O BASTARDO III
Félix Igrejas
Dona Beatriz virou-se, com calma, sorriso no rosto:
— E nem uma palavra!
— Chamo-me Maria da Fonte da Vila – o rosto já sorridente.
— Eu sei Mia, sei muito bem, quando terminares vem ter comigo lá baixo.
Os gritos continuavam, mais pausados, criada e aia a correr com água e panos quentes e os homens na caça, uma batida a um porco bravo, que começou não muito cedo, mas empregou toda a gente da quinta. Se a caçada fosse boa, havia carne e vinho para todos, desses estavam livres.
Pelo meio da tarde, Dona Beatriz é chamada ao quarto. O choro do recém-nascido enchia o quarto. A aia à volta de Cândida da Luz deu o lugar à sua velha patroa, que acenou à Mia e perguntou:
— Está tudo bem?
— Ela é forte, daqui a uma semana já anda a cavalo – acenou com a cabeça, Mia.
Não é cavalo, é carroça, e com o João vou falar eu, pensou Dona Beatriz.
— Ouves Cândida, logo regressas a casa, do resto trato eu – rematou Dona Beatriz, saindo quarto.
Mia, Antónia, com a criança embrulhada num xaile, seguiram-na escada abaixo. Entraram no escritório e as ordens seguiram:
— Antónia, ficas aqui com a criança; tu, Mia, volta ao escurecer – e atirou-lhe uma bolsa para as mãos – vou ver como está a rapariga e já te mando companhia.
Subiu as escadas e entrou no quarto, sentando-se na borda da grande cama.
— Como te sentes minha filha? Queres uma canja de galinha, acabadinha de fazer? Tens que te pôr forte – falou com suavidade a velha dama.
Um gemido foi a resposta
— Ao escurecer – a voz de D. Beatriz era agora autoritária – sairá desta casa e vai para o Mosteiro de Ourense. Leva um bom enxoval e uma boa carta de apresentação. Não te preocupes que tem o futuro garantido, vai sair dali um mestre, não será um qualquer pé descalço dos campos. Mas isso agora não interessa. Vou mandar subir a aia…, não queres mesmo uma canjinha? – e acaricia os cabelos de Cândida da Luz, antes de deixar o quarto Ao entardecer uma carruagem passa os portões da quinta, dela descendo Fifi, o homem de todos os serviços de Dona Beatriz, o único em quem ela confiava para os serviços mais delicados da família.
Entrou em casa e logo saiu, acompanhado de dois vultos negros, carregando cada um seu embrulho.
No interior da carruagem, os vultos transformaram-se em Antónia, com o bebé ao colo e uma mocetona de farto peito, que o alimentaria durante a viagem.
Fifi já definira a rota e as paragens a efectuar tendo em conta a presença do recém-nascido. Foi já de noite – após dois dias de viagem – que deram entrada na cidade galega, seguindo directamente para o Mosteiro de Ourense.A carruagem parou junto de uma das portas laterais do Mosteiro, envolto na escuridão da noite, e dela desceu Fifi. Puxou a corda da Roda e momentos depois abriu-se um pequeno postigo na porta, pelo qual ele entregou um envelope lacrado. O postigo fechou-se e Fifi começou a andar de um lado para o outro, que a noite estava fria, do rio Minho vinha um nevoeiro gélido. Quando o postigo se voltou a abrir, a um sinal de Fifi, as duas mulheres desceram da carruagem e depositaram os embrulhos à porta do Mosteiro. A criança e o enxoval.
Entre missas e matinas, cresceu na fé em Deus, Félix Iglésias, nome dado pela abadessa – ou não fosse o enxoval como era. A porteira também costumava baptizar alguns, mas esses, geralmente, sem enxoval. Enquanto cantava loas a Deus, Félix, começou a ser instruído na profissão de alfaiate, logo se destacando por ser um bom aprendiz e ter método de trabalho; acarinhado pelos mestres rapidamente progrediu no ofício que lhe fora destinado. No convívio com os restantes Expostos logo se agradou de um calmeirão que aprendia o oficio de curador de animais, de nome Cintran, um vivaço, sempre alegre e com um assobio melodioso que treinava até à exaustão enquanto tratava dos cascos dos burros. Com o tempo a amizade cimentou-se de tal forma que quando deixaram a Roda dos Expostos de Ourense, completados os 18 anos, decidiram partir juntos.
Juntos na Roda, juntos para a vida.
Deixar a cidade e tratar de ganhar a vida com os seus ofícios, era decisão há muito tomada mas logo perceberam que só precisa de alfaiate quem tem roupa e de animais todos eles sabiam. A pobreza era tal, que iam saltando de aldeia em aldeia. Nesta eram pedreiros, na outra havia milho para apanhar, as vindimas vinham a seguir e a refeição era pobre e a paga muito minguada. Fartos de andar aos saltos, resolveram assentar por uns tempos em Santa Cristina de Valeixo.
(continua)