.
Manuel Igrejas
Publicado em: A Voz de Melgaço